Se há coisa que o establishment libertário — isto é, organizações libertárias da corrente majoritária cuja principal atividade é fazer lobby junto ao estado em favor de “reforma de livre mercado” — adora, é a assim chamada “privatização.” Artigo de Paul Buchheit em Truth-out.com (“Oito Maneiras pelas Quais a Privatização Não Deu o que os Estados Unidos Precisavam” 5 de agosto) trata o fracasso da privatização como reflexo dos limites do “sistema de livre mercado.” Os exemplos que ele relaciona, porém — serviços públicos de água e eletricidade, prisões, “cuidados de saúde via livre mercado,” etc. — deixam bastante claro tratar-se de “livre mercado” só na medida em que envolve lucro corporativo e nexo de caixa.
Para entender por que, precisamos ver o estado tal como realmente é. Aqueles de nós da Esquerda de livre mercado vemos o estado, em sua essência, como instrumento coercitivo do poder da classe dominante. Os meios econômicos conducentes à riqueza — produção, troca pacífica, cooperação voluntária, compartilhamento e doação — geram saldo positivo. O estado, por outro lado, é o meio político conducente à riqueza por intermédio do qual uma coalizão de classes dominantes usa a força para extrair renda de todo mundo mais.
Os primeiros estados eram instrumentos por meio dos quais reis, nobres e padres extraíam tributo do campesinato. Nos tempos medievais, o estado era uma ferramenta principalmente dos interesses dos latifundiários. Nos primeiros dias da era capitalista, ele serviu aos interesses de grandes proprietários de terras engajados em agricultura capitalista, interesses mercantis e aliança entre mineração, manufatura de armas e monarquia absoluta. À medida que a era capitalista se desenvolvia, os capitalistas industriais juntaram-se à aliança da classe controladora do estado, seguidos mais tarde pelos capitalistas da finança e dos donos de “propriedade intelectual.”
Independentemente dos trajes ideológicos que adotem, as principais beneficiárias das políticas do estado serão as classes econômicas que o controlam. Isso foi verdade na Era Progressista e no Novo Pacto: Embora as políticas daquelas eras fossem apresentadas como populistas e favoráveis ao trabalhador, as principais forças políticas por trás delas eram os grandes interesses corporativos. E é igualmente verdade hoje dos tipos de “reforma de livre mercado” que vemos promovidos pela Heritage Foundation, pelo American Enterprise Institute e pelo American Legislative Exchange Council.
Isso é especialmente verdade da assim chamada “privatização.” Eis aqui como normalmente ela funciona: Você começa com uma infraestrutura construída à custa do contribuinte. O estado a “privatiza” mediante vendê-la para corporação nominalmente privada, em termos basicamente estabelecidos pela corporação nos bastidores. Esses termos usualmente incluem gasto de dinheiro do contribuinte (amiúde acima do valor da venda) para aprimorar a infraestrutura e torná-la vendável; uma espécie de garantia de lucros para, ou restrição à competição contra, a entidade privatizada; e uma evisceração de ativos e esvaziamento em larga escala depois da venda ser concretizada.
Digo “assim chamada” privatização porque uma entidade “privada” que existe numa teia de proteções do estado e cujos lucros são garantidos pelo estado é em realidade uma filial do estado. A única diferença entre um “serviço público” prestado diretamente pelos próprios empregados do estado e um prestado por uma corporação “privada” paga com dinheiro do contribuinte é que o custo desta última inclui uma camada parasitária de acionistas e gerentes corporativos.
Por exemplo, a Corporação de Correções dos Estados Unidos compra prisões públicas — em troca do que apenas pede ao estado para garantir que elas terão índice de ocupação de 90 por cento durante vinte anos. “Privatizar” serviços públicos de água significa que o governo — quando levados em consideração todos os custos — praticamente paga uma corporação para tirar o sistema de água de suas mãos; o novo dono corporativo eviscera e vende tudo o que pode ser removido, e em seguida os consumidores são extorquidos.
Isso é o que os centros direitistas de “livre mercado” querem dizer com “reforma de mercado.” É porém ilusão esperar qualquer coisa diferente, por mais que eles recorram à expressão “livre mercado.” É tão insensato esperar geunína “reforma de livre mercado” de capitalistas da direita quanto esperar políticas genuínas favoráveis ao trabalhador de capitalistas de esquerda. Tentar promover livres mercados ou ajudar as classes exploradas por meio do estado é como fazer origami com martelo.
Na maioria dos casos o único modo legítimo de privatizar propriedade do governo é olhar por trás de toda a insensatez mística acerca do governo, e tratá-lo como propriedade daqueles que em realidade o usam para proporcionar serviços, ou daqueles que consomem esses serviços. Isso significa as fábricas e fazendas de propriedade do governo tornarem-se cooperativas de trabalhadores, e empresas de serviços públicos do governo tornarem-se cooperativas de consumidores de propriedade dos que pagam pelos respectivos serviços.
O último chefe de estado importante a propor privatização segundo esse modelo foi Mikhail Gorbachev, deposto por golpe convenientemente cronogramado que finalmente levou Boris Yeltsin ao poder — seguido pela venda da economia do estado, sob a supervisão de Jeffrey Sachs, à cleptocracia. Em outras palavras, não prenda a respiração à espera de reforma genuína de mercado oriunda do estado.
Artigo original afixado por Kevin Carson em 5 de agosto de 2013.
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.