The following article is translated into Portuguese from the English original, written by Kevin Carson.
Feudalismo de Contrato (PDF) foi originalmente publicado na edição de 2006 de Notas Econômicas No. 105 pela Aliança Libertária, escrito por Kevin Carson.
O que é “Feudalismo de Contrato”?
Recentemente, Elizabeth Anderson cunhou a expressão “feudalismo de contrato” para descrever o crescente poder dos empregadores sobre as vidas dos empregados fora do local de trabalho.
De acordo com Anderson, um dos benefícios que o trabalhador tradicionalmente recebia em troca de sua submissão à autoridade dos chefes no emprego era soberania sobre o resto de sua vida no “mundo real” fora do trabalho. Nos termos dessa barganha taylorista, o trabalhador abria mão de seu senso de perícia profissional e controle de sua própria obra em troca do direito de expressar sua personalidade “real” por meio de consumo na parte de sua vida que ainda pertencia a ele. Essa barganha assumia
a separação do trabalho em relação ao lar. Por mais arbitrário e abusivo que o chefe pudesse ter sido no chão de fábrica, quando o trabalho acabava os trabalhadores podiam pelo menos escapar da tirania dele… [A] separação de trabalho e lar fazia grande diferença na liberdade dos trabalhadores em relação aos desejos de seus empregadores. [1]
O trabalho assalariado, tradicionalmente, tem envolvido um pacto com o diabo no qual você “vende sua vida para poder viver”: você extirpa as oito ou doze horas que passa no trabalho jogando-as na privada e dando a descarga, a fim de obter o dinheiro de que precisa para manter sua vida real no mundo real, onde é tratado como ser humano adulto. E no mundo real, onde sua opinião e seus valores realmente importam, você tenta fingir que aquele outro lugar opressivo não existe.
Ao mesmo tempo, destaca Anderson, essa separação de trabalho e lar depende inteiramente do poder de barganha relativo da força de trabalho para que sua observância seja compelida. (Voltarei a este ponto, a questão central, mais tarde.)
O Deslocamento do Poder
É porém óbvio que o poder de barganha da força de trabalho está sendo radicalmente alijado dos trabalhadores. Para demasiados trabalhadores, o tradicional pacto com o diabo não mais basta. Os empregadores (especialmente no setor de serviços) estão cada vez mais vendo como sua propriedade não apenas a capacidade de trabalho do empregado durante as horas de labor, como também o próprio empregado. Espera-se que trabalhadores de escritório e de serviços estejam de plantão 24 horas por dia: aquela coisa que eles costumavam chamar de “lar” é apenas a prateleira onde ficam guardados quando seu dono não os está usando no momento. E o chefe tem ascendência sobre o que eles fazem mesmo durante o tempo fora do horário de trabalho: as reuniões políticas das quais você participa, se você fuma, as coisas que você escreve em seu blog — nada é realmente seu. A maior parte das pessoas que bloga acerca de questões políticas ou sociais teme o que possa acontecer se a Gestapo de Recursos Humanos googlá-la. Quanto à procura de emprego ela própria — bom Deus! Você tem de descrever cada semana durante a qual ficou desempregado, e justificar que uso fez de seu tempo sem patrão. Se você alguma vez foi autônomo, poderá ser considerado “superqualificado” : Isto é, há o perigo de você não estar realmente firme em sua decisão, já que não precisa do emprego tão ardentemente. Para não mencionar as perguntas acerca de por que você saiu do emprego anterior, o delineamento de perfil para determinar se você não estará escondendo qualquer opinião diferente das de uma Esposa de Stepford por trás de uma fachada de obediência, etc… É algo provavelmente muito parecido com os testes de “fidedignidade política” para ingressar no antigo Partido Comunista Soviético.
