Artigo original: Bullshit Jobs and the End of Work (As We Know It), de Logan Marie Glitterbomb. Traduzido para o Português por Gabriel Serpa.
Pouco mais de cem anos desde que anarquistas, socialistas, comunistas, libertários e sindicalistas radicais venceram a longa, árdua e sangrenta batalha pela jornada de trabalho de oito horas, nos Estados Unidos, nós continuamos sobrecarregados e sub-remunerados, a despeito dos avanços tecnológicos – que deixam margem cada vez menor para o trabalho braçal –, para que possamos manter o mesmo grau de qualidade de vida.
Para citar Bertrand Russell, em In Praise of Idleness:
As técnicas modernas possibilitaram uma drástica redução na quantidade de trabalho que é preciso para que todos asseguremos a satisfação de nossas necessidades básicas. Isto ficou evidenciado durante a guerra. Naquele período, todos os homens a serviço das forças armadas; todos os homens e mulheres empenhados na produção de munições; todos aqueles engajados na espionagem; na propaganda; ou em gabinetes do governo dedicados à guerra; foram todos retirados de suas ocupações produtivas. Apesar disso, o grau de bem-estar geral, entre os assalariados menos qualificados do lado dos Aliados, era mais alto do que antes. O significado deste fato se escondia em detalhes financeiros: tomar dinheiro emprestado deu a aparência de que o futuro alimentaria o presente. Mas isto, certamente, seria impossível; um homem não pode comer o pão que ainda não existe. A guerra nos demonstrou, de forma conclusiva, por meio da organização científica da produção, que é possível manter um relativo grau de conforto para as populações modernas com apenas uma pequena parcela da capacidade laboral do mundo moderno. Se, ao término da guerra, esta organização científica, que foi elaborada para permitir aos homens ir ao fronte de batalha e produzir munições, tivesse sido mantida, e as horas de trabalho cortadas para quatro, tudo estaria bem. Mas, ao invés disso, o velho caos foi reestabelecido; aqueles cujo trabalho assim exigia foram obrigados a trabalhar por longas horas, e os outros ficaram desempregados e famintos, para que morressem à própria sorte. Por que? Pois o trabalho é um dever e o homem não tem que receber salários condizentes com aquilo que produz, mas proporcionalmente à sua virtude, demonstrada pela indústria na qual atua.
Esta é a moralidade de um estado escravagista, aplicada a circunstâncias totalmente diferentes daquelas em que ele surgiu. Não surpreende que o resultado tenha sido desastroso. Permita-nos ilustrar: suponha que, em um certo período, um dado número de pessoas esteja empenhado na produção de alfinetes. Elas produzem tantos alfinetes quantos são necessários para o mundo inteiro, trabalhando oito horas por dia. Eis que alguém inventa uma máquina que permite ao mesmo número de pessoas produzir o dobro do que produziam até então; os alfinetes, que já são tão baratos, dificilmente seriam comprados a preços mais baixos. Em um mundo sensato, todos os envolvidos na produção de alfinetes passariam a trabalhar quatro horas, em vez de oito, e todo o resto seguiria como antes. Contudo, no mundo em que vivemos isto seria visto como desmoralizante. Os empregados continuam trabalhando as mesmas oito horas, sobram alfinetes, alguns empregadores vão à falência, e metade dos trabalhadores são demitidos. No fim das contas, há a mesma quantidade de tempo livre neste e naquele cenário; mas neste metade das pessoas estão completamente ociosas, enquanto a outra metade está sobrecarregada de trabalho. E, desta maneira, assegura-se que o lazer inevitavelmente causará miséria, onde quer que esteja, em vez de ser uma fonte universal da felicidade. Poderíamos imaginar algo mais insano do que isso?
É esta promoção coercitiva do trabalho, como se este fosse uma virtude, que nos faz associar a obtenção de recursos básicos à subjugação das classes menos abastadas como trabalhadores. Estando os salários, e a satisfação das necessidades, atrelados à ideia de um emprego, nós nos vemos obrigados a desempenhar atividades contra os nossos próprios interesses. Isto cria um cenário tanto de desemprego, como de subemprego. Enquanto o desemprego é uma situação neutra, o subemprego se caracteriza por salários com os quais não se consegue viver. Este problema poderia ser resolvido com uma melhor alocação dos recursos que já produzimos, em vez de insistirmos na política de criar empregos – até quando não há trabalho útil a ser feito.
Devido ao desemprego, ao subemprego e a outras tantas razões socioeconômicas, as pessoas tendem a lutar pela criação de mais postos de trabalho e a apoiarem propostas como garantia de emprego e outras ideias que causam inchaço e desperdício, levando-as a atuar em atividades sem sentido. Estas atividades foram apelidadas de empregos de mentira (em inglês, bullshit jobs), pelo antropólogo e anarquista David Graeber, em sua obra Bullshit Jobs: A Theory. Frequentemente, até mesmo aqueles com trabalhos úteis vêem-se desempenhando atividades insignificantes para tapar buracos, ou fingem estar trabalhando, para que mantenham suas tradicionais quarenta horas semanais; desta forma, também executam tarefas inúteis, ainda que em graus menores que os aqueles outros cujos empregos são integralmente de mentirinha.
Como afirma Adam Connover, no episódio Work da série Adam Ruins Everything:
Este cronograma de quarenta horas semanais, ao qual você está tão apegado, é uma relíquia obsoleta que não faz nada além de exaurir os empregados e causar danos ao seu próprio negócio… a maior parte deste tempo é desperdiçada. Uma pesquisa recente revelou que funcionários gastavam apenas 45% de seus expedientes executando suas tarefas primárias.
Costumava ser pior. Há cem anos, o trabalhador médio registrava dez horas diárias, seis dias por semana (muitos comprometidos com a igreja aos domingos)… naqueles tempos, a maioria das pessoas raramente tinha um dia inteiro só para si. Por sorte, havia dois grupos que lutavam pelo sábado como o conhecemos hoje: os sindicatos de trabalhadores e os judeus. E estes dois grupos contaram com um improvável aliado: o fundador da Ford Motor Company, Henry Ford…
Ford era um grande racista e desprezava os sindicatos, portanto ele não ajudou a mudar a semana de trabalho pelo amor que sentia por este pessoal… ele estava pouco se lixando para o tempo de lazer de seus empregados. Ele ajudou na conquista do sábado por saber que isto seria bom para seus negócios. À medida que a tecnologia melhorava e a produtividade aumentava, todos imaginaram que a semana de trabalho ficaria cada vez menor.
Em 1930, o economista John Maynard Keynes previu: “em 2030, estaremos trabalhando não mais que quinze horas semanais”. Até mesmo Richard Nixon concordou: “a semana de trabalho de quatro dias é inevitável em nosso tempo…”; e pareceu mesmo que eles estavam certos. Por décadas, as horas de trabalho diminuíram paulatinamente, mas foi nos anos de 1970 que os americanos voltaram a trabalhar mais. Hoje, nós trabalhamos quase quatro semanas a mais, anualmente, se comparado a 1979.
Isto, porque, a despeito da crescente automação nas mais variadas indústrias, nós nos apegamos ao velho conceito de trabalho como uma virtude em si. Em vez de aceitarmos os benefícios da automação, e de outras tecnologias que nos poupam esforços, para desfrutarmos de expedientes mais curtos, o capitalismo moderno insiste em atribuir trabalhos árduos a seus empregados, sem qualquer necessidade, para que estes justifiquem seu custo; e assim sobram os chamados bullshit jobs. Como os descreveu Graeber, empregos de mentira são uma forma de trabalho assalariado completamente sem sentido, desnecessário ou até pernicioso, que nem mesmo o empregado conseguiria justificar sua existência – muito embora, por estas tarefas integrarem as condições para que ele seja contratado, ele se sinta obrigado a fingir o contrário.
