Anarquistas Sem Adjetivos

De Kevin Carson. Original: Anarchists Without Adjectives, 21 de março de 2016. Traduzido para o português por Gabriel Serpa.

Introdução

A denominação anarquismo sem adjetivos (pelo menos enquanto expressão – já que o conceito, como veremos adiante, parece ter se originado com Errico Malatesta) surgiu com o trabalho de dois anarquistas espanhóis, Ricardo Mella e Fernando Tarrida del Marmol. Ambos levaram adiante sua tese como uma resposta às intrigas e conflitos doutrinários dentro do movimento anarquista europeu – dividido entre os coletivistas, seguidores de Bakunin, e os comunistas que ganhavam mais espaço –, disputa esta que rachava o anarquismo na década de 1880.
Tarrida, que emigrou de Cuba para a Espanha, publicou Anarquismo Sem Adjetivos no periódico libertário La Révolte. Somos anarquistas e pregamos o anarquismo sem adjetivos, escreveu. Anarquia é um axioma e a questão econômica é secundária. Ele não se opunha ao diálogo ou mesmo aos desentendimentos econômicos que eclodiam de mutualistas, coletivistas, comunistas e sindicalistas – ele compreendia, com efeito, essas visões como complementares entre si, em vez de excludentes –, mas rechaçava os sistemas totalizantes e dogmáticos, de baixa relevância e alto grau de sectarismo.

Isso não significa que ignoremos as matérias econômicas. Pelo contrário, agrada-nos discuti-las, mas apenas como forma de contribuir para uma solução definitiva – ou soluções definitivas. Muitas coisas magníficas foram ditas por Cabet, Saint Simon, Fourier, Robert Owen e tantos outros; mas todos os seus sistemas caíram em desuso por almejarem aprisionar a sociedade a concepções próprias de suas cabeças, a despeito de terem feito muito pelo esclarecimento do assunto.

Lembremos que no momento em que começamos a delinear os aspectos gerais de uma sociedade do futuro, por um lado surgem objeções e questionamentos de nossos adversários; por outro, o desejo natural de produzir uma obra perfeita e completa nos levará a criar um sistema que, certamente, sucumbirá como os outros.

Concordemos, assim, como quase todos temos feito na Espanha, em adotarmos a simples alcunha de anarquistas. Em nossas conversas, conferências e imprensa, discutamos as questões econômicas, mas jamais permitamos que elas sejam o motivo da divisão entre nós.

Errico Malatesta e Max Nettlau também adotaram o posicionamento anarquista sem adjetivos. Nettlau entendia que ambas as tendências – comunista e individualista – do anarquismo eram vitais. E como afirmou [Paul] Avrich, parafraseando seu argumento, preferências econômicas irão variar de acordo com o clima, os hábitos, os recursos naturais e gostos pessoais, portanto nenhum ser, por si só, pode determinar qual é a solução correta. Nettlau apresentou essa questão em Freedom and Mother Earth, em 1914. Escreveu:

[Tarrida del Marmol] o utilizou em novembro de 1889, em Barcelona. Ele direcionou seus comentários aos anarquistas comunistas e coletivistas espanhóis, que naquele tempo debatiam intensamente acerca das virtudes de cada uma de suas teorias. O “anarquismo sem adjetivos” foi uma tentativa de apaziguar os ânimos entre tendências libertárias e tornar claro que não deveriam impor ideias econômicas preconcebidas uns aos outros – nem em teoria. Logo, as preferências econômicas de cada um ficariam em segundo plano na luta contra o estado capitalista, sendo a experimentação livre a única regra para uma sociedade liberta.

[…] as bases da argumentação podem ser encontradas no desenvolvimento do anarcocomunismo, posterior à morte de Bakunin em 1876.

[…] rapidamente as ideias coletivistas deram lugar às comunistas no posto de principal tendência anarquista européia, com exceção da Espanha. Aqui, a grande questão não girava em torno do comunismo (apesar de ter tido algum impacto, segundo Ricardo Mella), mas da modificação dos estratagemas decorrentes do anarquismo comunista. Neste período (década de 1880), os anarcocomunistas fortaleceram células locais, compostas por militantes anarquistas, que geralmente se opunham ao sindicalismo (apesar de Kropotkin não compactuar com essa visão e entender a importância da militância de trabalhadores organizados), bem como adotavam uma postura, de certa forma, contrária a organizações em geral. Como era esperado, tal mudança estratégica gerou muita repercussão entre os anarcocoletivistas espanhóis, que apoiavam firmemente as organizações advindas da classe operária e suas lutas.

O anarquismo sem adjetivos, então, refletiu o consenso de uma maioria de libertários que perceberam que “não podemos prever os desdobramentos econômicos do futuro” e optaram por focar naquilo que tinham em comum (a oposição ao estado capitalista), em vez de se concentrarem nas diferentes visões que tinham acerca do funcionamento de uma sociedade livre.

Voltairine De Cleyre, a quem caberia a tarefa de popularizar essa corrente nos EUA – ante a rixa entre individualistas e comunistas –, conheceu Fernando Tarrida del Marmol em Londres, no ano de 1897.