Exemplos de feudalismo de contrato têm aparecido com especial destaque no noticiário recentemente. O exemplo que a própria Anderson ofereceu foi o da Weyco, com sede em Michigan, cujo presidente proibiu seus trabalhadores de fumar “não apenas no trabalho mas em qualquer outro lugar.” Essa política, adotada como resposta ao custo ascendente da cobertura de saúde, exigia que os trabalhadores se submetessem a testes de nicotina. [2]
Outro recente exemplo de “feudalismo de contrato” é a saga de Joe Gordon, dono do blog Woolamaloo Gazette, demitido da rede de livrarias Waterstone quando chegou ao conhecimento de seus chefes que ele havia afixado o ocasional texto de desabafo depois de um dia particularmente difícil no trabalho. [3]
Outro caso ainda é o da Junta Nacional de Relações do Trabalho (NLRB) ao decidir que os empregadores tinham permissão para proibir empregados de se descontraírem fora do local de trabalho. Eis aqui a essência da coisa, de um artigo de Harold Meyerson no Washington Post:
Em 7 de junho três Republicanos nomeados para a junta de cinco membros que regulamenta as relações empregador/empregado nos Estados Unidos baixaram notável estipulação que expande os direitos dos empregadores de interferir nas vidas de seus trabalhadores quando fora do emprego. Eles confirmaram a legalidade de uma regulamentação para empregados uniformizados da Guardsmark, empresa de guardas de segurança, que reza: “[V]ocê NÃO pode… associar-se/criar amizade, quando em serviço ou de folga, encontrar-se social/romanticamente, ou tornar-se excessivamente afável para com os empregados do cliente ou para com colegas empregados.” [4]
A Reação do “Libertarismo Vulgar” e Seus Erros
Muitos libertários de livre mercado reagem instintivamente a reclamações acerca de políticas dessa espécie cerrando fileiras em torno do empregador. Um comentador, por exemplo, diz o seguinte em resposta à postagem de Elizabeth Anderson no blog EsquerdaADireita: “Trata-se de um livre mercado. Se você não gosta das regras de seu empregador, vá trabalhar em outro lugar.” Uma das defesas libertárias mais comuns de locais de trabalho em condições aviltantes, analogamente, é a de que eles só podem ser melhores do que as alternativas disponíveis, visto que ninguém é forçado a trabalhar ali.
Bem, sim e não. A questão é, quem estabelece o espectro das alternativas disponíveis? Se o estado limita o espectro das alternativas disponíveis para a força de trabalho e debilita o poder de barganha dela no mercado de trabalho, e age em conluio com os empregadores ao fazê-lo, então a defesa de “livre mercado” dos empregadores torna-se um tanto não cândida.
Uso a expressão “libertário vulgar” para descrever aquele entendimento dos princípios do “livre mercado” do tipo “O que é bom para a General Motors,” que identifica o livre mercado com os interesses dos empregadores contra os trabalhadores, das grandes empresas contra as pequenas, e do produtor contra o consumidor. Como descrevi em Estudos em Economia Política Mutualista:[5]
Os apologistas libertários vulgares do capitalismo usam a expressão “livre mercado” de maneira equívoca: parecem ter dificuldade em lembrar-se, de um momento para o seguinte, de se estão defendendo na realidade o capitalismo hoje existente ou princípios do livre mercado. Assim tomamos [um] artigo de gabarito padrão… argumentando que os ricos não podem ficar ricos a expensas dos pobres, porque “não é assim que o livre mercado funciona”— assumindo implicitamente que temos um livre mercado. Quando questionados, eles admitem de má vontade que o presente sistema não é um livre mercado, e que inclui muita intervenção do estado no interesse dos ricos. Logo porém que acham que podem safar-se impunes, voltam a defender a riqueza das corporações hoje existentes com base nos “princípios do livre mercado.”
O fato é, não temos livre mercado. É um sistema capitalista de estado no qual (como disse Murray Rothbard em “A Revolução dos Estudantes”) “nosso estado corporativo usa o poder coercitivo da tributação ou para acumular capital corporativo ou para diminuir os custos corporativos.”[6] Como Benjamin Tucker escreveu há mais de um século:
… Não é bastante, por mais que seja verdade, dizer que “se um homem tiver força de trabalho para vender, terá de encontrar alguém com dinheiro para comprá-la”; é indispensável acrescentar que, muito mais importante do que isso, se um homem tem força de trabalho para vender, tem o direito a um livre mercado onde vendê-la — um mercado onde ninguém seja impedido, por leis restritivas, de obter honestamente o dinheiro para comprá-la. Se o homem com força de trabalho para vender não tiver esse livre mercado, então sua liberdade é violada e sua propriedade virtualmente tomada dele. Ora, tal mercado tem sido constantemente negado, não apenas aos trabalhadores em Homestead, mas aos trabalhadores de todo o mundo civilizado. E os homens que o têm negado são os Andrew Carnegies. Capitalistas dos quais esse senhor das forjas é representante típico colocaram e mantiveram nos códices legais todos os tipos de proibições e tributos (dos quais a tarifa alfandegária conta-se entre os menos danosos) projetados para limitar, e eficazes em limitar, o número de ofertantes em busca da força de trabalho daqueles que têm força de trabalho para vender…
… Que Carnegie, Dana e Companhia primeiro assegurem toda lei em violação da igualdade de liberdade ter sido retirada dos códices legais. Se, depois disso, quaisquer trabalhadores interferirem com os direitos de seus empregadores, ou usarem a força contra inofensivos “fura-greves,” ou atacarem vigias de seus empregadores, sejam esses detetives da Pinkerton, assistentes de xerifes, ou a milícia do Estado, eu próprio prometo que, como anarquista e em consequência de minha fé anarquista, estarei entre os primeiros a voluntariar-me como membro de uma força para reprimir esses perturbadores da ordem e, se necessário, varrê-los da terra. Enquanto porém essas leis invasivas permanecerem, terei de ver todo conflito envolvendo uso de força que surja como consequência de uma violação original da liberdade por parte das classes empregadoras e, se alguma varredura for feita, que possam ser os trabalhadores quem empunhe a vassoura! Ainda assim, embora minhas simpatias se dirijam pois para o oprimido, nunca deixarei de proclamar minha convicção de que nenhum aniquilamento de uma das partes poderá assegurar justiça, e que a única varredura eficaz será aquela que apague dos códices legais toda restrição à liberdade do mercado… [7]
De que restrições, entretanto, poderia ele estar falando? Ao ler defesas convencionais do “livre mercado” no tocante às relações de emprego hoje existentes, você ficaria com a ideia de que as únicas restrições à liberdade do mercado são aquelas que prejudicam as classes proprietárias e as grandes empresas (você sabe, a “derradeira minoria perseguida” ).