Citando David Graeber, em seu ensaio On the Phenomenon of Bullshit Jobs: A Work Rant:
Em vez de permitirmos que houvesse uma enorme redução nas horas de trabalho, de forma que liberarássemos toda a população para que ela fosse em busca de seus projetos pessoais, prazeres, visões de mundo e ideais, nós temos testemunhado um inchaço, nem tanto assim do setor de serviços, mas dos setores administrativos, que incluem a criação de novíssimas atividades como as dos serviços financeiros, telemarketing, ou ainda a expansão sem precedentes de áreas como a da advocacia corporativa, da administração acadêmica e médica, dos recursos humanos e das relações públicas. E estes números sequer refletem naqueles trabalhadores cujas ocupações consistem em prover suporte administrativo, técnico ou de segurança a estas indústrias, ou ainda para todas as outras áreas auxiliares (lavadores de cães, entregadores de pizza 24h…) que só existem porque todo mundo está ocupado trabalhando em todas aquelas outras atividades.
É a isto que proponho chamar de empregos de faz de conta.
É como se alguém estivesse inventando tarefas desnecessárias, só para que nós nos mantivéssemos ocupados. E é, precisamente, aqui que jaz o mistério. Sob o sistema capitalista, isso é exatamente o que não deveria ocorrer. É claro que nos antigos e ineficientes estados socialistas, como a União Soviética, em que o emprego era tido como um direito sagrado, o sistema criava tantos empregos quanto possível (é por isso que nos supermercados soviéticos era preciso três funcionários para vender um simples corte de carne). Mas este, com certeza, é o tipo de problema que a competição de mercado deveria resolver. De acordo com a teoria econômica, a última coisa que uma empresa que busca o lucro fará é desembolsar dinheiro com funcionários que não precisa contratar. Mesmo assim, de alguma maneira isto acontece.
Embora as corporações possam empreender implacáveis reduções e cortes, as dispensas e a acelaração do ritmo recaem sobre aquela classe de pessoas que de fato realizam, movimentam, consertam e fazem a manutenção das coisas; por meio de alguma mágica estranha que ninguém sabe explicar, o número de “passadores de papel” (em inglês, paper-pushers) assalariados parece ter aumentado, e cada vez mais os empregados se veem, não muito diferente do que era na União Soviética, trabalhando por quarenta – às vezes cinquenta – horas semanais em função das papeladas, sendo que destas apenas quinze são dedicadas, efetivamente, a uma tarefa produtiva, como havia previsto Keynes – uma vez que o resto do tempo é gasto na organização ou participação em palestras motivacionais, atualizando suas mídias sociais, ou baixando programas de televisão.
Graeber divide os empregos de mentira em cinco categorias:
1. os lacaios (em inglês, flunkies), que servem para que seus superiores se sintam mais importantes. Por exemplo, recepcionistas, assistentes administrativos e porteiros;
2. os brutos (em inglês, goons), que se opõem a outros brutos contratados por outras empresas. Por exemplo, lobistas, advogados, atendentes de telemarketing e especialistas de relações públicas;
3. os tapa-buracos (em inglês, duct-tapers), que consertam problemas constantes que poderiam ser consertados permanentemente. Por exemplo, programadores que ficam arrumando programas com códigos de baixa qualidade e balconistas de companhias aéreas que só servem para acalmar os passageiros cujas bagagens não chegaram;
4. os supervisores de prancheta (em inglês, box-tickers), que apenas dão a aparência de que algo de útil está sendo feito. Por exemplo, gerentes de pesquisa, jornalistas de publicações internas e agentes corporativos de compliance;
5. os feitores (em inglês, taskmasters), que administram – ou criam trabalho extra para – aqueles que não precisam. Por exemplo, gerentes intermediários e líderes profissionais.
A jornada de trabalho padrão, de quarenta horas semanais e salário mínimo – sem sequer refletir uma quantia com a qual dê para sobreviver –, torna o trabalhador mais dependente do trabalho e motiva ambos os com subempregos e os desempregados a reivindicarem pela criação de mais vagas de trabalho, não importando o quão inúteis ou mesmo destrutivos eles sejam. Desde o apoio à construção de novos dutos para combustíveis fósseis; a devastação de áreas florestadas para erguer mais cadeias de lojas; a luta por garantias federais de postos de trabalho; até ser levado, erroneamente, a apoiar a propaganda capitalista de criação de empregos, fazendo com que tomem as dores dos poderosos.
Mas quem decide o que se qualifica como um trabalho de faz de conta?
Citando o ensaio de Graeber mais uma vez:
Agora, eu entendo que qualquer argumento deste tipo será contraposto às seguintes objeções: “quem é você para dizer quais atividades são realmente necessárias? Você pode definir ‘necessário’? Você mesmo é um professor de antropologia, qual a ‘necessidade’ disto?”. Com certeza, alguns típicos leitores de tablóides tomariam a existência da minha atividade como a exata definição de desperdício social. E, de certo modo, é verdade. Isto porque não existe uma medida objetiva para este valor social.
Não seria eu a ter a pretensão de dizer a alguém que acredita estar realizando uma contribuição significante ao mundo de que, na realidade, não está. Mas e quanto as pessoas que já estão convencidas de que suas atividades são insignificantes? Não faz muito tempo, voltei a me comunicar com um amigo de escola que não via desde que tínhamos doze anos de idade. Fiquei surpreso ao descobrir que neste ínterim, primeiro ele havia se tornado um poeta e, posteriormente, o vocalista de uma banda de indie rock. Eu já havia escutado até algumas de suas músicas, sem ao menos saber que o dono daquela voz era alguém que eu conhecia. Era evidente se tratar de alguém brilhante e inovador cujo trabalho, inquestionavelmente, havia iluminado e melhorado a vida de pessoas por todo o mundo. Mesmo assim, depois de alguns álbuns inexpressivos, ele perdeu seu contrato e, estando abarrotado de dívidas e com uma filhinha recém-nascida, acabou, em suas próprias palavras, “tomando a típica escolha daquele que não sabe que caminho seguir: o curso de Direito”. Hoje, ele é um advogado corporativo que trabalha para um notável escritório de Nova York. Ele mesmo foi o primeiro a reconhecer que sua atividade é completamente sem sentido, que para nada contribui com o mundo, e, em seu próprio julgamento, não deveria existir.
Há inúmeras perguntas que poderiam ser feitas aqui, a começar por: o que isto revela sobre nossa sociedade, que parece gerar uma demanda muito limitada para poetas e músicos talentosos, ao mesmo tempo em que há uma aparente demanda infinita para especialistas da advocacia corporativa? Resposta: se 1% da população detém o controle da maior parte da riqueza disponível, isto que nós chamamos de “mercado” refletirá aquilo que é útil ou importante para eles, e mais ninguém. Além disso, ainda mostra que, em última análise, a maioria das pessoas empregadas nessas atividades sabem disso. De fato, eu não acho que eu tenha conhecido um advogado que não reconhecesse que seu trabalho é uma baboseira. O mesmo serve para quase todos os novos ramos da indústria que foram destacadas acima. Existe uma classe inteira de assalariados que, se você tiver a chance de conhecê-los em uma festa e disser que faz algo que possa parecer minimamente interessante (como ser antropólogo, por exemplo), farão de tudo para evitar uma conversa em torno daquilo que eles próprios fazem. Permita-lhes alguns drinks e, eventualmente, virá uma enxurrada de reclamações sobre o quão idiota e sem sentido seus trabalhos são.