Errico Malatesta

Malatesta, como relatado por Max Nettlau em A Short History of Anarchism, afirmou que não era correto que anarquistas fomentassem a discórdia entre si por causa de meras hipóteses. Ele tratou do rompimento entre coletivistas bakuninistas e comunistas como sendo de caráter enfático e metódico em sua maior parte. O que mais importava, dizia ele, era que – independente da corrente econômica formalmente defendida por diferentes escolas anarquistas – uma nova consciência moral há de florescer, fazendo do trabalho assalariado algo repugnante a homens e mulheres, exatamente como o sistema legal escravagista, hoje, se tornou asqueroso. Sob estas condições, qualquer que seja o modelo específico de sociedade que venha a surgir, as bases para sua organização social serão comunistas. O mais importante era apegar-se aos princípios primordiais – direcionar a sociedade pós-revolução à justiça, igualdade e liberdade – e deixar que ela mesma encontre aplicações específicas para eles.
Em um artigo de La Révolte, em 1889, escreveu:

Em todas essas questões é necessário que se trace uma linha que divida aquilo que é comprovado cientificamente daquilo que ainda permanece no campo das hipóteses ou predições; é preciso distinguir aquilo que deve ser feito de maneira revolucionária – isto é, por meio de força e imediatamente – daquilo que virá a ser uma consequência de nossa evolução e, portanto, deve ser deixado para os esforços livres de todos, harmonizados gradativa e espontaneamente. Existem anarquistas que admitem outras soluções, outras formas de organização social para o futuro, mas eles almejam, tanto quanto nós, a reorganização espontânea das funções sociais sem outorga de poderes e sem governo; eles desejam, tanto quanto nós, lutar até que sejamos vitoriosos. Estes também são nossos camaradas e irmãos. Portanto, não sejamos exclusivistas, entendamos uns aos outros quanto às formas e os meios e marchemos em frente.

Essa distinção entre o que está provado e o que é hipotético, escreveu Nettlau, incluía separar aquilo que podemos – e de fato devemos – concordar hoje em dia, daquilo que somente a experimentação futura, sob novas condições – após uma revolução –, poderá nos ensinar a solucionar. Durante um discurso em Londres, no ano de 1890, ele afirmou:

[deixemos] as diferenças de opiniões econômicas para depois da revolução, e mesmo então elas deveriam apenas resultar na reprodução de nossa fraternidade e na disseminação da felicidade social; quando todos puderem testemunhar os resultados das experimentações, as questões – que não precisam nos separar hoje – serão decididas.

Joseph Labadie

Nos EUA, o anarquismo sem adjetivos surgiu em um contexto conflituoso – e opondo-se desde o início a ele – de muito ressentimento entre os anarquistas individualistas, que em sua maioria já haviam nascido naquelas terras, e os anarquistas comunistas, compostos em sua maior parte de imigrantes de outros países. Este racha entre as duas correntes personificou-se com o embate de Benjamin Tucker e William Most, no qual negavam-se a reconhecer comunistas e individualistas, respectivamente, como legítimos anarquistas.
Muitos pensadores do círculo individualista, do qual Tucker fazia parte, tentaram preencher as lacunas presentes em seu pensamento ao mesmo tempo em que buscavam elos que os aproximassem dos anarcocomunistas e dos movimentos trabalhistas. Desta forma, eles pavimentaram as bases para o anarquismo sem adjetivos.
Joseph Labadie era um ativista trabalhista e vinha do movimento socialista, portanto tinha maior proximidade com estes núcleos do que tinha Benjamin Tucker. Ele iniciou sua trajetória escrevendo para jornais adeptos ao socialismo e ao movimento operário, e continuou a se relacionar com eles mesmo após tornar-se um escritor recorrente do Liberty, periódico editado por Tucker (permanecendo, por exemplo, no cargo de secretário nacional do Partido Socialista Trabalhista [Socialist Labor Party of America]).
Gradativamente, desiludiu-se com o sectarismo característico de setores dos partidos socialistas e foi aderindo à tradição individualista do anarquismo. Contudo, seu interesse pelo movimento dos trabalhadores só aumentou. Ele discursava em incontáveis conferências de operários, apresentando pontos de vistas anarquistas para as questões do trabalho, como alternativa às abordagens socialistas democráticas e parlamentaristas, e sentia que causava enorme impacto em personalidades de destaque do movimento trabalhista de Detroit, dissuadindo-os da atuação político-partidária (possivelmente contribuindo com a forte corrente antipolítica que posteriormente caracterizou aWestern Federation of Miners [ou Federação Ocidental de Mineiros, em tradução livre] e a Industrial Workers of the World [Trabalhadores Industriais do Mundo]).
Como também faria Dyer Lum, Labadie tentou aproximar o individualismo de Tucker ao movimento operário, primeiro com a Knights of Labor (federação americana de trabalhadores do final do século XIX), e depois com o semi-sindicalismo da WFM e da IWW. Apesar de haver abandonado quase que por completo as práticas político-partidárias, além de ter desencorajado os movimentos de trabalhadores de seguirem naquela direção, diferente de Tucker, Labadie era otimista quanto à perspectiva de que os movimentos organizados garantiriam a redução da carga horária de trabalho sem que houvesse, no entanto, cortes salariais ou aumento do ritmo de produção.
Ele ainda desempenhou um papel fundamental na formação da Michigan Federation of Labor (Federação do Trabalho de Michigan), em 1888, tornando-se o primeiro presidente da mesma. Ao longo da década de 1890, recusou distanciar-se dos anarquistas do movimento trabalhista, mesmo após o envolvimento de alguns deles na tentativa de assassinato de Henry Clay Frick e na morte de McKinley. A despeito de ter condenado o ato, expressou simpatia pelas motivações que levaram à consumação do feito, explicando que atos de violência são consequências naturais do sistema político vigente e da opressão que sofre o trabalhador.
Contudo, o mais relevante para os nossos propósitos aqui é que Joseph Labadie rejeitou a prática de excomungar comunistas do movimento anarquista, adotada por Benjamin Tucker. Como ele próprio publicou, em uma edição de 1888, no periódico Liberty: é irrelevante se nos dizemos comunistas ou individualistas, contanto que sejamos anarquistas. Do meu entendimento, a Anarquia admite qualquer forma de organização, desde que a participação não seja obrigatória.

