Por Julianna Neuhouser. Artigo original: An Orientalist History of Transmisogyny, 27 de maio de 2023. Traduzido para o português por Nico.
A Short History of Trans Misoginy, de Jules Gill-Peterson é o mais recente sucesso em publicações trans. Lançado em tempos de retrocesso aos direitos trans, por parte de uma coalizão que reune figuras tão variadas como J.K. Rowling e Javier Milei, o livro se se propõe a analisar as origens de um mundo no qual o ódio a transfeminilidade se tornou absurdamente útil. E é perceptível que muitos concordam que estes objetivos foram alcançados, já que a capa do livro conta com elogios de figuras ilustres como Torrey Peters, Shon Faye e Susan Stryker. Gill-Peterson, busca enquadrar a transmisogonia no longue durée, contextualizando os pânicos morais transmisóginos do começo do século vinte pelas lentes da violência colonial, focando especialmente no antebellum dos Estados Unidos. Infeliz e ironicamente, entretanto, quando ela observa o Sul Global — especialmente América Latina — ela engaja em um peculiar jogo de apagamento e romantização, subestimando os problemas bastante reais enfrentados por pessoas transfemininas fora do núcleo imperial enquanto idealiza seus modos de vida. A conclusão que ela chega, para parafrasear Edward Said, envolve uma forma de chegar ao consenso baseado no papel especial que a América Latina tem na experiência Norte Americana: uma fonte de fantasias de libertação sexual invés de uma região enorme, extremamente diversa com sua história particular e complexa.
Os problemas começam cedo — Gill-Peterson inicia sua análise do imperialismo e da transmisoginia não com a conquista espanhola ou portuguesa das Américas, mas próxima da Revolta Indígena de 1857 — três décadas após o colapso do Império Espanhol, constituindo no apagamento da violência colonial antitrans ao logo do território que hoje é conhecido como América Latina. “Um novo relacionamento entre o homem e a transfeminilidade tomava forma”, ela escreve sobre violência imperial do século dezenove, como se ela já não tivesse tomado forma centenas de séculos antes em grandes partes do mundo que ela escolheu ignorar. Nenhuma pesquisa de arquivos seria necessária aqui: mesmo em textos extremamente básicos como The True History of the Conquest of New Spain de Bernal Díaz del Castillo, nele há incontáveis referências escandalizantes a “sodomia” Mesoamericana e relatos de tentativas de conquistadores de por fim as práticas sexuais que entram nesta classificação, “pois haviam muitos meninos vestidos como meninas que ganhavam dinheiro naquela profissão maldita”. Essa violência transmisógina continuou ao longo da era colonial; um dos casos mais famosos é o de Cotita de la Encarnacion, uma crossdresser afro-mexicana que foi torturada e queimada na fogueira na Cidade do México em 1658, e cuja história chegou a ser imortalizada na história de Camila Sosa, I’m a Fool to Want You — dado sua romantização da identidade travesti, seria esperado que ela tenha lido Camila Sosa, mas talvez essa seja uma suposição incorreta.
Essa falta de familiaridade com a literatura fora do Norte Global é um tema constante ao longo do livro, desmentindo a sua pretensão de ser uma história global. Na introdução, ela tenta examinar o tema de porque a misoginia tão comumente se torna mortal sem citar sequer uma feminista latino-americana, apesar de o feminicídio e as condições estruturais que a tornam possível sendo, possivelmente o tema mais teorizado pelas feministas da região. Apesar de, ou justamente por conta desta ignorancia, a conclusão do livro é uma descrição chocantemente orientalista das travestis da América Latina. É particularmente perverso que ela encontre somente romance aqui após sistematicamente apagar a violência antitrans endêmica a região, que possivelmente é a região mais perigosa do mundo para pessoas transfemininas. Para Gill-Peterson, travestis são belas almas no sentido hegeliano, livres de qualquer envolvimento comprometedor com o capitalismo, o estado ou assimilação heteronormativa. E no entando, ao elogiar o conceito de organização “boa o suficiente” da ativista travesti argentina Marlene Wayar, que abraça praticalidade e imperfeição, ela parece falhar em compreender as formas em que organizar-se no “bom o suficiente”, sob condições mais duras do que as da Costa Leste dos Estados Unidos, pode levar pessoas trans a se organizarem em um partido de esquerda, ou a se aliar com organizações feministas radicais “antitráfico”. Como filósofo transfeminista mexicano, Siobhan Guerrero McManus escreveu que transfeminismos da América Latina são “radicalmente heterogêneos […] se nós examinarmos suas várias posições em tópicos tais como a questão política do transfeminismo, o local de fala de onde tais demandas são feitas e, finalmente, uma série de questões ligadas a trabalho sexual, sistema prisional, migração, violência e justiça, ambas no sentido econômico e de redistribuição, assim como em termos de restauração e reparação de danos causados as populações trans”. Na América Latina existem transativistas que lutam pela abolição do sistema prisional e transativistas que fazem lobby para sentenças mais duras como uma solução para o problema do transfeminicídio. Existem transativistas que se aliam com feministas radicais contra trabalhadoras sexuais e transativistas que se aliam com trabalhadoras sexuais contra feministas radicais; há as que se juntam a partidos políticos para garantir reformas e as que apostam em antiassimilação radical e engajam em ativismo de rua; transmedicalistas e mutantes de gênero. Em resumo, pessoas trans da América Latina são pessoas, em toda sua diversidade, igualmente capazes de trinfos e fracassos. Todas estas diferenças são ignoradas por Gill-Peterson, que invés disso encontrou um tópico homogêneo que responde mais a suas preocupações com as políticas queers dos EUA que quaisquer uma das crise políticas da América Latina e papel de movimentos anti-gênero em os precipitar; a história de ditaduras da região e a atual onda de vitórias eleitorais da direita populista estão completamente ausentes deste livro. Se seu livro acertadamente critica a romantização e exotização de mulher trans negras, escrevendo que elas são “politicamente idealizadas por aquele que não as conhecem… não raro, desconfortavelmente reivindicadas como posses por aqueles olhando para trás em busca de orientação,” ela parece alheia a ironia de que faz o mesmo com travestis, já que espera que a “mera presença delas… para saltarmos às boas politicas.”