Há uma profunda violência psicológica nisso tudo. Como alguém pode sequer começar a falar em dignidade no trabalho, ao mesmo tempo em que acredita, ainda que secretamente, que sua atividade não deveria existir? De que forma isso não haveria de criar um profundo senso de raiva e ressentimento? Entretanto, é uma peculiaridade de nossa sociedade que seus governantes tenham arrumado uma maneira de assegurar que esta raiva seja dirigida contra aqueles que desempenham atividades relevantes. Por exemplo: na nossa sociedade existe uma regra geral de que quanto mais o trabalho de uma pessoa for benéfico a outras, menos provável é que ela seja paga por ele. Mais uma vez, é difícil de encontrar uma medida objetiva para isso, mas uma maneira rápida de se constatar é perguntando: o que iria acontecer se toda esta classe de empregados simplesmente desaparecesse? Diga o que quiser das enfermeiras, dos catadores de lixo ou dos mecânicos, mas é óbvio que se estas classes sumissem de uma hora para outra, o resultado haveria de ser imediato e catastrófico. Um mundo sem professores ou estivadores em pouco tempo teria inúmeros problemas. E mesmo sem os dramaturgos e roteiristas de ficção científica, ou sem os músicos de ska, o mundo claramente seria um lugar pior. Porém, não está claro como a humanidade reagiria, caso todos os CEOs de empresas, lobistas, pesquisadores de relações públicas, estatísticos, funcionários de telemarketing, oficiais de justiça e consultores legais deixassem de existir (muitos suspeitam que haveria notável melhora). Contudo, à exceção de um punhado deles (como os médicos), a regra se sustenta surpreendentemente bem.
É ainda mais perverso que haja um enorme senso de que é assim que as coisas devem ser. Esta é uma das forças ocultas do populismo de direita. Podemos testemunha-lo quando tablóides alimentam o ressentimento contra os metroviários (em inglês, tube workers) por paralisarem Londres em períodos de reivindicações trabalhistas/contratuais: o simples fato destes trabalhadores poderem paralisar Londres já demonstra o quão necessário é o serviço que eles prestam, mas este parece ser, precisamente, o fato que desagrada as pessoas. É ainda mais evidente nos EUA, onde os Republicanos tiveram um enorme sucesso em instigar ressentimento contra professores, ou contra operários do ramo de automóveis (e não contra os gestores das escolas, ou os diretores da indústria automobilística, que são os verdadeiros causadores dos problemas), por seus supostos salários inchados e excessivos benefícios. Como se dissessem a eles “você ensina crianças! E você faz carros! Vocês já têm trabalhos de verdade! E ainda por cima vocês têm a cara de pau de esperar por uma previdência e um plano de saúde?”
Se alguém tivesse planejado um regime de trabalho perfeitamente voltado à manutenção do poder do capital financeiro, seria difícil apontar como eles poderiam ter feito melhor do que isso. Trabalhadores de verdade, produtivos, são implacavelmente espremidos e explorados. O restante é dividido entre um estrato, aterrorizado pelo ultrajante desemprego, e outro ainda maior composto por aqueles que são mal pagos para não fazerem nada, em cargos formatados para que se identifiquem com as perspectivas e as suscetibilidades da classe dominante (diretores, administradores, etc) – particularmente com seu avatar financeiro –, mas, ao mesmo tempo, fomentando um ressentimento fervoroso contra qualquer um cujo trabalho apresente evidente e inegável valor social. Claramente, este sistema não foi criado conscientemente. Ele emergiu de quase um século de tentativas e erros. Mas esta é a única explicação do porquê, apesar da capacidade tecnológica, nós todos não trabalhamos de três a quatro horas por dia.
Basicamente, estas atividades inúteis se tornam viáveis por meio dos subsídios, das regulações protetivas, do lobby, dos alvarás, e toda a miríade de legislações e regulamentações que limitam a competição e reforçam tanto as oligarquias econômicas quanto o poder político. Portanto, sob um sistema de mercados libertos e sem estado, poderíamos eliminar esses bullshit jobs de uma vez e reduzir as barreiras de entrada ao empreendedorismo cooperativo e individual. Embora a extinção dos empregos de mentira não fosse nos libertar por completo do trabalho, ela diminuiria radicalmente a quantidade de trabalho que precisaríamos desempenhar.
Novamente citando a obra In Praise of Idleness:
Em um mundo em que ninguém é obrigado a trabalhar mais que quatro horas diárias, todo aquele que possua sede por ciência poderá saciá-la, e todo artista plástico poderá pintar sem morrer de fome, não importando a qualidade de suas obras. Jovens escritores não terão de chamar a atenção para si mesmos com roteiros sensacionalistas e de gosto duvidoso, em busca da independência financeira que as grandes obras exigem – e quando a hora finalmente chegue, eles já estejam velhos e tenham perdido o jeito para isso. Homens que, profissionalmente, possam ter se interessado por algum aspecto da economia ou do governo poderão desenvolver suas ideias sem o descolamento acadêmico, que faz com que economistas universitários muitas vezes pareçam distantes da realidade. Médicos terão tempo para aprender sobre os avanços da medicina, e professores não estarão constantemente lutando para lecionar, por meio de métodos periódicos, coisas que eles aprenderam ainda na juventude e que já estão desatualizadas.
Indo mais além do que o apelo de Graeber pelo fim dos bullshit jobs, alguns anarquistas chegaram a advogar pelo fim do trabalho, de uma vez por todas, pelo menos da forma como nos acostumamos e entendê-lo. Cito o famoso ensaio de Bob Black, Abolish Work:
A alternativa ao trabalho não é o simples ócio. Ser lúdico não significa estar quaalúdico (N.T.: ele faz referência à droga metaqualona, um sedativo). Por mais que eu venere os prazeres do entorpecimento, ele nunca é mais recompensador do que quando ressalta outros prazeres e passatempos. Tampouco estou fazendo apologia à válvula de escape controladamente cronometrada, que se chama lazer – nem próximo a isso. O lazer é não trabalhar pelo bem do trabalho. Lazer é o tempo que se gasta para se recuperar do trabalho, em uma frenética e vã tentativa de se esquecer dele. Muitos voltam tão cansados das férias que ficam ansiosos para voltar ao trabalho, e assim poderem descansar. A principal diferença entre trabalho e lazer é que, trabalhando, ao menos você recebe pela sua alienação e esgotamento.
Não quero fazer nenhum jogo retórico com as pessoas. Quando digo que quero abolir o trabalho, é exatamente isto que quero dizer, mas quero dizê-lo não de uma maneira idiossincrática. A definição que dou à atividade laboral é a de trabalho forçado, isto é, de produção compulsória. Estes dois elementos são essenciais. O trabalho nada mais é do que a produção ratificada por meios econômicos e políticos, seja pela recompensa ou pelo castigo (sendo a recompensa o mesmo que o castigo, apenas de outro modo). Mas nem toda criação é trabalho. O trabalho nunca é um fim em si, mas ele é realizado para que seja obtido um produto ou um resultado qualquer pelo trabalhador (e frequentemente mais alguém além dele). O trabalho é necessariamente isso. Ao defini-lo, desprezamo-lo. Mas, em geral, ele é até pior do que esta definição. A dinâmica de dominação intrínseca ao trabalho tende a se desenvolver com o passar do tempo. Em sociedades avançadas, impregnadas pelo trabalho, incluindo todas as industriais, sejam elas capitalistas ou comunistas, o trabalho adquire, inexoravelmente, outras características que o tornam ainda mais detestável.