Dyer Lum

Praticamente tudo de maior relevância que James J. Martin tem a dizer a respeito de Dyer Lum, apesar de ele ser considerado uma das mais interessantes e importantes figuras do movimento anarquista americano, cabe em mais ou menos meia página, em Men Against the State:

[Lum] estabeleceu relações com duas de suas maiores correntes, ao longo de dez anos agitados de associação, mas sempre se manteve próximo da filosofia individualista… sua carreira como integrante do movimento trabalhista foi alavancada nos protestos de Pittsburgh, durante a greve de ferroviários, em 1877, mas antes mesmo da Revolta de Haymarket já havia se juntado a anarquistas e mutualistas, no campo da esquerda radical, entusiasmado pelas ideias de cooperação no campo econômico.

Após a prisão de Parsons em Chicago, Lum reviveu The Alarm [periódico do qual foi editor], no final do ano de 1887, promovendo grandes mudanças na sua política editorial para que se alinhasse àquela adotada pelo Liberty, para o qual ele havia escrito por um certo período. Dali em diante, seguiu pela linha dos individualistas, tratando de temas como a propriedade pela ocupação e uso das terras e o banco de crédito mútuo, em obras de sua autoria e em publicações para veículos de comunicação de terceiros. Ao lado de Benjamin Tucker, reiterou sua convicção de que era desnecessário o uso da força na efetivação de uma revolução, e que tampouco havia qualquer comprovação de sua eficácia.

Deste ponto em diante, as informações apresentadas pertencem a um artigo, de Frank H. Brooks, que trata das ideias de Dyer Lum.
Lum foi, disparado, o mais simpático dos individualistas ao ideal trabalhista. Assim como Labadie e Voltairine de Cleyre, ele buscava encurtar a distância que separava Benjamin Tucker e os individualistas americanos dos movimentos ligados ao trabalho e imigrantes sindicalistas e comunistas. E como o próprio Tucker, Lum veio da tradição reformista de New England, passando por muitas de suas correntes, até finalmente se identificar com o anarquismo. Envolveu-se, nos anos de 1870, com o Labor Reform Party, trabalhando como encadernador e jornalista. A partir deste contato, estabeleceu relações com o Greenback Party e o movimento pela jornada de trabalho de oito horas. Sob a influência de [Henry] George, condenou o governo americano pela cessão de terras a corporações e culpou as restrições à propriedade dos trabalhadores advindas daí como responsáveis pela precarização do trabalho. Do Greenback Party, Lum foi para o Socialist Labor Party, em 1880, e em meados desta década aderiu à International Working People’s Association (IWPA) – contudo, diferente da maioria de seus integrantes, Lum fazia uma análise do capitalismo de um ponto de vista radical de laissez-faire, muito semelhante ao dos individualistas.
Profundamente influenciado por [Pierre-Joseph] Proudhon, Dyer Lum orbitava mais próximo da teoria econômica do mutualismo proudhoniano do que daquela pertencente ao individualismo de Benjamin Tucker. Do mesmo modo, também tinha uma visão de unidade para os anarquistas muito parecida com a de Voltairine de Cleyre. Seu posicionamento econômico era uma combinação incomum do laissez-faire com o ódio ao sistema de remuneração assalariado, pertencente ao movimento trabalhista de Chicago. Lum percebeu que as derrotas eleitorais desastrosas tanto do Socialist Labor Party quanto do Greenback Party deixaram um vácuo de liderança no movimento operário radical que poderia ser preenchido pelos anarquistas, caso estes conseguissem provar que sua mensagem era relevante ao trabalho.
A partir de 1885, como descrito por Brooks, Lum tentou aglutinar a organização da classe trabalhadora, a tática revolucionária e a economia mutualista em um movimento radical unificado, elaborado para fazer do anarquismo um ímã para os trabalhadores radicalizados. Ele não desejava uni-los em linhas dogmáticas de um partido, mas sim criar um laço de afinidades entre eles para que pudessem atuar juntos taticamente, em uma coalizão plural de anarquistas.
Lum deu o acabamento ao seu pensamento econômico valendo-se do princípio cooperativo para a produção – não apenas para as manufaturas e trabalhos artesanais, mas em associações industriais de larga escala. Quanto a isso, ele via os sindicatos não somente como uma arma a ser utilizada contra os males existentes, mas como a semente de uma organização industrial do futuro, formada em torno da associação de produtores.
No contexto do pós-Revolta de Haymarket, o movimento anarquista rachou em dissidências à medida em que os individualistas percebiam suas profundas diferenças em relação aos imigrantes comunistas. Não obstante, Lum acreditava na aproximação dos dois grupos. Foi neste período que veio a conhecer de Cleyre.
Durante a décade de 1890, ele priorizou a estratégia de introduzir princípios anarquistas em sindicatos. Se aproximou da American Federation of Labor (AFL) e passou a fazer parte da equipe de [Samuel] Gompers. Seu folheto The Economics of Anarchy foi elaborado para iniciar grupos de estudo de trabalhadores nas práticas mutualistas como crédito bancário, reforma agrária, cooperação, dentre tantas outras. Também declarou apoio às greves de Homestead e Pullman e toda a onda grevista que culminou na criação da Western Federation of Miners de Haywood.
Dyer Lum merece bastante crédito por fundir tantas vertentes diferentes em uma única e peculiar ideologia americana. Ele uniu uma visão radical de empoderamento da classe trabalhadora a uma compreensão razoavelmente sofisticada de economia clássica e mutualista, circunscritas – assim como o folheto de Voltairine de Cleyre, Anarchism and American Traditions – nos moldes dos símbolos populares e tradicionais americanos.
Neste ínterim, Lum adotou por conta própria um posicionamento tolerante, tratando como secundárias as questões em torno de sistemas econômicos em relação à extinção do estado.
E como faria de Cleyre em seu folheto, Lum também apelou ao republicanismo radical e libertário da Revolução, especialmente da retórica adotada por [Thomas] Paine e [Thomas] Jefferson, como sendo os precursores de vertentes populares do anarquismo nascidas nos EUA.
Segundo o esboço biográfico feito por Hippolyte Havel, Dyer Lum também foi indiscutivelmente uma das grandes influências que moldariam o desenvolvimento de Voltairine de Cleyre. Esta é a deixa perfeita para adentrarmos a próxima parte.