Na verdade, tal apologética libertária vulgar partilha de um conjunto muito artificial de assunções: veja,simplesmente ocorre os trabalhadores se verem diante desse conjunto escasso de opções — as classes empregadoras não têm nada a ver com isso. E simplesmente acontece as classes proprietárias terem todos esses meios de produção nas próprias mãos, e simplesmente acontece as classes trabalhadoras serem formadas de proletários sem propriedade forçados a vender sua força de trabalho nas condições dos proprietários. A possibilidade de as classes empregadoras poderem estar diretamente implicadasem políticas do estado que reduziram as opções disponíveis para os trabalhadores é ridícula demais para sequer ser cogitada.
É a velha história para crianças da acumulação primitiva. “Lenin,” do blogTúmulo de Lenin, recorda-se de ter sido exposto a ela nas escolas do governo:
A ilusão de um contrato livre e igualitário entre empregado e empregador exerce forte influência, particularmente dada a escassez de conflito industrial nos últimos quinze anos. A ideia de que a situação possa ter sido manipulada de antemão, em virtude do controle dos meios de produção pelos capitalistas, é tão óbvia que escapa à atenção de muitas pessoas que sob outros aspectos se posicionam na Esquerda.
Em parte isso ocorre porque as pessoas são preparadas, desde tenra idade, para esperar e aceitar esse estado de coisas. Nas aulas de Estudos de Negócios do curso médio, foi mostrado a mim, e a meus colegas de classe, um vídeo patrocinado por algum banco, o qual procurava mostrar como veio a acontecer a divisão do trabalho. Tudo havia acontecido, parecia, de maneira relativamente benigna e pacífica, sem a interferência de questões políticas ou fases econômicas. Do homem das cavernas aos cartões de débito, tudo em realidade se limitou a o trabalho ser decomposto em tarefas separadas que seriam empreendidas pelos mais capazes de desempenhá-las. Em seguida, entrando em contato com vilas próximas, eles trocariam os bens para cuja feitura eram hábeis pelas coisas para feitura das quais as outras vilas eram hábeis. A única coisa interessante acerca daquele vídeo de propagando é que ele não fez levantar nenhum sobrolho — como era possível? É-se levado a trabalhar para um capitalista sem ver nada necessariamente errado a respeito, e a pessoa não tem nada com que comparar aquilo. O trabalhador aprende a vender-se (todos aqueles esquemas de treinamento para entrevistas de emprego) sem perceber-se a si próprio como mercadoria. [8]
Tive reação semelhante diante de todas as passagens acerca de preferência de tempo em Bohm-Bawerk e Mises que simplesmente aceitaram, como coisa natural/esperada, que uma pessoa estavaem posição de “contribuir” com capital para o processo de produção, enquanto outra, por algum motivo misterioso, precisava dos meios de produção e do financiamento do trabalho tão generosamente “proporcionados.”
