O artigo a seguir foi escrito por Kevin Carson e publicado em seu blog Blog Mutualista: Anticapitalismo de Livre Mercado, 29 de março de 2011. Thaddeus Russell. Uma História Renegada dos Estados Unidos (New York: Free Press, 2010).
Diferentemente de muitas histórias dissidentes dos Estados Unidos, que tentam retratar minorias raciais, subculturas sexuais e classes subordinadas como “vítimas dignas” em termos das convenções e costumes sociais da classe média branca, Thaddeus Russell exalta o tipo de gente acerca da qual seus pais podem ter acautelado você: as pessoas desprezíveis, sem mérito, não respeitáveis. Você sabe, as pessoas “malsucedidas” — como também você seria se não guardasse distância delas.
Contra a austera “virtude republicana” dos “Pais Fundadores” tal como usualmente a encontramos nas aulas de história estadunidense da escola pública, Russell justapõe as populações urbanas das colônias e as tabernas que as atendiam. Aqueles puritanos deuses de mármore eram obcecados com “licenciosidade,” “luxúria” e “degenerescência dos costumes” por bom motivo, se você olhar as tabernas que se postavam em praticamente toda esquina nas pequenas cidades da América Britânica. Ali você podia ver a plebe fazendo o que lhe aprazia e bebendo praticamente a qualquer hora, ver pretos e branco dançando (e “dançando”) juntos, e ouvir o palavrão sendo gritado com franca desinibição. Em grande medida as leis suntuárias do primeiro período republicano, com seu objetivo de estimular simplicidade e autocontrole espartanos, foram um experimento de engenharia social de “Pais Fundadores” que viam a população de seu país com horror.
Russell trabalha a partir de aparato erudito considerável o tópico da artificialidade da brancura, e foca em vívido detalhe o comportamento de minorias étnicas europeias tais como irlandeses e italianos antes de elas serem oficialmente incorporadas à raça branca.
Ele prefere a vítima “indigna” à “digna”: escravos libertos que não quiseram internalizar a ética de trabalho dos brancos anglo-saxões protestantes, gays que não quiseram criar imagens invertidas respeitáveis da família nuclear heterossexual monógama, e pretos que não quiseram marchar quieta e decorosamente vestindo ternos com o Dr. King.
Russell deixa claro que não gostaria de viver numa sociedade composta principalmente pelo tipo de gente que ele exalta — óbvia espécie de Cozinha do Inferno, como ele a vê: “Ninguém estaria em segurança nas ruas, o caos reinaria, e o lixo nunca seria coletado.” Nada obstante, as Senhoras Grundy e Comstock, as Carrie Nation, são “inimigas da liberdade.” Se não tivesse havido resistência ao instinto delas de baixar normas e “reformar,” seríamos hoje tão miseráveis quanto Huck Finn na sala de recepção da Viúva Douglas. Até pessoas que se veem como “convencionais” e “de classe média” fruem de um espectro de formas de liberdade — formas de liberdade que são parte do que hoje consideram estilo de vida normal — que nunca teria existido sem constante luta dos “sem mérito” contra a respeitabilidade.
Em todo o livro, Russell expressa desagrado com a engenharia social e o paternalismo de todos os tipos. Isso fica bem claro na descrição dele do herói do Novo Pacto Rex Tugwell. Tugwell imergiu totalmente na cultura gerencista da Era Progressista, eugenia e tudo o mais, e perdeu-se em utopias totalitárias tais como as de H.G. Wells. Ele via o regime de planejamento instituído durante a Primeira Guerra Mundial como oportunidade de transformar os Estados Unidos numa utopia de “um engenheiro social.” Seu sonho no governo de FDR era substituir “a mão morta da empresa competitiva” pelo planejamento centralizado, e transformar os Estados Unidos numa grande fábrica.
Embora Russell seja escritor de sensibilidade amplamente libertária, não fui capaz de enquadrá-lo em qualquer orientação libertária estereotipada de direita ou esquerda.