Voltairine de Cleyre

Apesar de toda sua admiração pela inteligência acentuada de Benjamin Tucker, Voltairine de Cleyre via como problemáticos os efeitos divisivos do caráter dogmático inerente a ele. Em uma carta escrita em 1907, ela o descreveu como alguém que dispara suas setas duras e afiadas entre amigos e adversários, com uma gélida imparcialidade, acertando a todos e os talhando com perspicácia – sempre preparado para crucificar um traidor. Como resposta a tais preocupações, incluindo aquela em torno da unidade entre anarquistas – que compartilhava com Dyer Lum –, ela aderiu ao rótulo de anarquista sem adjetivos.
Apesar de não ter inventado o termo, de Cleyre – que vinha da tradição tuckerista do individualismo – já na virada do século havia sido identificada como a expoente primordial do anarquismo sem adjetivos nos EUA.
No diálogo de 1893, em O Individualista e o Comunista, a doutrina econômica do interlocutor individualista resumiu, quase que integralmente, a explicação feita por Tucker a respeito dos quatro tipos de monopólio, presente em seu ensaio Socialismo de Estado e Anarquismo:

Um dos três fatores da produção é livre. Os trabalhadores são livres para competirem entre si, e até certo ponto também o são os capitalistas. Mas entre trabalhadores e capitalistas não há qualquer competição, porque por meio do privilégio governamental que é conferido ao capital – ao serem reguladas a base monetária e a taxa de juros –, seus proprietários e detentores passam a determinar qual será o grau de dependência a que estarão submetidos os trabalhadores na busca por empregos, tornando permanente a sua condição de sujeição ao trabalho assalariado. Enquanto for possível a um homem, ou a um grupo deles, impedir que outros trabalhem para eles próprios – impedindo-os assim de controlarem seus meios de produção, e de capitalizarem com o fruto de seus esforços –, não haverá liberdade para que estes compitam com aqueles a quem o privilégio garante os meios…

Vocês não percebem que uma vez que o empregado não abre mão de parte do que produz por vontade própria, em benefício de seu empregador – e está fora das capacidades humanas dizer que ele o faz –, só pode haver, então, algo que o force a proceder dessa maneira? Não vêem que as necessidades do empregador são imputadas ao empregado, pela incapacidade deste de controlar os meios de produção? Não podendo empregar a si mesmo, ele se vê obrigado a vender seu trabalho, mesmo que em desvantagem, àquele que detém a terra e o capital. Portanto, este homem não é mais livre para concorrer com seu patrão do que é o prisioneiro de competir com o carcereiro, que o mantém cativo, na disputa por ar fresco.

Em seu artigo Anarquismo, publicado na gazeta Free Society, em 1901, seu posicionamento já pareceu de alguma forma mais próximo do anarquismo sem adjetivos. Ela afirmou – com uma retórica muito semelhante à de David Graeber – que o anarquismo diz respeito, primordialmente, à extinção dos privilégios, de forma a permitir aos homens discutirem e desenvolverem relações econômicas e sociais de ordem consensual, como iguais entre si, sem diferenças de poder que possibilitem a eles impor suas vontades uns aos outros. Nenhum modelo econômico específico emergiria, necessariamente, deste arranjo geral; ela estava disposta a respeitar qualquer que fosse o resultado proveniente de tal processo livre e experimental, calcado nas relações horizontais.

É esta a mensagem do Anarquismo ao trabalhador: não se trata de um sistema econômico; não traz consigo uma cartilha detalhada de como vocês, empregados, deverão conduzir a indústria; tampouco impõe métodos sistematizados de trocas; nem mesmo oferece manuais meticulosos sobre a “administração das coisas”. Ele simplesmente evoca ao espírito da individualidade que se levante de sua humilhação, e se sustente no topo de qualquer que seja a organização econômica que venha a surgir. Sejam homens antes de tudo, em vez de cativos daquilo que produzem; permitam que seu evangelho seja “as coisas para os homens, não os homens para as coisas.”