O mais famoso crítico dessa história para crianças, naturalmente, foi o socialista de estado Karl Marx:
Em tempos de há muito idos havia dois tipos de pessoas; um, o da elite diligente, inteligente e, acima de tudo, frugal; o outro, biltres preguiçosos, gastando sua subsistência, e mais ainda, em vida desregrada. A lenda do pecado original teológico certamente conta-nos como o homem veio ser condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; mas a história do pecado original econômico revela-nos haver pessoas para as quais isso de modo algum é essencial. Pouco importa! Assim veio a ocorrer que o primeiro tipo acumulou riqueza, e o último tipo por fim nada mais tinha para vender a não ser seu próprio couro. E desse pecado original data a pobreza da grande maioria que, a despeito de todo o seu trabalho, até agora nada mais tem para vender senão a si própria, e a riqueza dos poucos que aumenta constantemente embora desde há muito eles tenham parado de trabalhar. [9]
A crítica, porém, de modo algum é feita só pelos estatistas. O defensor do livre mercado Franz Oppenheimer escreveu:
De acordo com Adam Smith, as classes numa sociedade são resultado de desenvolvimento “natural.” A partir de um estado original de igualdade, elas surgiram sem outra causa a não ser o exercício das virtudes econômicas da industriosidade, frugalidade e previdência…
[A] dominação de classe, nessa teoria, é o resultado de uma diferenciação gradual a partir de um estado original de igualdade e liberdade, sem implicação nele de qualquer poder extraeconômico…
Essa prova assumida está baseada no conceito de uma “acumulação primitiva,” ou um suprimento original de riqueza, em terras e propriedade móvel, surgida de forças puramente econômicas; doutrina com razão escarnecida por Karl Marx como “conto de fadas.” Seu esquema de raciocínio aproxima-se do seguinte:
Em algum lugar, em algum país espaçoso e fértil, determinado número de homens livres, de condição igual, formam uma associação para proteção mútua. Gradualmente eles se diferenciam em classes do ponto de vista da propriedade. Aqueles melhores dotados de energia, descortínio, capacidade de poupar, industriosidade e cautela vagarosamente adquirem quantidade básica de propriedade real ou móvel; enquanto os estúpidos e menos eficientes, e aqueles dados a incúria e desperdício, permanecem sem posses. Os abastados emprestam sua propriedade produtiva aos de menos recursos em troca de tributo, em forma de aluguel do solo ou de lucro, e tornam-se em decorrência continuamente mais ricos, enquanto que os outros sempre continuam pobres. Essas diferenças de posse gradualmente desenvolvem distinções de classe social; visto que em toda parte os ricos têm preferência, na medida em que só eles dispõem do tempo e dos meios para dedicarem-se aos assuntos públicos e para moldar as leis por eles administradas em proveito próprio. Assim, ao longo do tempo, desenvolve-se uma classe dominante e dona de propriedades, e um proletariado, uma classe sem propriedades. O estado primitivo de confrades livres e iguais torna-se um estado de classes, por lei inerente de desenvolvimento porque, em toda massa concebível de homens há, como facilmente se pode ver, fortes e fracos, ajuizados e insensatos, precavidos e desperdiçadores. [10]
Como Chegamos A Onde Estamos Hoje
No mundo real, obviamente, as coisas são um pouco menos róseas. Os meios de produção, durante os séculos da época capitalista, têm-se concentrado em poucas mãos graças a um dos maiores assaltos da história humana. Os camponeses da Grã-Bretanha foram privados de direitos consuetudinários de propriedade da terra, por meio de cercos e outros furtos sancionados pelo estado, e tangidos para as fábricas como gado. E os donos de fábricas beneficiaram-se, adicionalmente, de controles sociais próximos do totalitarismo em relação ao movimento e à livre associação dos trabalhadores; esse regime legal incluiu asLeis da Coalizão, a Lei do Tumulto, e a lei dos assentamentos (esta última equivalendo a um sistema de passaporte interno).
A propósito: se você acha que as passagens acima são apenas retórica marxoide, tenha em mente que a literatura da classe dominante do início da revolução industrial estava cheia de queixas acerca do quanto era difícil obter trabalhadores para as fábricas: não apenas as classes mais baixas não afluíam para as fábricas por vontade própria, como as classes proprietárias gastaram muita energia pensando em maneiras de forçá-las a fazer isso. Os empregadores da época lançavam-se a conversa muito franca, tão franca quanto a de qualquer marxista, acerca da necessidade de manter as pessoas trabalhadoras destituídas e de destituí-las de acesso independente aos meios de produção, a fim de fazê-las trabalhar arduamente o bastante por preço módico o suficiente.