Tal é o trabalho. Diversão é o exato oposto. O ato de brincar é sempre voluntário. Aquilo que poderia ser uma brincadeira torna-se trabalho a partir do momento em que é forçado. É axiomático. Bernie de Koven definiu a brincadeira como “o embargo das consequências”. Isto é inaceitável se significar que brincar é um ato inconsequente. A brincadeira não é a ausência de consequências. Isto seria rebaixá-la. A questão é que as consequências, se houver, são voluntárias. Os atos de brincar e de dar, ou ceder, estão intimamente relacionados, eles são são facetas comportamentais e transacionais do mesmo impulso, o instinto lúdico. Eles compartilham um desprezo por resultados. Aquele que brinca ganha alguma coisa com a brincadeira em si, e é por isso que ele o faz. A grande recompensa está na experiência daquela atividade (qualquer que seja ela). Alguns estudiosos das brincadeiras, como Johan Huizinga (autor da obra Homo Ludens), as definem como jogar jogos e seguir regras. Eu respeito a erudição de Huizinga, mas rejeito as restrições que ele impõe. Existem inúmeros bons jogos (como o xadrez, o baseball, Banco Imobiliário, o bridge [jogo de cartas]) que são regidos por regras, mas as brincadeiras vão muito além da diversão por meio de meros jogos. Conversa, sexo, dança, viajar – estas ações não são regidas por regras escritas, mas certamente são brincadeiras. E também é possível brincar com as regras, como com qualquer outra coisa…
É possível hoje abolir o trabalho e substitui-lo, desde que se proponha a fins úteis, com uma infinidade de novos tipos de atividades livres. Para abolir o trabalho é preciso que partamos de duas frentes: quantitativa e qualitativa. Pelo lado quantitativo, é necessário que se reduza drasticamente a quantidade de trabalho que é feito. No momento, a maioria do trabalho sendo realizado é inútil, ou coisa pior, e deveríamos simplesmente nos livrar dela. Pelo lado qualitativo – e eu acredito ser este o ponto crucial da questão e o estarte revolucionário –, nós temos de pegar tudo o que resta de trabalho útil e transformá-lo em atividades prazerosas, lúdicas e artesanais, que não se distinguam de meros passatempos, mas que resultem na produção de bens úteis. Certamente, isto não deve torná-los menos atrativos. Então, todas as barreiras artificiais do poder e da propriedade poderiam vir abaixo. A produção poderia se tornar recreação. E todos nós deixaríamos de temer uns aos outros.
Eu não sugiro que se possa salvar a maior parte do trabalho desta maneira. Mas nem valeria a pena tentar salvar a maior parte do trabalho. Somente uma pequena, e decrescente, parcela do trabalho serve a um propósito útil, independente da blindagem política e jurídica que possa receber do sistema e de suas extensões. Há trinta anos, Paul e Percival Goodman estimaram que apenas cinco por cento dos trabalhos que então eram realizados – presumivelmente, se estiverem corretos, este número é menor hoje – seriam suficientes para suprir nossas necessidades básicas de alimentação, vestimentas e moradia. Esta foi apenas uma estimativa que fizeram, mas o ponto central é bastante claro: direta ou indiretamente, o trabalho serve, majoritariamente, a propósitos improdutivos de controle comercial e social. Imediatamente, poderíamos libertar milhões de vendedores, soldados, gerentes, agentes policiais, corretores, clérigos, banqueiros, advogados, professores, donos de terras, seguranças, publicitários e todos aqueles que trabalham para eles. Haveria um efeito dominó: uma vez que nos livrássemos de um peixe-grande, desapareceriam também seus lacaios e subalternos. Logo, tal sistema econômico implodiria.
Quarenta por cento de toda força laboral pertence à classe de trabalhadores do chamado colarinho branco, dos quais a maior parte se encontra ocupando cargos dos mais tediosos e idiotas já concebidos. Setores industriais inteiros, seguradoras, bancos e imobiliárias, por exemplo, consistem em papeladas inúteis. Não é por coincidência que o setor terciário, o setor de serviços, está crescendo enquanto que o setor secundário, o da indústria, está estagnado e o setor primário, o da agricultura, praticamente desapareceu. Como o trabalho é desnecessário, exceto para aqueles cujo poder ele garante, trabalhadores são transferidos de atividades relativamente úteis para outras relativamente inúteis como medida para assegurar a ordem pública. Qualquer coisa é melhor que nada. É por isso que você não pode ir mais cedo para casa, ainda que tenha terminado tudo antes do término do expediente. Eles querem o seu tempo – o suficiente para que você seja deles –, mesmo que não tenham mais o que fazer com ele. Do contrário, por que a semana média de trabalho não foi reduzida em mais do que alguns míseros minutos nos últimos sessenta anos?
Por fim, devemos eliminar a maior das ocupações, aquela com as mais longas horas, a remuneração mais baixa e uma das tarefas mais tediosas que existe. Me refiro às donas de casa, que realizam tarefas domésticas e criam seus filhos. Ao abolirmos o trabalho assalariado e atingirmos o completo desemprego, minamos a divisão de trabalho baseada em sexos. A família nuclear, como a conhecemos, é uma adaptação incontornável à divisão de tarefas imposta pelo trabalho assalariado moderno. Goste-se ou não da forma como as coisas têm sido nos últimos dois séculos, é economicamente racional para o homem trazer o sustento para casa, enquanto a mulher faz o trabalho pesado e fornece refúgio a ele neste mundo cruel, e as crianças serem encaminhadas para campos de concentração para jovens, chamados de escolas, para mantê-los fora do alcance da mãe, mas incidentalmente para que adquiram hábitos de obediência e pontualidade, tão necessários para os trabalhadores. Se quer se livrar do patriarcado, livre-se da família nuclear cujo trabalho oculto não remunerado, como disse Ivan Illich, torna possível este sistema de trabalho que o torna necessário. Aliada a essa estratégica pacífica está a abolição da infância e o fechamento das escolas. Há mais estudantes em tempo integral neste país do que trabalhadores nestas condições. Precisamos das crianças não como alunas, mas como professoras. Elas têm muito a nos ensinar em nossa revolução lúdica, uma vez que são melhores em brincar e se divertir do que nós, adultos. Crianças e adultos não são idênticos, mas passarão a ser semelhantes por meio da interdependência. Somente brincadeiras podem preencher as lacuans geracionais.
Ainda sequer mencionei a possibilidade de se reduzir o pouquíssimo trabalho que restaria, por meio da automação e cibernetização das coisas.
