Todo ano, nesta época, alguém do mundo libertário de direita, repetindo ritual obrigatório de Ação de Graças, faz voltar à tona a velha ladainha acerca de os Peregrinos, em Plymouth, quase morrerem de fome por causa do “comunismo,” até direitos privados de propriedade e capitalismo os salvarem. Este ano, John Stossel (“Deveríamos Estar Agradecidos pela Propriedade Privada,” Reason, 27 de novembro) colhe as honras.
Na versão com que somos aquinhoados, os Puritanos, impelidos por idealismo equivocado, inicialmente tratam de restaurar o primitivo comunismo cristão do Livro dos Atos, “tendo todas as coisas em comum.” Stossel caracteriza o arranjo como soando “como algo proveniente de Karl Marx.” Quando os óbvios problemas de incentivo implícitos naquela prática levaram a inanição, os colonos tiveram de aceitar a realidade e dividiram a terra, passando a trabalhá-la individualmente. A produção disparou, a inanição foi revertida, e todo mundo ficou feliz.
Não foi assim, porém, que as coisas realmente se passaram.
A história, escrita por Richard Curl, acerca das cooperativas nos Estados Unidos, Para Todas as Pessoas, preenche alguns detalhes faltantes que modificam inteiramente o significado da narrativa. Curl suplementa a história de Bradford com material deColônias Inglesas, de J. A. Doyle. De acordo com Doyle, o acordo entre os Peregrinos Separatistas e a corporação dos Comerciantes Mercadores estipulava que
“[t]odos os colonos … receberiam suprimento para suas necessidades oriundo de estoque comum. Durante sete anos não haveria propriedade ou comércio individual, mas o trabalho da colônia seria organizado de acordo com as diferentes capacidades dos colonos. Ao final dos sete anos, a companhia seria dissolvida e o estoque todo dividido.
Foram incluídas duas ressalvas, uma dando direito aos colonos de separar glebas ao redor de suas casas, e a outra permitindo-lhes dois dias na semana para cultivo delas. Os parceiros de Londres, contudo, recusaram-se a fazer essas concessões, e os agentes dos emigrantes retiraram-nas, para não abrirem mão do esquema.”
Na história convencional o zelo apostólico dos Peregrinos, que desejam recriar o comunismo da Igreja primitiva, é confrontado pela dura realidade. De acordo com Curl, porém, as relações entre os colonos Puritanos e os Comerciantes Mercadores fazem mais sentido à luz de significado implícito inteiramente diferente — as relações do campesinato inglês com as classes proprietárias de terras do País Velho: “Os colonos, a maioria dos quais formada de arrendatários rurais nos campos abertos de um velho parque de caça senhorial em Nottinghamshire, consideravam que a exigência dos investidores essencialmente reduzia-os à condição de servos. Os colonos não estavam pedindo mais do que o normal no sistema senhorial da Inglaterra em vigor desde a Idade Média. Os camponeses trabalhavam nos campos do senhor mas também tinham tempo para trabalhar glebas individuais para suas necessidades familiares.”
A história de Plymouth é por vezes comparada à da agricultura nos últimos dias da União Soviética, onde a maior parte do alimento consumido vinha de glebas familiares privadas — essencialmente hortas domésticas com algum gado de pequeno porte ali inserido. Se a população soviética inteira tivesse sido forçada a subsistir só com a produção das fazendas estatais e coletivas, o resultado teria sido inanição em massa — exatamente como em Plymouth. Esse paralelismo é inteiramente correto. O que a versão com que somos aquinhoados da história de Plymouth deixa de fora, entretanto, é que o papel da “fazenda coletiva” no pequeno drama é obra não de ingênuos Puritanos extremados procurando “ter todas as coisas em comum,” e sim de corporação privada credenciada pela coroa inglesa.
E, do modo que descreve Curl, o sistema de glebas privadas adotado depois da rebelião contra os Comerciantes Mercadores tampouco assemelhava-se às ideias modernas de domínio pleno da “propriedade privada.” Soa mais como o sistema de campo aberto de que os colonos tinham tido experiência em Nottinghamshire: As glebas familiares eram ad hoc, a serem periodicamente redivididas, e não passíveis de herança.
Portanto o análogo adequado ao que quase exterminou os Peregrinos não é, ao contrário do que diz Stossel, “Karl Marx” ou “políticos e formadores de opinião [presumivelmente de esquerda].” É o senhor da herdade inglesa — ou corporação das 500 da Fortune. A história, porém, como de fato aconteceu, é ainda assim evidência dos males do estatismo e dos benefícios da cooperação voluntária. Os Comerciantes Mercadores, como as 500 empresas da Fortune de hoje, formavam uma corporação credenciada que dependia inteiramente dos benefícios e dos privilégios legais concedidos pelo estado. As fórmulas de convivência que essa corporação tentou impor aos colonos de Plymouth eram as mesmas das estipulações extrativas prevalecentes na herdade inglesa, feitas cumprir pelos privilégios legais que o estado conferia à nobreza fundiária. E o novo sistema pelo qual os Peregrinos as substituíram foi o vetusto sistema de campo aberto que vilas de camponeses haviam espontaneamente criado para si próprias, com ausência de interferência coercitiva, desde épocas neolíticas.
Artigo original afixado por Kevin Carson em 27 de novembro de 2013.
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.