Aquilo que os Libertários de Direita Falham em Compreender Sobre os Últimos 100 Anos

Por Kevin Carson. Artigo original: What Right-Libertarians Fail to Grasp About the Last 100 Years, de 2 de octubre 2024. Traduzido em português por Ruan L.

Na Foundation for Economic Education, Preston Brashers, comentando uma declaração por parte de Bernie Sanders de que “este país não pode manter uma classe bilionária que está em guerra com as famílias trabalhadoras”, retrucou (em “What the Socialist Left Fails to Grasp about Wealth and Innovation in America”, no dia 28/06/2024 [28 de junho de 2024]):

“Mas, considerando as atividades vitais financiadas pelos bilionários, torna-se claro que não podemos mesmo é manter uma sociedade sem bilionários.

Nem todos os americanos são ricos. Mas, todos são mais prósperos, porque vivem em uma sociedade onde grandes empreendedores podem obter uma grande riqueza através de sua visão, inovação, e de seu trabalho duro.”

Penso que a FEE vem relançando desde 1946 este mesmo op-ed, sob diferentes autorias, com algumas poucas mudanças estilísticas. Não envelheceu bem. É uma relíquia do passado assim como Rip Van Winkle, que acorda décadas depois de um sono de décadas afins, apartado das mudanças econômicas que ocorreram desde que seus pontos foram formulados em meados do século XX. Comentaristas como Brashers continuam vivendo na era jurássica, quando a inovação tecnológica foi capital-intensiva; ao invés de, na verdade, causar uma implosão dos requerimentos de capital através da efemerização.

Conta-se que, escrevendo sobre as melhorias massivas para nossas vidas desde meados do século XIX como um resultado do investimento de capital, Brashers foca em inovações, associadas primariamente com a Segunda Revolução Industrial, que motivaram o desenvolvimento da indústria capital-intensiva de larga escala:

“Começando ao redor de 1870, ondas de novas invenções e inovações entram em cena e mudam a vida das pessoas. Em 1870, Thomas Edison inventou a lâmpada incandescente e o fonógrafo … Alexander Graham Bell inventou o telefone. Pelos anos 1880, Edison estava construindo redes elétricas, e o aço de baixo custo de Carnegie estava revolucionando o transporte e a indústria.

Nos anos 1890, Richard Sears e Alvah Roebuck estavam mandando catálogos de compra pelo correio, dando aos americanos rurais uma escolha muito maior sobre os produtos de consumidor. No início dos anos 1900, os ar condicionados de Willis Carrier estavam aumentando a produtividade nas fábricas e fazendo a vida das pessoas mais suportável nos dias quentes de verão. Em 1908, Henry Ford introduziu o modelo T, fazendo a propriedade de carros algo alcançável para a classe média.”

Contrariamente aos capitães da indústria de Brashers, os bilionários de hoje têm uma riqueza muito maior do que eles poderiam obter investindo lucrativamente nas coisas que poderiam fazer a vida das pessoas algo de melhor. Ao invés disso, a maior parte dos objetos dos investimentos faz as coisas piorarem.

Os exemplos contemporâneos de Brashers dos americanos mais ricos – “desde Elon Musk, passando por Jeff Bezos e Warren Buffet até chegar em Larry Ellison” – são similarmente emblemáticos. De todos, Musk é o único que tem companhias que são especializadas, antes de tudo, em bens físicos com processos de produção capitais-intensivos. Além disso, suas conquistas nessa área são de tamanha magnificência que incluem manchar a tesla com um design pífio de um produto – confira, em particular, esta vítima universal da zombaria: o Cybertruck. Sua gestão do Twitter, enquanto isso, tornou-se um exemplo digno didático de como destruir uma rede social.

O nome de Musk é associado, por Brashers, a uma coluna demente de John Stossel, no qual este celebra Musk enquanto um “feitor” ao invés de um “tomador”. A principal forma de “fazer” que Stossel faz referência são os foguetes da SpaceX, e ele inclui esta oração: “A NASA desistiu de construir espaçonaves” – esqueçamos o fato de que a NASA nunca construiu espaçonaves, e contratava outras companhias como a Boeing para fazê-lo.