Albert Nock, que seguramente ninguém sonhará pudesse ser marxista, desqualificou a história para crianças burguesa com típico menosprezo nockiano:
Os horrores da vida industrial da Inglaterra no último século dão azo a permanente argumentação por parte dos viciados em intervenção positiva. Trabalho infantil e trabalho de mulheres nas moendas e minas; Coketown e o Sr. Bounderby; salários de inanição; horas assassinas; condições de trabalho aviltantes e perigosas; navios segurados excessivamente, de tal maneira que valiam mais afundados do que flutuando, tripulados por rufiões — tudo isso eloquente mas insinceramente atribuído a um regime de escabroso individualismo, competição desabrida, e laissez-faire. Isso é óbvio absurdo, pois tal regime nunca existiu na Inglaterra. Tudo se deveu à precípua intervenção do Estado por meio da qual a população da Inglaterra foi expropriada da terra; devido à remoção, pelo Estado, da terra da competição com a indústria em busca de força de trabalho. Nem tiveram o sistema de fábricas e a “revolução industrial” qualquer coisa a ver com criar aquelas hordas de seres miseráveis. Quando o sistema de fábricas surgiu, aquelas hordas já estavam lá, expropriadas, e foram para as moendas em troca de qualquer coisa que o Sr. Gradgrind e o Sr. Plugson de Undershot lhes desse, porque não tinham escolha a não ser mendigar, furtar ou morrer de inanição. Sua miséria e degradação não eram de ser encontradas à porta do individualismo; eram de ser encontradas em nenhum outro lugar que à porta do Estado. A economia de Adam Smith não é a economia do individualismo; é a economia dos donos de terras e de moendas. Nossos entusiastas da intervenção positiva farão bem em ler a história das Leis dos Cercos e a obra dos Hammonds, e em tirar suas conclusões a partir daí. [11]
Mesmo no assim chamado “livre mercado” que pretensamente se teria seguido em meado século 19, os donos de capital e terra conseguiam cobrar tributo da força de trabalho, graças a uma estrutura legal geral que (entre outras coisas) restringia o acesso dos trabalhadores a seu pequeno capital auto-organizado por meio de bancos mútuos. Como resultado desse “monopólio do dinheiro,” os trabalhadores tiveram de vender sua força de trabalho num “mercado de compradores” em condições estabelecidas pelas classes proprietárias e pois pagar tributo (em forma de salário inferior ao produto de seu trabalho) para acesso aos meios de produção. Portanto o trabalhador foi assaltado duplamente: pelo uso inicial da força pelo estado para impedir uma economia de mercado centrada no produtor; e pela permanente intervenção do estado que o obriga a vender sua força de trabalho por menos do que seu produto. A vasta maioria do capital acumulado hoje é resultado, não do trabalho e da frugalidade do capitalista no passado, e sim de assalto.
Ora pois, mesmo no assim chamado século 19 do “laissez-faire,” como Tucker descreveu a situação, o nível de intervenção estatista no interesse das classes proprietárias e empregadoras já distorcia o sistema de salários encaminhando-o para todo tipo de rumos autoritários. O fenômeno do trabalho assalariado só existiu na medida em que resultado do processo de acumulação primitiva por meio do qual as classes produtoras haviam, em séculos anteriores, sido roubadas de sua propriedade em termos de meios de produção e forçadas a vender sua força de trabalho nos termos dos chefes. E graças à restrição do estado ao crédito auto-organizado e ao acesso a terra não ocupada, que permitiu aos donos de terra e capital artificialmente escassos cobrar tributo para acesso a eles, os trabalhadores viram-se diante da permanente necessidade de vender sua força de trabalho em condições ainda mais desvantajosas.
O problema foi exacerbado durante a revolução capitalista de estado do século 20, por níveis ainda mais altos de intervenção corporatista, e pela resultante centralização da economia. O efeito dos subsídios do governo e da cartelização regulamentadora foi o de disfarçar ou transferir os custos de ineficiência da organização de larga escala, e promover um modelo de organização de negócios capitalista de estado muito maior, e muito mais hierárquico e burocrático, do que aquele que teria conseguido sobreviver num livre mercado.
Os subsídios do estado para desenvolvimento da produção capital-intensiva, à medida que o século avançava, promoveram desqualificação profissional e hierarquias internas cada vez maiores, e reduziram o poder de barganha que advinha do controle, pela força de trabalho, do processo de produção. Muitas das mais poderosamente profissionalmente desqualificadoras formas de tecnologia de produção foram criadas como resultado dos subsídios do estado para pesquisa e desenvolvimento. Como escreveu David Montgomery em Forças da Produção: História Social da Automação Industrial,
[I]nvestigação do real projeto e uso de tecnologia capital-intensiva, poupadora de trabalho, redutora de qualificação profissional, tem começado a indicar que a redução de custos não era motivação precípua, e nem era conseguida. Em vez de tal estímulo econômico, a mais importante motivação por trás do desenvolvimento do sistema estadunidense de manufatura era militar; o principal promotor dos novos métodos não era o mercado capaz de ajustar-se a si próprio, mas o extramercado Departamento de Artilharia/Arsenal do Exército dos Estados Unidos… O empuxo para automatizar foi, desde o início, o empuxo para reduzir dependência de mão-de-obra qualificada, para desqualificar profissionalmente a mão-de-obra necessária, e não o para aumentar os salários. [12]
Finalmente, a decisão das elites neoliberais nos anos 1970 de congelar os salários reais e transferir todos os aumentos de produtividade para reinvestimento, dividendos ou salários de gerência superior levou a uma força de trabalho ainda mais insatisfeita, e à necessidade de sistemas internos de vigilância e controle muito além de qualquer coisa que existira antes. Gordo e Mesquinho, de David M. Gordon[13], refere-se, em seu subtítulo, ao “Mito do Enxugamento Gerencial.” Gordon mostra que, contrariamente à percepção equivocada do público, as empresas, em sua maioria, empregam ainda mais gerência intermediária do que antes; e uma das principais funções desses novos supervisores é aumentar o controle da gerência sobre uma força de trabalho cada vez mais sobrecarregada de trabalho, insegura, e ressentida. A cultura profissional nos departamentos de Recursos Humanos está, cada vez mais, engrenada para detectar e sustar sabotagem e outras expressões de insatisfação do empregado, por meio de sofisticados mecanismos de vigilância interna, e para identificar atitudes potencialmente perigosas em relação à autoridade por meio de delineamento intensivo de perfil psicológico.