O fato é que devido ao aumento da automação, estamos vendo uma diminuição da quantidade necessária de trabalho para que mantenhamos nossa qualidade de vida atual. É claro que nós nos empenhamos constantemente em ampliá-la e, assim, desejamos possuir mais tempo também para as melhorias sociais, mas muitos que poderiam contribuir com estas tarefas estão muito ocupados desempenhando atividades insignificantes. Essas atividades não apenas consomem nosso tempo, deixando-nos curtíssimos períodos para que nos dediquemos aos nossos projetos pessoais, mas também nos tornam mais propensos a sofrer acidentes que, posteriormente, podem interferir naquilo que gostaríamos de fazer. Como afirma Adam Connover: todas aquelas horas extras são péssimas para os negócios. Elas aumentam o índice de erros e percalços, entre os trabalhadores industriais, em 61%. E muitas horas de trabalho pioram a performance dos funcionários em testes cognitivos, o que significa que você está, literalmente, deixando seus empregados mais ineptos.
Cada indústria está sendo automatizada a uma velocidade própria e nos mais variados graus. Algumas estão quase completamente automatizadas, tendo apenas um pequeno grupo de funcionários fazendo a manutenção das máquinas; enquanto outras estão apenas parcialmente automatizadas, e mesmo assim seguem diminuindo o número de empregados necessários, para lidar com o trabalho de maneira eficiente. Certas indústrias ainda consistem principalmente do trabalho braçal – e continuarão assim, seja pela facilidade, necessidade ou preferência. É claro que todos os dias há novos empregos sendo criados, e conforme a tecnologia e a sociedade progridem, esta será eternamente a regra. Mas ainda está muito longe de se justificar as quarenta horas semanais de trabalho, caso não houvesse a criação de atividades inúteis e empregos de mentira.
A abolição dos trabalhos inúteis e a automação é um mero começo. Ainda haverá outras atividades a serem realizadas, além daquelas que voluntariamente nos dispomos a fazer por paixão. A partir daí, é uma questão de substituirmos o conceito de trabalho, como nós conhecemos, pela brincadeira, como imaginaram Bob Black e outros:
O que eu realmente gostaria de ver é o trabalho ser transformado em diversão. O primeiro passo é aposentar as noções de emprego e de ocupação. Mesma aquelas atividades que apresentam algum caráter lúdico perdem grande parte dele ao serem reduzidas a meros empregos, que algumas pessoas – e apenas estas – são obrigadas a ocupar, havendo a exclusão de todas as outras. Não é estranho que trabalhadores rurais se acabem nos campos, enquanto seus patrões desfrutam do ar-condicionado e cuidam de seus belos jardins aos fins de semana? Sob o regime de permanente farra e diversão, nós testemunharemos a Era de Ouro do diletantismo, que há de fazer o Renascimento se envergonhar. Não haverá mais empregos, apenas coisas para se fazer – e pessoas que as farão. O segredo para transformar trabalho em diversão, como demonstrou Charles Fourier, é organizar atividades úteis para que se aproveite tudo que as mais variadas pessoas, em diversos momentos, realmente gostam de fazer. Para tornar possível que alguns façam aquilo que gostam de fazer, basta que se erradique o que há de irracional e as distorções que afetam tais atividades, quando estas são reduzidas a trabalho.
Em segundo lugar, há certas coisas que as pessoas gostam de fazer, vez ou outra, mas não por muito tempo – e certamente, não o tempo todo. Você pode até gostar de ser babá por algumas horas, e estar na companhia de crianças, mas não tanto quanto os pais delas. Os pais, por sua vez, certamente apreciam bastante a sua ajuda, já que permite a eles algum tempo para si mesmos, embora fiquem preocupados sempre que se separam de seus filhos por algumas horas. São estas diferenças entre indivíduos que fazem da vida um jogo de infinitas possibilidades. O mesmo princípio pode ser aplicado a muitas outras atividades, especialmente as primárias. Muitas pessoas podem gostar de praticar suas habilidades culinárias como hobby, mas não necessariamente como trabalho, quando estão apenas alimentando outros seres humanos.
Terceiro, certas coisas quando feitas por você mesmo em um ambiente hostil, ou sob as ordens de um superior, podem se tornar agradáveis, ao menos por algum tempo, se alteradas estas circunstâncias. Isto provavelmente é uma verdade, até certo ponto, para todas as atividades. As pessoas lançam mão de sua engenhosidade quando são confrontadas com trabalhos pouco convidativos. Atividades que podem ser atraentes para uns, podem não ser para outros; mas todos temos, pelo menos em potencial, uma variedade de interesses e, da mesma forma, um interesse pela variedade. Como diz o ditado “tentamos tudo uma vez”. Fourier foi um mestre em especular de que forma certas tendências aberrantes e perversas poderiam impactar as sociedades pós-civilizadas, o que ele chamou de Harmonia. Ele imaginava que o imperador Nero poderia ter resultado em uma pessoa normal se, na infância, tivesse satisfeito sua ânsia sádica e sanguinária trabalhando em um matadouro. Crianças que gostam de se chafurdar na sujeira poderiam ser organizadas em equipes para limpar banheiros e manusear o lixo, havendo prêmios para os mais destacados. Não estou advogando estes exemplos específicos, mas o princípio por trás deles, que acredito que faça sentido como uma dimensão desta transformação revolucionária. Tenha em mente que não é preciso que tomemos os trabalhos que hoje existem e os atribuamos a certas pessoas.
A vida há de se tornar um jogo, ou ainda muitos jogos, mas não – como é hoje – um jogo de soma zero.
A eliminação dos empregos de mentira, que mercados libertos promoveriam, como Bob Black define, casa-se perfeitamente com as ideias de Kevin Carson, apresentadas em Who Owns the Benefit? The Free Market As Full Communism:
Por que a revolução cibernética e o grande aumento em produtividade, advindo do progresso tecnológico, não resultou em semanas de quinze horas de trabalho, ou num expressivo barateamento de muitos dos itens de necessidade básica? A resposta é que o progresso econômico é utilizado como uma fonte de renda e lucro.
O resultado natural que advém da concorrência irrestrita de mercado é o socialismo. Por um curto período, o primeiro a inovar em um mercado recebe lucros vultosos, justamente como recompensa por ser o pioneiro. Mas, à medida que os concorrentes passam a adotar tais inovações, o lucro tende a diminuir para zero, e o preço se move em direção a um novo custo de produção mais baixo (estando incluído no preço o custo de manutenção e a amortização das despesas de capital). Desta forma, em um mercado liberto, aquilo que se pouparia no custo do trabalho, necessário para se produzir qualquer bem, seria prontamente socializado na hora de comprá-lo.
Somente quando o estado garante escassez artificial, direitos de propriedade fictícios e entraves à competição é que se torna possível que o capitalista se aproprie de uma parcela daquilo que economizou dos custos, como se fosse uma renda permanente. Nestas condições, o capitalista se vê habilitado a praticar preços monopolistas. Isto é, em vez de ser forçado pela concorrência a precificar suas mercadorias de acordo com os custos reais de produção (com seu sustento incluso), ele pode basear seu preço pela capacidade financeira dos consumidores.
Esta forma de restrição, por meio de propriedade intelectual, é o que permite à Nike pagar ao dono de uma fábrica (em inglês, sweatshop) míseras quantias por um par de calçados, e depois colocá-los à venda por duzentos dólares. A maior parte da quantia que se paga pelo produto não diz respeito ao trabalho ou aos materiais, mas sim à marca.