Ele expressa atitude geralmente amigável em relação ao mercado (“… a economia de mercado sempre foi amiga de renegados e inimiga de guardiães da moral.”). E ataca críticas da esquerda à “cultura do consumo” (como as em Capitães da Consciência de Stuart Ewen) usando tipo de linguagem que os leitores deste blog normalmente associariam a defesas direitistas do capitalismo corporativo em Mises.org. Sem embargo, ele implicitamente trata “mercado” como equivalente ao “nexo de caixa” (por exemplo, ele contrasta “o mercado” com o estilo de vida de subsistência de produtores rurais isolados que viviam mediante autoaprovisionamento e escambo).
Por outro lado Russell discute a cultura do local de trabalho e a disciplina do trabalho em termos que são muito decididamente não direitistas, tornando abundantemente claro que a análise libertária dele não é a que apareceria em Mises.org. Ele descreve, no tipo de linguagem amigável que normalmente associaríamos a E.P. Thompson, a cultura da “santa segunda-feira” que os empregadores pagadores de salário consideravam tão reprovável no século dezoito. E trata tentativas dos Republicanos Radicais da Era da Reconstrução para superar a “indolência” e impor uma cultura de “trabalho paciente e honesto” a escravos libertos como moralmente equivalente às leis suntuárias dos puritanos da era Revolucionária. Tomemos, por exemplo, esta exortação do Conselhos Singelos para Homens Libertos, de Clinton Fisk:
Pois bem, trabalho livre não implica que você possa fazer seu trabalho irregular, descuidada, e desonestamente; e que seu empregador tenha de tolerar isso, sem dizer nada a respeito. Quando você era escravo, talvez possa ter sido hábito seu fazer o mínimo possível que o livrasse do açoite. Agora, porém, que você é livre, deverá ser acionado por princípio mais nobre do que o medo.
O tratamento dado por Russell à propaganda do Bureau dos Homens Libertados é bastante similar a – digamos – o tratamento de E. P. Thompson do wesleyanismo em A Formação da Classe Trabalhadora Inglesa. E os escritores do Bureau dos Homens Livres para os quais ele reserva tal zombaria soam quase exatamente como comentadores puritanos queixando-se do grande número de dias santos comemorados pelos camponeses ingleses, ou metodistas queixando-se da “santa segunda-feria.”
Talvez mais sugestivo, ele iguala tais apelos, em linguagem muito comparável à de seus ataques às críticas da esquerda cultural à “cultura do consumo,” como tentativa de impor sensibilidadades burguesas a pessoas que prezam lazer e autonomia. Argumenta, em resposta a tais tentativas de inculcar a “ética do trabalho,” nada haver de “natural numa vida dedicada ao trabalho.” E exalta a resistência dos Homens Libertados a tentativas de imposição de disciplina do trabalho. Por exemplo, um nortista na gerência de uma plantação confiscada, tentando impor ideias nortistas de disciplina do trabalho a meeiros pretos, foi frustrado pela demanda deles de — como faziam no tempo do antigo dono — “trazer suas armas de fogo ao campo e parar de trabalhar sempre que alguma caça passasse por ali.” Russell também exalta tanto greves organizadas quanto suspensões do trabalho — simplesmente tirarem um feriado quanto considerassem necessário para sua saúde — contra empregadores, por homens libertos em todo o Sul. Da mesma forma as greves-relâmpago durante a Segunda Guerra Mundial, que eram feitas geralmente em resposta a ordens de aceleração do ritmo de trabalho e de horas adicionais.
O mesmo é verdade do tratamento dado por ele à resistência da classe trabalhadora branca à imposição de disciplina de trabalho nos primeiros dias do sistema de fábricas. “Quando as primeiras fábricas foram construídas, com suas regras de trabalho regimentadas e longas horas, muitas das pessoas brancas nelas empregadas revelaram-se trabalhadoras horríveis.” Russell escreve, em tom claramente favorável, acerca das altas taxas de rotatividade de trabalhadores despedidos por atos de pequena desobediência na indústria têxtil da Nova Inglaterra, e de tentativas de instituição de uma versão americanizada da “santa segunda-feira.”