O socialismo, do ponto de vista econômico, é uma proposta positiva para essa organização. É uma tentativa de assimilar e se apropriar das novas conquistas materiais, que foram a grande criação dos últimos quarenta ou cinquenta anos. Não tem tanto em vista as reivindicações e afirmações da personalidade dos trabalhadores quanto tem da justa distribuição de sua produção.

Por ora, deve estar perfeitamente demonstrado que estando a Anarquia mais preocupada com as relações humanas, a partir das ideias e sentimentos dos homens, e não com a positivação de uma forma organizacional de produção e distribuição, cada anarquista deve buscar as propostas econômicas que complementem seu anarquismo, possibilitando a ele moldar para si, e para os outros, uma virilidade independente. Este será o desafio ao escolher uma dessas propostas – a medida pela qual sua individualidade esteja assegurada. Não basta para ele uma tranquilidade confortável e uma rotina calma e bem ordenada; a liberdade de agir para seu espírito de mudança – essa é sua exigência primeva.

Anarquistas têm isto em comum: a organização econômica deve servir a seu fim, a saber, a Anarquia; nenhuma delas se oferece a eles pela simples beleza e fluidez de seu funcionamento; ressentidos pelas transgressões do sistema, eles suspeitam do uso aritmético de seus semelhantes – como se fossem meras unidades de medida –, de um arranjo social elaborado e com uma precisão tão bela aos olhos de quem possa colocar o amor pela ordem em primeiro lugar, mas que aos anarquistas só causa ojeriza: “um cheiro horrível de óleo velho queimado.”

Existem, da mesma forma, várias escolas econômicas entre os anarquistas: a individualista, a mutualista, a comunista e a socialista.

Ela tecia críticas aos partidários fanatizados de cada uma dessas escolas, para os quais não poderia haver anarquismo fora daquele modelo econômico específico que o sustentaria. Ela retrucava: todas essas concepções econômicas podem ser testadas, e não há nada que as torne menos anarquistas até que se introduza a obrigatoriedade de adesão daqueles que não desejam permanecer sob tais arranjos – com os quais podem discordar. Ela especulava que os vários modelos organizacionais poderiam ser tentados em diferentes localidades. Veríamos os instintos e costumes de cada povo expressos nas escolhas feitas livremente em cada comunidade; e estejamos certos de que ambientes diversos seriam adaptados também distintivamente.
Neste mesmo artigo, fica explícito que de Cleyre via o anarquismo sem adjetivos como muito mais que uma simples coexistência das formas de organização anárquicas. As diferenças entre os próprios modelos econômicos são turvas. Ela prosseguiu defendendo que quanto maior a distribuição das riquezas, a abolição do monopólio fundiário e maior acesso a ferramentas e recursos, maior seria também a tendência de fragmentação dos grandes centros populacionais e organizações produtivas em pequenos grupos autogovernados, com uma infinita variedade de expedientes cooperativos entre si e, sendo a coordenação produtiva muito complexa, cada vez menos haveria a categorização padronizada dela. As diferenças práticas entre a cooperação individualista e a organização comunista se tornariam gradativamente indistinguíveis.
Em sua descrição do provável desenvolvimento de uma sociedade anarcocomunista, ela se parece muito mais com William Morris do que com Benjamin Tucker.

É um apelo ao bom-senso dos trabalhadores, propondo àqueles que hoje se sentem incapacitados e dependentes das atividades oferecidas por seus patrões que se constituam em grupos independentes, tomem as ferramentas em suas mãos, realizem o trabalho (que já o fazem), estoquem seus produtos em armazéns retirando para si aquilo que for necessário e permitindo aos outros que equilibrem a equação. Não é preciso um governo, empregadores, nem sistema monetário para isso. É preciso que haja apenas decência e consideração por si mesmo e por seus colegas. Não é provável – de fato, seria preciso esperar com muita devoção – que ajuntamentos tão grandes de homens, como os que temos hoje nos moínhos e nas fábricas, jamais se reúnam dessa maneira por interesse e vontade mútua – uma fábrica é um antro de tudo o que há de mais vicioso na natureza humana, e em grande parte isso se deve apenas pela aglomeração que lhe é inerente.

A ideia de que homens não podem trabalhar juntos a menos que haja um capataz que lhes tire uma parte daquilo que produzem é contrária ao bom-senso e às observações empíricas. Via de regra, chefes só pioram os desentendimentos quando tentam se intrometer nas rusgas entre trabalhadores, como qualquer mecânico pode atestar; e quanto ao esforço conjunto, homens trabalham coletivamente desde que ainda eram macacos; se você não acredita, observe-os. Macacos tampouco abdicam de suas liberdades individuais.

Resumidamente, os trabalhadores de verdade hão de criar suas próprias regulamentações, e decidirão quando, onde e como as coisas serão feitas. Não será preciso que um planejador de uma sociedade anarquista comunista nos diga de que formas setores industriais diversos devem ser conduzidos, tampouco o querem. Simplesmente invoca o espírito desbravador do trabalhador comum e diz: “são vocês os que sabem minerar, escavar e cortar; vocês também saberão organizar seus trabalhos sem a presença de um ditador; não podemos dizer como, mas temos confiança de que encontrarão as soluções por conta própria. Vocês não serão homens até que adquiram esta mesma autoconfiança.”

