Acabo de ler que pais de estudante autista do ensino médio detido em operação de cilada de drogas em Temecula, Califórnia, em dezembro último, moveram processo contra o distrito escolar. Os pais estavam “inicialmente satisfeitos com seu filho ter feito seu primeiro e único amigo no ano passado na escola,” mas ficaram desconfiados quando o tal “amigo de escola” continuamente arranjava desculpas para não ir à casa deles. O “amigo,” na realidade o Xerife Adjunto do Condado de Riverside, Daniel Zipperstein, “pressinou o filho deles, solitário e vulnerável, com mais de 60 mensagens de texto ao longo de cerca de três semanas insistindo para que ele comprasse meio baseado de maconha de um homem sem moradia.”
A própria existência de “operações de cilada,” por meio das quais pessoal da área de repressão instiga atividade ilegal — em outras palavras, atos em princípio ilegais no curso do cumprimento de suas obrigações oficiais — diz muito acerca da natureza do estado e de suas leis. Quando criadas as primeiras forças policiais em Londres e em New York no início do século 19, elas eram vistas como formadas de funcionários apenas contratados, mas pagos para desempenhar as mesmas funções de “posse comitatus” (preservadas na arcaica prática de “detenção por cidadão”) com a mesma abrangência da competência de todos os cidadãos. A proposição de à polícia profissional ser conferida condição especial acima da de seus concidadãos nunca teria sido tolerada.
Nunca entendi a lógica por meio da qual alguém uniformizado pode cometer ato definido como ilegal em lei escrita, no curso de operação de cilada, sem esse alguém ele próprio violar a lei. Se é ilegal cidadão oferecer para venda drogas ou atos sexuais, ou instigar sua venda por outrem, como poderá ser legal policial oferecer-se para comprar ou vender drogas de um cidadão?
A resposta, naturalmente, é que o estado não consegue funcionar usando a mesma lógica aplicável a seus cidadãos. De certa feita eu disse a colega de trabalho que, no tocante a operações de cilada de drogas e sexo, os policiais deveriam estar sujeitos às mesmas leis referentes a instigação que eles nos fazem cumprir. A resposta dela: “Mas então como eles poderiam pegar pessoas que fazem essas coisas?”
Boa pergunta. Obviamente, não poderiam. O estado simplesmente não consegue funcionar a menos que conceda a seus próprios funcionários, com uma piscada de olho e um toque de cotovelo, isenção das leis que todo mundo mais está obrigado a obedecer.
O estado não conseguiria fazer cumprir leis contra drogas, trabalho sexual ou qualquer outra atividade consensual se fosse literalmente restringido pelas leis como o processo devido garante na Carta de Direitos. Imaginem como a Guerra às Drogas se sairia se a Quarta Emenda fosse feita cumprir literalmente, sem qualquer das ressalvas de “expectativa razoável de privacidade” ou “causa provável” ou “boa fé” que os tribunais têm lido nela — se os policiais realmente tivessem de ter mandado especificando o lugar e o que estão procurando antes de poderem pôr o pé na propriedade de vocês? Imaginem se o confisco civil fosse tratado como violação da quinta emenda, e o estado não pudesse tomar os haveres de vocês sem primeiro acusar vocês de crime e persuadir um júri a condenar vocês. Nesses termos, não importaria se as restrições substantivas às drogas fossem tão severas quanto em Cingapura — elas seriam letra morta na prática, pois seria impossível fazê-las cumprir.
O confisco civil foi primeiro instaurado nos setores de coleta de receita do governo, porque entendeu-se, desde o início, que interpretação literal da proibição, na lei consuetudinária, de confisco de propriedade sem o devido processo legal tornaria as leis tributárias impossíveis de serem feitas cumprir. O processo legal criminal ordinário para arrecadar de evasores de tributos custaria mais do que o valor da receita.
O confisco civil efetuado por legislação administrativa, baseada na preponderência da evidência, foi originalmente uma forma de lei prerrogativa na Inglaterra. Tribunais prerrogativos como a Câmara da Estrela derivavam suas regras procedimentais da lei civil romana, tal como codificada no governo de Justiniano. A proliferação de tribunais prerrogativos sob os Stuarts contou-se entre as coisas que levaram tanto Charles I quanto James II a perderem seus tronos. Contudo, mesmo depois da ascensão de William e Mary, entendia-se que alfândega e receita eram exceção às exigências “universais” do processo devido da lei consuetudinária.
Foram as autoridades alfandegárias, funcionando sob a lei do Almirantado, que alisaram o pelo dos colonos estadunidenses no sentido contrário e provocaram a Revolução Estadunidense. Mesmo, entanto, depois da ratificação da Constituição e da Carta de Direitos, foi rapidamente estabelecido na jurisprudência que a proibição de confiscar propriedade sem julgamento por júri não se aplicava a alfândega e a receita — porque seria impossível fazê-lo.
Portanto, no final das contas, não importa o que a lei diga, e nem mesmo como, no papel, ela restrinja o estado. Se o governo precisar de isenção não escrita da lei para fazer o que deseja, obtê-la-á.
Artigo original afixado por Kevin Carson em 1o. de novembro de 2013.
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.