O mesmo vale para a escassez artificial da terra e do capital. Como observaram David Ricardo e Henry George, sempre há alguma cobrança de aluguel advinda da escassez natural da terra, por se tratar de um bem não-reproduzível. Há considerável discordância entre georgistas, mutualistas – que advogam o uso e a posse da terra –, e outros libertários sobre como corrigir a questão dos aluguéis advindos da escassez natural da terra. Mas a escassez artificial, baseada no cercamento e na manutenção de terras improdutivas em mãos privadas, ou nos direitos semi-feudais dos donos de terras de cobrarem aluguel daqueles que realmente trabalham nela, é uma enorme fonte de renda ilegítima – possivelmente a maior parte do total. E independentemente dos diversos pontos que possamos defender, libertários por princípio são favoráveis ao fim desta escassez artificial e que a competição de mercado direcione o preço dos aluguéis de terras vagas para próximo de seu valor real.
Somos favoráveis também à abertura da oferta de crédito para a concorrência irrestrita no mercado, de forma a acabar com as barreiras de entrada para as cooperativas e abolindo leis que versem sobre o curso legal de qualquer espécie, permitindo à competição que elimine uma grande parte dos juros totais sobre o dinheiro.
Entretanto, apesar dos capitalistas torcerem o nariz ao sugerirmos a socialização de suas rendas e lucros, por estas medidas fomentarem “luta de classes”, eles não se incomodam em socializar os seus custos operacionais. A principal razão para que a produção moderna seja tão centralizada, e tanto as empresas quanto o mercado sejam tão grandes, é que o estado tem subsidiado a infraestrutura dos transportes às custas dos cidadãos em geral, tornando assim o frete artificialmente barato para longas distâncias. Isto faz com que grande produtores ineficientes sejam artificialmente competitivos contra pequenos produtores, que vêem seus mercados locais serem invadidos com a anuência do estado. É por isso que há tantos gigantes do varejo tirando pequenos varejistas locais do mercado, valendo-se de suas operações internas para distribuir produtos fabricados por mão de obra explorada da China.
A perda de biodiversidade, o desmatamento e as emissões de CO2 nos últimos quarenta anos aconteceram, porque o ecossistema como um todo não passa de um lixão sem dono, em vez de ser um bem comum regulamentado. O estado normalmente se apropria de florestas, reservas minerais, etc. – comumente em detrimento de populações indígenas que habitam a região –, e garante acesso privilegiado a indústrias extrativistas que têm a capacidade de esgotar os recursos sem que internalizem os custos nos quais incorrem.
Por mais surpreendente que possa parecer, existe um forte paralelo entre esta visão de abundância do livre mercado e a visão marxista de um sistema comunista plenamente estabelecido. Carl Menger escreveu sobre os bens econômicos (isto é, bens que estão sujeitos ao cálculo econômico devido à sua escassez) que vêm a se tornar bens não-econômicos (isto é, que sua abundância e seu custo de produção próximo a zero fazem o custo para calculá-lo maior que para produzi-lo, se este houver). Isto se alinha a uma enorme corrente de pensamento entre os socialistas pertencentes ao movimento da cultura livre/código aberto/peer-to-peer. Eles vêem o modo de produção comunista que é praticado pela Linux e outros desenvolvedores de softwares de código livre como a semente de uma nova formação social pós-capitalista e pós-escassez. Assim como o modo de produção capitalista teve início em pequenas ilhas (os burgos) dentro da grande economia feudal, para mais tarde vir a ser o centro de uma nova formação social dominante, a produção de pares baseada em bens comuns é o núcleo em torno do qual a economia pós-capitalista, por fim, se cristalizará.
O economista marxista Richard Wolff defende o cooperativismo como forma primária de se construir as bases para um sistema comunista nos Estados Unidos. Como ele afirma emWorker Cooperatives versus Capitalist Enterprises & the History of the Labour Movement:
Cooperação é o nome dado a muitas coisas diferentes – quando falo disso, me refiro à cooperação no processo trabalhista e não no processo de compra. Por exemplo, aqui nos Estados Unidos temos milhares do que chamamos de cooperativas de alimentos. São pessoas que se agrupam em cooperação para comprar sua comida do dia a dia. Elas cooperam na aquisição, não na produção ou na distribuição. Elas reconhecem que grupos numerosos tornam a compra coletiva mais barata do que se comprassem individualmente. Faz todo sentido – é exatamente assim que o capitalismo funciona, mas não é a isso que me refiro ao falar de cooperação. Ninguém tem o direito de dizer se aquilo que fazem é ou não cooperação, apenas quero pontuar que minha definição, e a de pessoas como eu, é voltada para cooperativas de trabalho. E basicamente o que quero dizer é: ausência de hierarquia, ausência de um quadro de diretores, supervisores ou capitalistas mandando no que você produz, como, onde e no que fazer com os lucros obtidos. Em vez disso, nós democratizamos o local de trabalho; dizemos que todos os que venham a trabalhar juntos, seja em lojas, escritórios ou fábricas, tomem todas as decisões – cada pessoa equivale a um voto. Não é nem um pouco complexo e existe desde tempos imemoriais.
Permita-me encerrar com dois exemplos, um pequeno e outro grande. E pretendo tomar como exemplo negócios de hoje, que pessoalmente já visitei, para garantir que você saiba de onde tiro meu embasamento. Um desses negócios está situado na Baía de São Francisco, na California. Originalmente era uma padaria e casa de queijos que foi se expandindo e hoje também se tornou uma pizzaria. Ela emprega mais de cem pessoas e foi crescendo, ao longo dos trinta anos de sua existência, porque foi assombrosamente bem sucedida. Ela está presente em São Francisco, em Berkeley e em outras cidades desta região; tudo que fazem é de maneira coletiva. Se juntam e tomam decisões: qual tecnologia vão adotar?; o que irão produzir?; qual cronograma seguem?; de que forma farão a divisão daquilo que arrecadarem?; quanto do excedente individual estarão dispostos a abrir mão para reinvestirem em expansões?
Todas essas escolhas, que normalmente são tomadas por uma minoria de diretores e mandatários, são, neste caso, discutidas e decididas coletivamente e democraticamente. Esta iniciativa foi tão bem sucedida ou mais que empresas do mesmo ramo, organizadas de maneira capitalista, naquela área. E diga-se de passagem, a alguns kilômetros ao norte, há a Alvarado Street Bakery, uma entidade ainda maior e mais famosa (gerida pelos trabalhadores), que obteve sucesso em se tornar uma das grandes fábricas e distribuidoras de pães do norte da California.
Eu poderia oferecer mais tantos exemplos, já que o número de cooperativas de trabalhadores está crescendo à medida que o interesse por elas aumenta, mas todos estes exemplos ainda são relativamente pequenos. São iniciativas que começam com dez ou vinte funcionários e depois vão expandindo. Deixe-me focar então em um exemplo grande – o mais famoso que existe, para que os interessados no assunto possam ir atrás: chama-se Corporação Mondragon. Situa-se no País Basco, no norte da Espanha e ao sul dos Pirineus, que os separam da França.
Em 1956, esta região que já era muito pobre, havia empobrecido ainda mais após a Guerra Civil Espanhola, da década de 30, e logo em seguida a Segunda Guerra Mundial. Portanto, a situação local era desesperadora, de modo que, enquanto pregava em sua paróquia, o padre José Maria Arizmendiarrieta dizia que se fossem esperar até que um capitalista viesse lhes oferecer trabalho, todos morreriam de velhice. Assim, se não quisessem morrer esperando, deveriam ser seus próprios patrões; e com esta ideia engendrou – sob a proteção da Igreja Católica – uma cooperativa de trabalhadores no pequeno município de Mondragon, no País Basco.