É claro, também, que Russell não é defensor direitista das prerrogativas dos empregadores (“afinal de contas, você escolheu trabalhar lá!”) do tipo que você vê tipicamente nos círculos “libertários” majoritários, do fato de ele tomar o lado dos Homens Libertados em tentativas de empregadores de ordenarem a regularização de seus casamentos enquanto escravos como condição de emprego.
Acredito que Russell, em rejeitando a análise esquerdista da “cultura de consumo,” joga fora o bebê com a água do banho. Ao enfatizar as áreas em comum dos críticos da esquerda com o paternalismo e o pudicismo burguês, negligencia a a extensão em que a ascensão da “cultura do consumo” foi ela própria parte de uma estratégia deliberada de imposição da disciplina do trabalho pelas elites capitalistas corporativas. Ideólogos capitalistas do período pós-Segunda Guerra Mundial, em sua exaltação dos efeitos da cultura de consumo sobre a classe trabalhadora, usaram linguagem muito parecida com suas contrapartes de dois séculos antes que propuseram os Cercos como antídoto para a “santa segunda-feira.” É irônico que Russell, que exalta a escolha, pelos trabalhadores estadunidenses, do lazer acima do trabalho e ataca críticos de esquerda do consumo em massa por seu alegado “elitismo,” ignore a relação entre as duas questões. As elites corporativas daquele período deliberada e explicitamente promoveram uma economia de consumo em massa como forma de impedir a escolha do lazer em vez do trabalho, e empreenderam um projeto de engenharia cultural para igualar o consumo de bens comprados em lojas a “americanismo” e “respeitabilidade” e para igualar o feito em casa a “antiquado” e “rural.”
Embora Russell repetidamente aluda a argumentos de obras tais como Capitães da Consciência, segundo os quais a cultura do consumo foi imposta a partir de cima, ele nunca trata qualquer das evidências reais neles apresentados. A quantidade de papel de comentário, pelas classes proprietárias, expressando seu desejo de impor a disciplina do trabalho por meio de “fáceis pagamentos mensais,” é tão volumosa quanto a dos defensores do Cerco dois séculos antes.
Embora Ewen et al sem dúvida tenham tido seu lado puritano, também tinham muito a dizer acerca de consumismo como instrumento de controle social exatamente do tipo que Russell em geral acha tão abominável. Em focando tão fortemente um aspecto da obra deles a expensas do outro, acredito que ele presta-lhe desserviço e vai longe demais, caindo no mesmo falso populismo unilateral dos direitistas de Mises.org. Os críticos de esquerda da cultura de consumo têm pelo menos tanto em comum com Russell quanto têm com os puritanos dos anos 1770.
Em celebrando os aspectos liberatórios da revolução do consumo, acredito que Russell negligencia a extensão em que a cultura do consumo solapou a autonomia. Especificamente, ele negligencia a extensão em que a proporção de trabalho assalariado para dada unidade de consumo é ela própria matéria contingente. Na medida em que altos custos de marketing e distribuição, diferenciação de nome de marca, e obsolescência planejada refletem um modelo de negócios rumo ao qual o estado artificialmente viciou a balança, eles inflam artificialmente os custos de dada qualidade de vida. Consideremos, por exemplo, os custos quadruplicados de nome de marca de bens têxteis, roupas e acessórios comprados em loja, comparados com bens no atacado genéricos praticamente idênticos, como descrito por Ralph Borsodi em A Era da Distribuição.
Ao descartar críticas da cultura de consumo por seu alegado puritanismo ou elitismo, Russell negligencia a extensão em que o aumento da dependência do trabalho assalariado para maior volume de consumo pródigo também reduz o poder de barganha e aumenta a precariedade da vida da classe trabalhadora. É muito mais difícil suspender espontaneamente o trabalho para gozar a santa segunda-feira quando você está à distância de um cheque de pagamento de ser despejado ou de o homem do reempossamento levar seu carro ou máquina de lavar.
Artigo original afixado por Kevin Carson 31 de março de 2013.
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.