Os capitalistas de estado, desde a adoção de seu novo consenso liberal dos anos Setenta, resolveram a todo custo criar uma sociedade na qual o trabalhador médio esteja tão desesperado por trabalho que gratamente aceite qualquer emprego oferecido, e faça o que for necessário para agarrar-se a ele como a uma tábua de salvação.
Para resumir…
… as coisas não simplesmente “ocorreram” desse modo. Elas tiveram ajuda. O poder de barganha reduzido da força de trabalho, a resultante erosão dos limites tradicionais entre trabalho e vida privada, e o crescente controle da gerência mesmo sobre o tempo de folga são, todos, resultado de esforços políticos concertados.
O fato de aceitarmos como natural um estado de coisas no qual uma classe tem “empregos” para “ dar” e outra classe é forçada a aceitá-los, por falta de acesso independente aos meios de produção, é resultado de gerações de hegemonia ideológica pelas classes proprietárias e seus apologistas libertários vulgares.
Nada na presente situação é implicação natural dos princípios do livre mercado.Como escreveu Albert Nock,
Nossos recursos naturais, embora muito exauridos, ainda são abundantes; nossa população é muito escassa, algo entre vinte a vinte e cinco pessoas por milha quadrada; e alguns milhões dessa população estão no momento “desempregados,” e com probabilidade de assim permanecerem porque ninguém irá ou poderá “dar-lhes trabalho.” O ponto não é que os homens generalizadamente se submetam a esse estado de coisas, ou que o aceitem como inevitável, e sim que eles nada veem de irregular ou anômalo nisso por causa da ideia neles instilada de que o trabalho é algo a ser dado. [14]
Claire Wolfe destacou, em seu brilhante artigo “Sombrios Cubículos Satânicos,” nada haver de libertário na cultura hoje existente de relações de emprego:
Numa comunidade humana saudável, os empregos nem são necessários nem desejáveis. Trabalho produtivo é necessário – por razões econômicas, sociais e até espirituais. Os livres mercados são também algo estupendo, quase mágicos em sua capacidade de satisfazer biliões de necessidades diversas. Empreendedorismo? Excelente! Mas empregos – partir para um cronograma fixo para desempenhar funções fixas para outrem, dia após dia, por um salário – não são bons para corpo, alma, família ou sociedade.
Intuitivamente, sem palavras, as pessoas sabiam disso em 1955. Elas sabiam disso em 1946. Elas realmente sabiam disso quando Ned Ludd e amigos despedaçavam as máquinas do início da Revolução Industrial (embora os Ludditas possam não ter entendido exatamente por que precisavam fazer o que fizeram).
Empregos são maçantes. O emprego corporativo é fastidioso. Passar a vida enfiado em caixas das 9 às 5 é uma porcaria. Cubículos cinzentos são apenas uma versão atualizada dos “sombrios moinhos satânicos” de William Blake.Certo, os cubículos são mais iluminados e arejados; são porém diferentes mais em grau do que em natureza dos moinhos da Revolução Industrial. Ambos, cubículos e moinhos sombrios, significam trabalhar nos termos de outras pessoas, para os objetivos de outras pessoas, com sujeição ao arbítrio de outras pessoas. Nenhum desses dois tipos de trabalho usualmente resulta em tomarmos posse dos frutos de nosso trabalho ou termos a satisfação de criar algo do começo ao fim com nossas próprias mãos. Nenhum dos dois nos permite trabalhar em nosso próprio ritmo, ou ao ritmo das estações. Nenhum dos dois nos permite acesso a nossas famílias, amigos ou comunidades quando necessitamos deles ou eles necessitam de nós. Ambos isolam o trabalho de todas as outras partes de nossa vida…
Tornamos a escravatura dos salários parte tão inconsútil de nossa cultura que provavelmente nem ocorre à maior parte das pessoas haver algo de anormal em separar o trabalho do resto de nossas vidas. Ou em passar nossas vidas de trabalho inteiras produzindo coisas que nos dão apenas satisfação pessoal mínima – ou nenhuma satisfação…
Arranje um emprego, e você terá vendido parte de você próprio a um dono. Você terá acabado de excluir-se dos reais frutos de seus próprios esforços.