Tudo bem, agora voltemos ao presente: a Corporação Mondragon é hoje a sétima maior empresa da Espanha, empregando mais de cem mil funcionários; não são todos, mas uma grandiosa parcela deles é cooperativada. E nessas cooperativas eles não apenas aprenderam como crescer de seis para cem mil funcionários (em 2018), mas eles também competem com empresas tradicionais da região e obtém sucesso, porque são tão eficientes ou mais, na produção de bens e na oferta de serviços – a preços mínimos –, quanto uma produção capitalista. Em parte, isto se deve ao fato de que, sendo os donos e administradores da empresa, os trabalhadores têm mais incentivos e comprometimento com a eficiência do que os assalariados de uma empresa comum. É por isso que os capitalistas se vêem obrigados a gastar dinheiro com discursos motivacionais, musiquinha ambiente e alguns benefícios, tentando fazer com que seus funcionários desenvolvam algum amor por algo que de fato não controlam. Nada disso é preciso quando se trabalha em cooperação. Não há que se preocupar com sentimentos quando a realidade põe o controle da situação em suas mãos.
Na Mondragon, por exemplo, os empregados estipularam que o mais bem pago deles não deveria receber mais que seis ou oito vezes do que aquele que menos recebe. Eles não querem que haja uma terrível disparidade. Que tipo de disparidade? Aquele que temos hoje nos Estados Unidos, em que a relação dos ganhos de um CEO e de um operário é de trezentos para um; não de, no máximo, oito para um.
Se você pretende fazer alguma coisa a respeito da desigualdade que assombra o mundo capitalista, é assim que se faz. Lá, eles já fizeram. Se você puder ir e visitar a cidade de Mondragon, verá que eles não apresentam a discrepância que infelizmente se encontra patente em outras cidades, até mesmo da Espanha.
Eles fizeram ainda mais: decidiram que a contratação ou demissão de supervisores é feita pelos empregados – o exato oposto do capitalismo. Uma vez por ano, os trabalhadores se reúnem para discutir e avaliar a atuação deles e, se não estiverem satisfeitos com este ou aquele supervisor, podem demiti-lo. Os de baixo demitem os de cima, não o contrário. E isto têm sido assim pelos mais de 60 anos de sua história de sucesso.
Portanto, aqui está: cooperação entre trabalhadores em pequena e grande escala. Eu escolhi, é claro, aquelas que obtiveram maior sucesso. Não estou sugerindo que cooperativas serão sempre as mil maravilhas. Elas também podem dar errado, como qualquer iniciativa capitalista, mas até nisso se trata de uma experiência muito peculiar. Elas lidam com o problema de forma muito diversa e apresentam mecanismos de proteção melhores do que empresas capitalistas. Quando surgem os contratempos elas não demitem pessoas, mas encontram outras formas de contornar a situação e, de fato, elas têm se saído muito bem nisso. Há uma professora na Escola de Negócios da Universidade de Leeds, na Inglaterra; seu nome é Virginie Pérotin. Ela é uma especialista em administração cujo trabalho é pesquisar e comparar cooperativas de trabalhadores com empresas tradicionais. Procure-a e veja seu trabalho, que está disponível na internet. Sua conclusão não deixa margem para dúvidas: a cooperação é um mecanismo de produção mais eficiente do que a hierarquia capitalista.
A ideia de se utilizar das associações de trabalhadores livres como um meio de se alcançar resultados comunistas, por meio do mercado, espelha-se no conceito de empreendedorismo comunista (em inglês, venture communism), que visa investir neste modelo associativo para superar a organização capitalista do trabalho. É evidente que para dar alguma chance às cooperativas de concorrerem no mercado, temos de acabar com o sistema de subsídios estatais, alvarás de funcionamento e regulações que caminham de mãos dadas para restringir a competição e favorecer desproporcionalmente o modelo de negócio dos capitalistas. Estas estratégias que se baseiam na atividade de mercado não apenas refletem, mas também complementam, os ideais e objetivos dos anarcossindicalistas, que também são favoráveis à abolição de legislações trabalhistas. Apesar dessas leis terem como intenção principal o fortalecimento do trabalho frente ao capital, na prática elas sujeitam os trabalhadores às estruturas burocráticas – as mesmas que atrasam o movimento operário organizado.
Entre as ideias de empreendedorismo comunista, sindicalismo e os movimentos organizados de cooperação, código aberto, compartilhamento e de economia circular, parece haver o mesmo ímpeto de se comunizar os mercados e inúmeras indústrias. E dentro de um sistema de completa liberdade econômica, estas tendências seriam ainda mais fortemente alavancadas.
Adotando-se a automação combinada com a propriedade cooperativa em um livre mercado, iremos em direção ao comunismo de luxo.
Fazendo uma referência ao livro de Aaron Bastani, Fully Automated Luxury Communism, o site luxurycommunism. com afirma que:
A automação, em vez de minar um sistema econômico calcado no pleno emprego, é o caminho para um mundo de liberdade, luxo e felicidade. Os avanços tecnológicos diminuirão o valor de mercadorias relacionadas à alimentação, saúde e moradia para próximo de zero. As melhorias no campo da energia renovável farão dos combustíveis fósseis uma coisa obsoleta. Asteróides serão minerados na busca de recursos essenciais. A edição de genomas e a biologia sintética prolongarão a vida humana, acabarão com doenças e permitirão o consumo de carne sem envolver o abate de animais.
Teoricamente, poderíamos acabar com atividades inúteis, automatizar fábricas e reduzir a carga horária de trabalho, fácil e significativamente, se não fosse pelo fato dos salários se encontrarem em patamares muito abaixo do que deveriam; se fossem cortados os expedientes sem que as pessoas recebessem alguma forma de compensação, elas sairiam muito prejudicadas desta equação. Permitir que haja mais propriedades coletivas de trabalhadores seria uma maneira de resolver este problema, já que as cooperativas tendem a não demitir seus funcionários, como bem apontou Wolff, e mesmo que fossem encurtadas as horas de trabalho, devido a uma redução da força laboral necessária, os trabalhadores ainda receberiam a mesma quantia pela mesma quantidade de produção. Mas há hoje, em nossa sociedade, um baixo índice de propriedades geridas por funcionários, e mesmo que houvesse algum aumento dele ainda não seria o suficiente para que os desempregados pudessem sobreviver. Isso tem levado muitos empregados e consumidores, preocupados com o desemprego, a protestarem contra a automação de vários setores produtivos e a abraçar a criação de empregos de fachada, como forma de atingir o pleno emprego. Qual a alternativa?
É aí que entra a ideia de uma renda básica universal (RBU) como medida temporária, defendida tanto por David Graeber, quanto por Aaron Bastani e tantas outras figuras.
Alguns podem achar que a defesa da RBU é antagônica aos ideais anarquistas, mas como afirmei no meu outro ensaio, An Anarchist Case for UBI:
Como alternativa ao nosso sistema atual de bem-estar, a RBU seria muito menos burocrática e onerosa para se administrar. Hoje, existem mais de setenta programas de assistencialismo. Isto inclui desde o auxílio a locatários, passando pelo vale-refeição, até a assistência médica. Mas estes programas apresentam inúmeros requisitos, exigindo que o candidato se enquadre em tais e quais critérios para que possa receber os benefícios. O problema deste modelo é que ele restringe oportunidades de crescimento individual. Para que alguém se encaixe perfeitamente nos requisitos é preciso que esta pessoa administre sua vida de tal forma que nunca aceite uma proposta para subir na carreira, ou que mantenha suas atividades profissionais totalmente por baixo dos panos, condição esta que também acaba limitando as chances de crescimento no trabalho. Para completar, os benefícios vêm com infinitas restrições. Uma pessoa que receba duzentos dólares mensais de vale-refeição não pode usar este dinehiro para investir em uma eventual oportunidade de negócio, que lhe renderia muito mais que apenas duzentos dólares em alimentação – poderia lhe garantir maior estabilidade dali em diante. Alguém que receba vale-refeição sequer pode usá-lo legalmente para comprar comidas prontas, o que não faz qualquer sentido se considerarmos os desabrigados que recebem este benefício.