Quanto ao problema da exata troca de equivalentes, que gera inquietação nos reformadores de outras escolas, ao anarquista comunista ele não existe. Havendo o suficiente para todos, quem se importa? As fontes de riqueza se mantém indivisíveis para sempre; quem liga se um tem um pouco mais do que outro, contanto que todos tenham daquilo que precisam. Quem se importa se algo for desperdiçado? Que seja. A maçã que apodrece, fertiliza o solo tanto quanto se tivesse sido destinada ao pastoreio. E, de fato, vocês que se preocupam tanto com o sistema, a ordem e os ajustes finos da produção para o consumo, desperdiçam mais energia humana com suas equações do que elas merecem. Desta forma, o dinheiro – junto a seu séquito de complicações e artifícios – é abolido.

Comunas pequenas, independentes, autossustentáveis, e que cooperam livremente – este é o ideal econômico mais aceito pelos anarquistas do Velho Mundo hoje em dia.

A este respeito, ela se encaixa perfeitamente com inúmeros outros pensadores – Kropotkin, Ward, Ostrom, Graeber – cujas ideias eu tratei, em estudos anteriores, como integrantes do anarquismo sem adjetivos. A especificidade das experiências humanas, na prática, derruba qualquer rótulo ideológico. O primeiro fenômeno trata de indivíduos de verdade lidando uns com os outros, como iguais, para chegarem a soluções consensuais dos problemas que têm em comum. Como Graeber nos demonstraria posteriormente, quando as pessoas agem juntas desta maneira, sem que ninguém esteja na posição de impor sua vontade aos outros por meio de violência, as soluções que surgem dificilmente se enquadram exatamente em uma prescrição ideológica – como no mito de Procrusto. Ao contrário, o resultado muito provavelmente será composto de uma mistura de medidas ad hoc – mercados, recursos comuns, comunismo cotidiano – que as pessoas elaboram e adaptam àquela situação peculiar. Será difícil que as vertentes, puras e abstratas, sejam identificadas. Da mesma forma, é difícil apontar onde o individualismo acaba e começa o comunismo de Voltairine de Cleyre.
Ela dizia que as diferenças entre os comunistas europeus e anarquistas americanos eram devidas, em maior peso, às diferenças históricas e à memória social:

Quanto ao fator concreto que fez esse ideal se desenvolver na Europa, é a lembrança e alguns resquícios remanescentes das vilas comunais do período medieval – aqueles verdadeiros oasis em meio ao grande deserto de degradação humana que nos fora apresentado durante a Idade Média, enquanto a Igreja Católica se erguia triunfante sobre os homens. É este o ideal glamurizado, que se pôs como um sol dourado, a brilhar nas páginas de Morris e Kropotkin. Nós, nos EUA, nunca conhecemos as vilas comunais. A civilização branca aportou na costa e se espalhou país adentro; entre nós, nunca foram vistas pequenas comunas emergindo espontaneamente dentro de um estado de barbárie, com uma indústria primária florescente e mantida dentro delas. Não houve mudança gradual do modo de vida dos povos nativos para o nosso atual; houve uma varredura e a pronta implantação dos moldes civilizatórios europeus mais recentes. A ideia de uma pequena comunidade, desta forma, aflora instintivamente nos anarquistas vindos da Europa – particularmente naqueles vindos do continente; para eles, este é o mero surgimento consciente de um instinto subjacente. Já para os americanos, trata-se de uma importação.

Por outro lado, ela descreveu o individualismo como:

[a doutrina] daqueles que sustentam a tradição da economia política, e estão convictos de que o sistema de empregos, compra e venda, bancos e todas as instituições essenciais para o comércio, calcadas sobre a propriedade, são por si só virtuosas, mas se traduzem em vícios pela interferência do Estado. As propostas econômicas que os norteiam são: a manutenção da terra por indivíduos ou companhias apenas durante o tempo – e nos loteamentos – que eles utilizem; redistribuição dos recursos conforme a frequência acordada entre os membros da comunidade; no que constitui o uso deve ser decidido pelos concidadãos, presumivelmente em reuniões ou assembléias; disputas judiciais devem ser arbitradas por um júri livre, apontado por sorteio dentre todos do grupo; membros que discordem das decisões coletivas devem ser levados para terras desocupadas, longe dali, sem importunação.

O dinheiro deve ser meio circulante para aquisição de produtos básicos, emitido por quem quer que tenha interesse; naturalmente, haveria gente depositando suas quantias em bancos e aceitando cédulas destas instituições como contrapartida; tais cédulas representam a quantidade de trabalho despendido na produção e são emitidas em quantidades bastantes – não havendo restrições ao sugimento de negócios, sempre que a taxa de juros subisse, mais bancos seriam criados e, dessa maneira, o percentual estaria equilibrado pela competição –, a troca ocorreria livremente, produtos circulariam, negócios de todas as espécies seriam estimulados, e não havendo os privilégios do governo, muitas indústrias brotariam a todo momento; patrões estariam à procura de homens, não o contrário; os salários subiriam até a integralidade do valor da produção e permaneceriam assim. A verdadeira propriedade, enfim, existiria – coisa que não ocorre nos dias atuais, já que nenhum homem recebe integralmente por aquilo que produz.