Além disso, Musk não projetou nenhum dos produtos lançados pela SpaceX ou pela Tesla, mas os seus engenheiros o fizeram. O que foi provido por Musk estava limitado apenas ao dinheiro – um “serviço” no qual ele poderia atuar como provedor por causa das razões que discutirei abaixo. Como todas inovações, os produtos eram produtos do intelecto social – da ciência e tecnologia como projetos globais, open-source, e cooperativos.

Para não dizer que não falei das flores, Buffett é quase um investidor rentista que coloca dinheiro em companhias existentes, ele não é um inovador. As companhias de Bezos e Ellison focam ambas em plataformas online, e ambas dependem fortemente dos monopólios de propriedade privada defendidos pelo Estado, o modelo de negócios walled-garden. Além disso, Bezos criou a Amazon há 20 anos, mas aquilo que ele fez com seus bilhões na década passada, ou mais, consiste majoritariamente em merdificar a plataforma que ele fundou.

O fato de que é tão pouco o investimento recente, do qual Brashers exalta os resultados, e que estes foram obtidos a partir da construção de novas infraestruturas industriais reflete um ambiente econômico no qual o crescimento extensivo já não é mais uma fonte majoritária de lucro. Anteriormente, grandes ondas de investimento de capital foram criadas por novas tecnologias que tinham como necessidade a construção de infraestruturas custosas de larga escala. Todavia, nas últimas décadas, a efemerização da tecnologia – a escala em processo de implosão, e os gastos de capital necessários à produção – findou muitas das soluções lucrativas para o capital de investimento. Além disso, esta tendência de crise foi exacerbada pela parcela da economia total ocupada e destinada à indústria de conhecimento e informação, como foi mostrado por Douglas Rushkoff.

“A crise dos bancos começou com a indústria do “ponto com”, pois aqui havia um setor de negócios que não necessitava de investimentos massivos de capital para crescer. (Eu gastei uma noite inteira com um jovem empreendedor que garantiu 20 milhões de dólares em capital de uma empresa de fundo de investimento tentando entender como gastaríamos tal quantia. Conseguimos apenas chegar a 2 milhões de dólares em possíveis gastos. …

O que um banco fará quando seu dinheiro não for mais necessário, especialmente, quando a contração não é uma possibilidade?”

Assim, o capital de investimento dos bilionários se tornou mais supérfluo à medida do tempo. Muito disso entra na conta da economia FIRE (Finance, Insurance, Real Estate). Muito disso também entra na conta da compra do débito do governo estadunidense (basicamente um programa de preço-suporte para aquele capital que, de outra maneira, não encontraria uma aplicação lucrativa). Além de uma grande quantidade que entra na conta da destruição ativa da capacidade produtiva: equidade privada e hedge funds comprando empresas produtivas que já existem, carregando-as com débito de aquisição, desmantelando-as em partes.

No caso da economia de Internet, o fim dos modelos de lucro baseados no crescimento extensivo através de uma base de consumidores em expansão significa que o lucro guinou primariamente para tornar os produtos e plataformas existentes piores – merdificando-as. Olhem a destruição que caiu sobre as plataformas de notícias online causada pelo pivot to video. Novamente, vislumbrem aos dez bilhões [de dólares] que Zuckerberg queimou no lata de lixo do Metaverso. Olhem para o pivot to AI, que promete superar o dano do pivot to video por uma ordem de magnitude.

O problema não é que o “empreender” envolve riscos, ou que o progresso é motivado pelo punhado de experimentos que são lucrativos, fora de todas as falhas. É que ajustar as coisas de mal jeito, e fazê-las mais “merda” é agora a solução primária ao investimento. A única coisa que poderia realmente fazer as redes sociais e outras plataformas online significativamente melhores seria abrir os jardins cercados e dar aos usuários a habilidade de inovar através da adversarial interoperability – algo que Bezos, Zuck e Musk não farão, pois isso também destruiria inteiramente seus modelos de lucro.

Mas, acima de tudo, pessoas como Brashers são culpadas de um grande erro conceitual. Ele escreve o seguinte:

“Edison, Bell, Carnegie, Sears e Roebuck, Carrier, e Ford, todos eles se tornaram muito ricos a partir de suas invenções e seus esforços. As grandes companhias de hoje ainda podem traçar suas raízes até cada um desses homens. …

A riqueza desses bilionários, milionários, pequenos empresários e investidores não fica parada em um cofre. Está ativamente trabalhando através da economia: construindo fábricas, enchendo inventários, enviando produtos, pesquisando e desenvolvendo novos produtos e criando folhas de pagamento.”