Quando você é dono de seu próprio trabalho, é dono de sua própria vida. É objetivo digno de muito sacrifício. E de muita reflexão profunda.
[Q]ualquer pessoa que comece a apresentar algum plano sério que comece por derruir os alicerces da estrutura de poderio estado-corporação pode esperar ser tratada como Inimiga Pública Número Um [15]
O principal obstáculo para esse último processo, escreveu ela, eram “o governo e seus fortemente favorecidos e subsidiados corporações e mercados financeiros …”
O Quanto Têm de Ser Ruins as Opções?
Antes de prosseguirmos, como anarquista de mercado tenho de deixar claro não haver nada inerentemente errado no trabalho assalariado. E, num livre mercado, os empregadores estariam dentro de seus direitos ao fazerem os tipos de exigência relacionados com o feudalismo de contrato.
O problema, de meu ponto de vista, é que o poder reduzido de barganha da força de trabalho no presente mercado de trabalho permite aos empregadores tirarem proveito indevido disso. O que merece comentário não é a questão legal de se o estado deveria “permitir” aos empregadores exercerem esse tipo de controle, e sim a questão de que tipo de mercado pretensamente livre permitiria isso.
A questão é, o quanto terão de ser execráveis as outras “opções” para que a pessoa fique desesperada o bastante para aceitar emprego nessas condições? Como é que as coisas chegam ao ponto de as pessoas fazerem fila para competir por empregos onde elas poderão ser proibidas de convívio com colegas fora do trabalho, onde até empregos reles de vendedor, com baixa remuneração, poderão envolver ficar disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana, onde os empregados não podem participar de reuniões políticas sem ficar de olho para ver se não há algum informante, ou não podem blogar usando o próprio nome sem viver com medo de estarem à distância de uma pesquisa na web da demissão?
Não sou amigo das regulamentações federais do trabalho. Não deveríamos precisar de regulamentações para impedir que esse tipo de coisa acontecesse. Num livre mercado onde terra e capital não fossem artificialmente escassos e dispendiosos em comparação com o trabalho, os empregos deveriam estar competindo por trabalhadores. O surpreendente não é que o feudalismo de contrato seja tecnicamente “legal,” e sim que o mercado de trabalho seja tão execrável que se torna o primeiro problema carente de resolução.
Como Elizabeth Anderson já sugeriu na citação acima, o segredo do feudalismo de contrato é o poder reduzido de barganha da força de trabalho. Timothy Carter coloca as alternativas em termos bem nítidos:
onde reside o real poder de ganhar uma parte do leão do benefício mútuo: no poder de levantar e sair. Se um lado tem o poder de sair da mesa e o outro lado não tem, a parte que tem o poder de sair pode obter quase tudo o que deseje desde que deixe a outra parte apenas ligeiramente melhor do que se não houvesse acordo nenhum…
O que cria desequilíbrio no poder de sair da sala? Uma das situações é a necessidade. Se um dos lados precisa de chegar a um acordo, seu poder de sair da sala acabou.
… Para a maior parte das pessoas, um emprego é a necessidade máxima. É a partir do que ganham graças ao emprego que todas as outras necessidades são satisfeitas.