O individualismo está mais próximo da experiência histórica do americano comum (pelo menos dos americanos brancos – não dos negros escravizados e seus descendentes). A tradição anarquista individualista pauta a questão não em termos de que a propriedade seja um roubo, mas contrapondo o monopólio imposto pelo Estado à verdadeira propriedade – isto é, ao produtor a posse integral daquilo que produziu.
Entre esses dois extremos jaz a síntese mutualista (não entre os dois, mas complementando um ao outro), a qual de Cleyre enxergou como a mais próxima da realidade. É notável a semelhança da proposição com as de Lum e Labadie:

O anarquismo mutualista é uma modificação do projeto individualista que dá maior ênfase às organizações, à cooperação e à federalização livre de trabalhadores. No mutualismo, o sindicato é o núcleo da livre cooperação coletiva que extingue a necessidade de empregadores; cuida do cronograma de seus membros; é responsável pelo produto final; executa trocas de excedentes, mutuamente vantajosas, com outros sindicatos por meio da federação; permite aos membros o acesso ao crédito e, da mesma forma, assegura-os contra eventuais prejuízos. A posição dos mutualistas sobre a questão das terras é idêntica àquela dos individualistas, bem como sua compreensão acerca do Estado.

O fator material que contribui para as diferenças que existem entre o individualismo e o mutualismo, penso eu, advém do fato de que o primeiro teve origem na mente daqueles que, fossem operários ou homens de negócios, viveram pelo seu esforço independente. Josiah Warren, apesar de um homem pobre, vivia de forma individualista e pôs em prática seu experimento social de vida-livre em pequenos assentamentos, distante das grandes organizações industriais. Tucker, apesar de um homem urbano, tampouco se associou com tais organizações. Eles não conheceram diretamente a opressão advinda das grandes fábricas, nem frequentaram associações de trabalhadores. Já os mutualistas, consequentemente tendiam a um maior grau de comunismo. Dyer Lum passou a maior parte de sua vida dedicando-se às associações de trabalhadores, sendo ele próprio um artesão – um encadernador de livros.

Em seu escrito The Making of an Anarchist, de 1907, ela explicou novamente a posição do anarquismo sem adjetivos:

O anarquismo é, na realidade, uma espécie de protestantismo cujos partidários formam uma unidade em torno da crença fundamental de que toda e qualquer forma de autoridade exterior deve desaparecer, e ela deve dar lugar apenas ao controle do próprio indivíduo sobre si, porém divididos acerca da concepção da nossa sociedade do futuro. O individualismo pressupõe a propriedade privada como a pedra angular da liberdade individual; dispõe que esta propriedade consiste na posse integral daquilo que o indivíduo produz e de parcela do patrimônio natural – pertencente a todos – do qual ele pode usufruir. O anarquismo comunista, por outro lado, declara que tal propriedade é impossível e indesejável; que a posse e o uso comuns de todos os recursos naturais e meios para a produção social podem, por si só, blindar o indivíduo das desigualdades – e seus acompanhantes, governo e escravidão. Minha convicção pessoal é de que ambas as formas de sociedade, bem como outras intermediárias destas, na ausência de um governo, seriam testadas em diferentes localidades de acordo com os instintos e as condições materiais das populações em questão, mas esta objeção, ainda que bem embasada, pode soar ofensiva a ambas as correntes. A liberdade e a experimentação, sozinhas, podem determinar as melhores formas de sociedade. Por isso, eu não mais me intitulo outra coisa além de simplesmente “Anarquista”.

In Defense of Emma Goldmann [sic] and the Right of Expropriation – discurso de 1894 sobre a prisão de Goldman por incentivar que desempregados furtassem pães – é uma excelente forma de ilustrar como de Cleyre aproximou as distâncias entre individualistas e comunistas. O cerne do discurso está na defesa do direito de Goldman encorajar a expropriação dos pães, e no repúdio às classes abastadas e seus supostos direitos de propriedade. Ela reafirma sua concordância com Goldman quando diz que os pães pertencem a vocês; estão moralmente certos em pegá-los para si; e um pouco de sensibilidade humana vale por todas as propriedades de Nova York juntas
Nele, mais uma vez, ela não apenas promoveu um posicionamento conciliatório de ambas as vertentes; mas também lançou dúvidas quanto as diferenças práticas entre elas. Ao longo de seu discurso, ela expôs uma visão de como seria a organização futura da produção realizada pela federação de trabalhadores, em uma linguagem que não costumamos associar com os Individualistas de Boston:

Enquanto os trabalhadores entrelaçarem seus dedos e rezarem aos deuses de Washington pedindo por mais empregos, menos eles terão. Enquanto mendigarem pelas ruas cujos paralelepípedos eles mesmos assentam, cuja imundice eles próprios limpam, cujo esgoto eles mesmos escavam, e que mal podem usufruir delas por muito tempo sem que o agente policial venha importuná-los: “circulando!”; enquanto forem de porta em porta, implorando por uma oportunidade de serem escravos, ouvindo insultos de patrões e capatazes, recebendo o velho “não”, a velha balançada com a cabeça nas fábricas que eles próprios erigiram e cujas máquinas eles mesmos forjaram; enquanto seguirem o bando, como se gado fossem, nas malhas urbanas governadas pelo arrendamento da terra, a mesma que eles araram, fertilizaram, cultivaram e atribuíram valor com suas mãos; enquanto permanecerem tremendo de frio, admirando os sobretudos que eles mesmos costuraram, mas que não podem comprar, e passando fome em meio a toda comida que eles produziram, mas que não podem comer; enquanto fizerem todas essas coisas, acreditando em algum poder externo a eles, seja deus, padre, político, patrão ou instituição de caridade para remediar seus problemas, mais há de tardar a sua conquista. Quando finalmente aceitarem a possibilidade da criação de uma federação internacional de trabalhadores, cujos grupos participantes serão os detentores das terras, das minas, das fábricas, das ferramentas para a produção, da emissão dos títulos de troca e, resumidamente, conduzirem seus setores industriais sem a interferência de legisladores ou patrões, só então poderemos ter esperança na única ajuda que conta para alguma coisa – a autoajuda; única condição que pode garantir a liberdade de expressão, e sem precisar de papéis para isso.