Portanto, aglutinar todos esses programas de assistência em apenas um, para o qual todos os cidadãos se qualificam, independentemente de sua renda ou de qualquer outro critério, não apenas permitiria maior mobilidade econômica, mas também lhes ofereceria liberdade na hora de gastar o dinheiro. É certo que isto prejudicaria aqueles que hoje recebem mais em benefícios do que a RBU lhes proporcionaria, no entanto já foi proposta uma solução para este problema. Andrew Yang sugeriu que ao invés de substituirmos completamente um sistema pelo outro, déssemos a opção às pessoas de aderir a um ou a outro sistema. Desta forma, elas não seriam empilhadas, umas em cima das outras, custando uma fortuna para os cofres públicos. Em vez disso, poderiam escolher entre os já conhecidos benefícios, cheios de restrições, ou dinheiro vivo sem quaisquer amarras. Contanto que a RBU fosse estabelecida em um patamar digno, a maioria das pessoas, muito provavelmente, optariam por ela, enquanto o sistema de benefícios cairia em desuso. Conciliar a renda básica universal a outras medidas nas áreas de saúde e educação também pode ser uma boa saída para assegurar que ninguém seja excluído.
Outra grande crítica vinda da esquerda é a de que deveríamos fortalecer nosso poder de negociação, enquanto a RBU serviria mais ao propósito de transformar os cidadãos em meros consumidores passivos. Tal crítica funda-se em um modo de produção cada vez mais ultrapassado. Embora sempre haja trabalho a ser feito, os programas de treinamento e reciclagem de profissionais já se provaram extremamente ineficazes em preparar trabalhadores manuais, sejam eles qualificados ou não, para assumirem cargos que envolvam alta tecnologia, como codificação. Considerando a taxa atual de automação, a ideia de haver propriedades coletivas de trabalhadores dentro do sistema econômico atual parece favorecer que um punhado de capitalistas detenham fábricas totalmente automatizadas, enquanto o restante de nós ficamos desempregados e famintos. É evidente que não são todos os setores industriais que podem ser automatizados assim, mas com a ameaça da automação destituindo trabalhadores de seus postos, focar apenas no poder de negociação serve só aos empregados ainda não familiarizados com a automação. Para todos os outros, restaria torcer para que o poder de negociação daqueles trabalhadores fosse usado em benefício de toda a classe operária (incluindo os desempregados), e não apenas deles próprios e de seus colegas.
Mas a noção de que a RBU não oferece um incremento na capacidade de negociar do trabalhador é de todo falsa. A principal razão para que muitas pessoas optem por não se sindicalizarem é o medo de perderem seus empregos, como forma de retaliação. Este medo poderia ser atenuado pela renda básica universal, que permitiria às pessoas atenderem a suas necessidades mais imediatas. Isto significaria maior liberdade para a classe trabalhadora do que ela jamais teve. E para aqueles que não desejassem se submeter a um patrão, seria possível que juntassem suas RBUs e se organizassem em cooperativas, propriedades coletivas e parcerias colaborativas. Entre um movimento trabalhista recém-alforriado e uma nova base de capital, os trabalhadores estariam menos sujeitos aos desmandos de seus patrões e mais livres para seguir seus desejos – como jamais conseguirão sob o nosso modelo econômico atual.
Por fim, a RBU tem sido criticada por retirar o incentivo das pessoas de trabalhar. Enquanto ela atenua os aspectos coercitivos do trabalho – já que permite que você atenda a suas necessidades básicas e não se veja em um dilema entre trabalhar ou morrer –, isto não pode ser visto como algo ruim. Tal coerção é totalmente dispensável. Implementar uma RBU facilitaria a tarefa de livrar o mercado dos empregos de mentira e na busca por atividades mais significantes. As pessoas seguirão trabalhando na solução de problemas em suas comunidades, por sermos seres gregários e por isso gerar melhorias em nossas vidas; as pessoas farão tudo que for necessário para garantir sua própria sobrevivência e de seus entes queridos e, na condição de seres comunitários, sabemos que é menos custoso sobreviver coletivamente. Na realidade, havendo menos pessoas que dediquem seu tempo a empregos de faz de conta, teremos mais gente concentrando esforços naquilo que realmente importa. Mais pessoas se sentirão inspiradas para criar novas tecnologias, como comprovam as iniciativas adeptas do código aberto. Estas coisas não acontecem pela coerção, mas pelo interesse que temos nelas e pelo prazer que extraímos disso. E certamente testemunharemos uma grande mudança em toda produção de massa; em vez de bens sem sentido, o foco estará em itens de primeira necessidade, no conforto e no luxo, e na produção artística. Livres do dilema coercitivo entre trabalhar e morrer de fome, os bens e serviços que valoramos influenciarão na oferta e na demanda, de modo que o mercado há de corresponder naturalmente a isso. Em outras palavras, um mercado livre de coerção tenderá a uma leitura mais precisa das conjunturas e funcionará melhor. Afinal, quanto mais livre é o mercado, mais livre é o povo.
A proposta de renda básica universal poderia ser dissociada do estado se mutualizássemos serviços e espaços públicos – como parques, hospitais e outros empreendimentos do estado –, bem como todas as instituições e organizações financiadas por ele, cedendo-as para aqueles que nelas trabalham, de forma que se tornassem associações de trabalhadores livres e de membros comunitários, como defendido por Murray Rothbard, no artigo Confiscation and the Homestead Principle.
Aumentando os direitos de propriedade de trabalhadores associados, veremos uma diminuição na repercussão negativa que a automação gera, uma vez que os empregados terão asseguradas suas participações na propriedade, além de possuírem uma renda certa, mesmo no caso de um eventual processo de automação vir a destituí-los de suas funções na produção. Em vez disso, eles repartiriam entre si aquilo que restasse de trabalho a ser feito e se beneficiariam de um expediente mais curto. Isso, na verdade, incentivaria que os funcionários sempre buscassem maneiras de poupar sua mão de obra. Conforme estes empreendimentos e antigos serviços fornecidos pelo governo sofressem um processo de automação, eles passariam do controle por parte dos trabalhadores para o controle exercido pelos membros da comunidade, fazendo do lucro que gerassem uma espécie de RBU advinda de mão de obra autômata.
Quanto menos mão de obra for preciso para levar adiante operações produtivas comuns, mais curtas serão as jornadas de trabalho e mais os indivíduos poderão dedicar seu tempo livre às suas verdadeiras paixões. É claro que alguns podem se dar por satisfeitos apenas curtindo a vida, viajando e consumindo; mas há também quem prefira ir atrás dos seus sonhos nas artes, nas ciências, na tecnologia, na medicina e em outros campos que nos farão avançar como sociedade – e esta não apenas sobreviverá, mas florescerá em um mundo livre do trabalho.