Os bilionários se beneficiam bastante com os seus empreendimentos, mas também o mesmo ocorre para com os outros americanos. Suas companhias empregam milhões de trabalhadores, os produtos são apreciados pelos consumidores. Brashers e outros aderentes de sua ideologia falham em reconhecer que, independentemente de até onde o dinheiro dos bilionários faz todas essas coisas, [ele o faz] pela razão de que eles atualmente têm o mesmo. Todavia, seu controle sobre o capital-investimento e o crédito, tendo em vista financiar a inovação e a produção, é exatamente o problema.

Como eu escrevi em outro lugar:

“Como parte de uma enxurrada de artigos em junho que celebram o aniversário de Adam Smith, o periódico Reason publicou uma charge feita por Petter Pagge na qual o fantasma de Smith bisbilhotava uma conversa entre Karl Marx e Frederich Engels. Respondendo a afirmação entusiasmada de Engels (que foi feita com um olhar mal-humorado e batidas na mesa) de que ‘é inevitável que a propriedade privada seja eliminada… depois disso, os trabalhadores farão a gestão por si mesmos’, Smith, perplexo, diz ‘eles vão? Como? Como repararão, expandirão, e melhorarão as fábricas? Isso não requer capital?’

Recentemente, no Facebook, alguém postou um meme de um trabalhador fabricando 3000 unidades de um objeto por hora, mas sendo capaz de comprar somente três dos produzidos com seu salário por hora. As respostas estavam cheias de comentários como: ‘usando uma máquina que custa 100 mil dólares’; ‘em uma fábrica que custa 25 milhões de dólares para ser construída’; e ‘você não pode fazer 3000/h sem usar a máquina e a fábrica de alguma outra pessoa’ …

Ao ouvir o falar destas pessoas acerca do papel indispensável do capital, você pode ter a impressão de que os capitalistas realmente construíram as máquinas sozinhos a partir de bolsas de dinheiro.

Todavia, os trabalhadores fazem ‘suas próprias partes e ferramentas’, ou ao menos fazem as partes e as ferramentas entre si. Cada passo do processo de produção, indo através não apenas da construção do maquinário e da fábrica, mas indo lá atrás na mineração dos materiais brutos, é composto por seres humanos agindo no mundo material, ou aplicando seu trabalho em bens ofertados pela natureza, ou no produto do trabalho dos outros. O dinheiro do investidor nada mais é do que uma reivindicação de propriedade socialmente construída que os dá autoridade de coordenar e alocar os fluxos de produção a partir dos diferente grupos de trabalhadores que agem sobre a natureza”.

Tomas Hodgskin, um economista radical na Inglaterra do início do século XIX, descreveu a maneira a qual tais reivindicações de propriedade socialmente construídas facilitaram a extração de riquezas não obtidas [no original: unearned]:

“Entre aquele que produz comida e aquele que produz vestimentas, entre aquele que produz ferramentas e aqueles que as usa, no alto o capitalista, que, não usando as mesmas, apropria-se do produto de ambos. Sendo o tão pão duro quanto pode, ele transfere a cada um uma parte do produto do outro, mantendo para si uma grande parte. Gradualmente, e de maneira sucessiva, afirmou-se um entre os mesmos, se fortalecendo enquanto fora suprido pelos trabalhos cada vez mais produtivos daqueles, separando-os de tão distantemente um do outro de uma maneira a qual nenhum dos dois pode ver de onde vem o suprimento que cada um recebe através do capitalista. Enquanto ele espolia ambos, priva-os completamente um da vista do outro de tal maneira que ambos acreditam que devem ao capitalista sua subsistência”.

A necessidade forjada desse investidor capitalista é o resultado de um sistema de crédito baseado na escassez artificial – especificamente, o mito de que o crédito é algo que deve ser emprestado “contra” uma riqueza previamente estocada, ao invés de simplesmente requerer uma unidade de conta para coordenar os fluxos de produção entre diferente grupos de produtores. Este último modelo de crédito poderia ser organizado horizontalmente pelos próprios produtores, passando seus produtos entre si, sem necessidade de uma riqueza acumulada.

Dizer que “os bilionários provêm o capital de investimento necessário” não é uma defesa dos bilionários. É um indiciamento de um sistema que faz com que os capitais deles sejam necessários.

Anarchy and Democracy
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