A segunda ironia aqui é que há muito que as pessoas trans do Norte Global podem aprender com as travestis — mas menos em termos de identidade e mais nas suas realizações políticas. Contrária a imagem radicalmente antiassimilacionista que Gill-Peterson pinta das travestis e movimentos trans da Argetina, o país tem historicamente sido a vanguarda em assegurar direitos para a comunidade, um status que tem mantido desde que se tornou o primeiro país a permitir o reconhecimento legal de pessoas trans através da autoidentificação, até tudo começar a desabar após a tomada de poder da direita um par de meses atrás. Nós podemos aprender com a Escola para Travestis/Pessoas Trans Mocha Celis, um projeto de educação popular voltado para a comunidade, ou a Quota de Trabalho Trans, uma iniciativa do governo Fernandéz que reservou 1% do trabalho do setor público para pessoas trans e oferecendo incentivos para o setor privado para fazerem o mesmo, trazendo uma enorme diferença nas vidas de pessoas trans da classe trabalhadora —dois anos após o início do projeto, o número de pessoas trans empregadas pelo setor público aumento 900%, embora esse processo tenha sido desfeito por demissões massivas de travestis/trans no setor público, executadas pelo governo Milei. Outra iniciativa envolvia reparações para travestis e mulheres trans que sobreviveram a repressão sexual e dissidentes de gênero sob o período de golpe militar orquestrao pela CIA, uma repressão que continuou ao longo da transição democrática conforme a democracia burguesa que emergiu do colapso da junta conservou suas leis criminalizando pessoas trans. Todas estas iniciativas foram resultados de organizações políticas e militância, uma lição que pode ser aprendida por qualquer um em qualquer lugar do mundo. É difícil enxergar como a identidade travesti pode ser exportada sem simplesmente ser transformada em uma pose hipster sobre quem é o mais subversivo e transgressor, que entretanto, não faz nada para elevar a comunidade como um todo.
Nós também devemos falar de seus erros. Um dos maiores tropeços dos movimentos trans/travestis da Argentina tem sido sua vergonhosa colaboração com feministas radicais que excluem trabalhadoras sexuais, uma aliança que sabota a posição material de incontáveis travestis precarizadas e mulheres trans. Em certo ponto, Gill-Peterson cita positivamente Marlene Wayar por sua postura antiassimilacionista sem mencionar seu abolicionismo ao trabalho sexual, o que à levou a assinar cartas abertas se opondo a descriminalização do trabalho sexual junto de organizações como a Coalition Against Trafficking in Women in Latin America and the Caribbean (CATWLAC), uma organização da aliança transfóbica internacional conhecida como Women Declaration Internacional (WDI) e cuja tesoureira (e ex-codiretora) é ninguém menos do que a ur-TERF Janice Raymind. Uma vez mais, a complexidade de políticas trans na América Latina parecem escapar a Gill-Peterson, ainda assim eu duvido que ela perca muito sono com isso, já que sua conclusão oferece uma fantasia orientalista de políticas travestis perfeitas traduzíveis em palavras como “precarización” ou “lo suficiente bueno” geralmente são mantidas em espanhol, como um turista experimentando palavras na língua local — o que ajuda na exotização de projetos subalternos.
Neste momento de crise global para comunidades transfemininas, nós merecemos uma história da transmisoginia, mas nós também merecemos mais que isso. Nós merecemos uma com um escopo global, que leve a sério as tragédias e triunfos do Sul Global e que “fale com elas e as desça do pedestal da idealização, que é outra forma de recusar sua humanidade”, como a escritora espanhola trans Alana S. Portero escreveu em e execelent debut Bad Habit. Nós merecemos um foco nas formas de organização política para que possamos lutar como uma comunidade, invés de questões de identidade. Nós merecemos revolução, não romance.