Assim, pois, como podemos tornar o acordo mais justo?… A resposta dos liberais é o governo intervir na negociação trabalho-capital…
Há outro caminho. A necessidade do governo se intrometer desapareceria se o equilíbrio do poder de negociação entre trabalho e capital fosse equalizado. Atualmente, o desequilíbrio existe porque o capital pode abandonar a mesa, mas o trabalho não pode. [16]
Por um Genuíno Livre Mercado
Contrastemos a presente monstruosa situação com aquela que existiria num genuíno livre mercado: empregos competindo por trabalhadores, em vez do contrário. Eis como Tucker concebeu os efeitos favoráveis ao trabalhador de tal livre mercado:
Para, digamos, Proudhon e Warren, se a atividade bancária fosse livre para todos, cada vez mais pessoas a desenvolveriam, até que a competição se tornasse aguda o suficiente para reduzir o preço de emprestar dinheiro até o custo do trabalho, que as estatísticas mostram ser menos de três quartos de um por cento. Nesse caso os milhares de pessoas que hoje são dissuadidos de desenvolverem negócios pelas ruinosamente altas taxas que precisam pagar pelo capital com o qual começar e conduzir negócios veriam suas dificuldades removidas… Então se veria um exemplo das palavras de Richard Cobden que, quando dois trabalhadores procuram um empregador, os salários caem, mas quando dois empregadores saem à cata de um empregado, os salários sobem. O trabalhador estará então em posição de ditar seu salário e, portanto, assegurará seu salário natural, seu produto inteiro… [17]
Os autores de Perguntas Frequentes Anarquistas descreveram as consequências socialistas libertárias do livre mercado de Tucker em termos ainda mais amplos, na seguinte passagem:
É importante observar que, devido à proposta de Tucker de aumento do poder de barganha dos trabalhadores por meio de acesso ao crédito mútuo, seu anarquismo individualista não só é compatível com o controle pelos trabalhadores como, na verdade, o promoveria (bem como o requereria logicamente). Pois se o acesso ao crédito mútuo aumentasse o poder de barganha dos trabalhadores até o ponto que Tucker disse aumentaria, eles conseguiriam: (1) exigir e obter democracia no local de trabalho; e (2) juntar seu crédito para comprar e ter a propriedade de empresas coletivamente. Isso eliminaria a estrutura de cima para baixo da empresa e a capacidade dos proprietários de pagarem-se a si próprios salários injustamente altos, bem como reduziria os lucros do capitalista a zero mediante assegurar que os trabalhadores recebessem o valor pleno de seu trabalho. O próprio Tucker destacou isso quando argumentou que Proudhon (como ele próprio) “individualizaria e associaria” locais de trabalho por meio de mutualismo, o que “colocaria os meios de produção ao alcance de todos.” [18]
Portanto, em vez de os trabalhadores viverem com medo de os chefes poderem descobrir algo “ruim” acerca deles (como o fato de eles terem dito publicamente o que pensavam no passado, como homens e mulheres livres), os chefes viveriam com medo de os trabalhadores pensarem coisas más a respeito deles a ponto de levarem sua força de trabalho para outro lugar. Em vez de os trabalhadores ficarem desesperados para manter o emprego a ponto de permitir suas vidas privadas serem regulamentadas como extensão do trabalho, a gerência estaria tão desesperada para manter os trabalhadores que mudaria as condições do emprego para adaptá-las a eles. Em vez de os trabalhadores aceitarem cada vez mais humilhações para evitarem falência e falta de teto, os chefes abririam mão cada vez mais de controle sobre o local de trabalho a fim de reterem a força de trabalho. Em tal economia, os trabalhadores associados poderiam contratar capital em vez do contrário, e o estado natural do livre mercado poderia ser a produção cooperativa sob controle dos produtores.
Artigo original afixado por Kevin Carson 15 de setembro de 2012.
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.
Notas: [Por favor veja os links no original]
[1] Elizabeth Anderson, ‘Aventuras em Feudalismo de Contrato’,EsquerdaADireita, 10 de fevereiro de 2005
[2] ‘Proibição de Fumo na Empresa Significa Nas Horas de Folga, Também’, New York Times, 8 de fevereiro de 2005
[3] Patrick Barkham, ‘Blogador Demitido por Expressar Opiniões Abertamente’, The Guardian, 12 de janeiro de 2005
[4] Harold Meyerson, ‘O Grande Irmão No e Fora do Emprego’, Washington Post, 10 de agosto de 2005
[5] Autopublicado. Fayetteville, Ark., 2004
[6] O Libertário, 1o. de maio de 1969
[7] ‘A Lição de Homestead’, Liberdade, 23 de julho de 1892, em Em Vez de um Livro(Gordon Press facsímile da Segunda Edição, 1897, 1972), pp. 453-54.
[8] ‘Capitalismo e Falta de Liberdade’, Túmulo de Lenin, 1o. de abril de 2005
[9] Karl Marx e Friedrich Engels, Capitalvol. 1, vol. 35 das Obras Escolhidas de Marx e Engels (New York: International Publishers, 1996) pp. 704-5.
[10] Franz Oppenheimer, O Estado, tradução de John Gitterman (San Francisco: Fox and Wilkes, 1997), pp. 5-6.
[11] Albert Nock, Nosso Inimigo, o Estado (Delavan, Wisc. Hallberg Publishing Company, 1983), p.106n.
[12] (Knopf, 1984)
[13] (Free Press, 1996)
[14] Nosso Inimigo, o Estado, p. 82.
[15] Claire Wolfe, ‘Sombrios Cubículos Satânicos’, Loompanics Unlimited 2005Catálogo Principal
[16] Timothy Carter, Alternativas ao Salário Mínimo’, Liberal Livre, 11 de abril de 2005
[17] “Socialismo de Estado e Anarquismo,” Em Vez de um Livro, p. 11.
[18] “G.5 ‘Benjamin Tucker: Capitalista ou Anarquista?’” Perguntas Frequentes Anarquistas