Apesar disso tudo, ela concluiu contrastando sua visão econômica individualista com a de Goldman, enfatizando seu individualismo:

A senhorita Goldman é uma comunista; eu, individualista. Ela tem como objetivo extinguir o direito à propriedade; eu desejo afirmá-lo. Eu declaro minha guerra ao privilégio e à autoridade – pelos quais o direito à propriedade, o verdadeiro direito inerente ao indivíduo, é aniquilado. Ela crê que a cooperação suplantaria toda a competição; eu afirmo que a competição, de uma maneira ou outra, sempre existirá e é altamente desejável que assim seja. Mas independente de quem está certa, ou de nós duas estarmos erradas, de uma coisa eu tenho certeza: o espírito que anima Emma Goldman é o único que há de emancipar o escravo de seus grilhões e arrancar do tirano a sua tirania – o espírito que está disposto a questionar e a sofrer.

Assim como ocorreu com Lum e Labadie, parece haver bastante espaço para convergências entre a compreensão econômica individualista de de Cleyre e a tradição do anarquismo social.
Em seu zine, Anarchism and American Traditions, de 1908, de Cleyre destacou as continuidades entre o anarquismo e a tradição anglo-republicana, que vem desde Trenchard e Gordon, passando por Wilkes, até os antifederalistas, celebrando tradições americanas – geradas pela revolta religiosa –, pequenas comunidades autossustentáveis, condições isoladas, e uma vida vanguardista que floresceu entre a fundação de Jamestown e a Revolução [Americana].
Ela também recorreu ao tipo de simbolismo populista que hoje seria identificado como de direita, e que foi apropriado quase que completamente, hoje, pelos direitistas dentro da cultura política – um exemplo é a bandeira de Gadsden. Mas à época, nada havia de inerentemente reacionário atrelado a esses símbolos, como qualquer leitor de Beard ou Jensen pode atestar.

Junto da semelhança fundamental que há entre os republicanos revolucionários e os anarquistas está o reconhecimento de que o pequeno deve preceder o grande; o local deve servir de base ao universal; só pode haver uma federação livre se houver comunidades federativas igualmente livres; e o espírito destas será transposto àquela, portanto uma tirania a nível local só pode levar à escravização geral. Convencidos da extrema importância de livrarem suas municipalidades das instituições tirânicas, os mais implacáveis defensores da Independência, em vez de concentrarem seu tempo e esforços no Congresso Geral, dedicaram-se a suas próprias localidades na tentativa de dissuadir seus concidadãos de conferirem apoio ao instituto da propriedade vinculada, ao Estado confessional, à sociedade de classes e à escravização de africanos.

Como afirmou David de Leon em seu livro The American as Anarchist, a flor da liberdade deve ser cultivada independente de suas pétalas serem vermelhas, brancas e azuis, ou vermelhas e pretas.
O radicalismo econômico americano do século XIX, tipicamente rechaçado como petite bourgeois (pequeno-burguês) – a federação Knights of Labor, as cooperativas e os diversos movimentos populares rurais – estavam muito longe de serem provincianos ou reacionários. E muito distante de estar dando ouvidos a ecos de um modelo econômico retrógrado, estes movimentos rurais do final do século XIX eram frequentemente muito simpáticos ao sindicalismo industrial urbano.
Apesar de muito simpática a Dyer Lum e sua Economia Anarquista, de Cleyre criticou seu trabalhismo – como nos sugere o seu ceticismo acerca da existência de grandes fábricas em uma anarquia – e a ênfase que ele dava às organizações de massa, bem como das hipóteses que levantava em torno do uso da tecnologia. Com uma semântica muito próxima à de pensadores como William Morris, Piotr Kropotkin, Lewis Mumford e Ralph Borsodi, ela apontou para o potencial libertador e descentralizador da energia elétrica:

A menos que eu esteja profundamente desinformada, os chamados Anarquistas de Boston consideram a imensa massa de trabalhadores presentes nas oficinas e fábricas (sendo esta uma característica comum dentro do cenário atual, enfatizada pelos socialistas) como uma consequência da adoção da energia a vapor e de seu maquinário complexo; e que todo o sistema está suscetível a ser revolucionado assim que a energia a vapor for suplantada por uma alternativa superior, digamos a eletricidade, que poderá ser usada pelos trabalhadores em suas casas ou em oficinas menores, nas quais a escravidão das grandes fábricas dará lugar à independência individual…

No entanto, Lum acreditava que as fábricas representavam não apenas força e maquinário, mas também a divisão do trabalho – e como esta se apresenta num processo contínuo dentro de toda vida orgânica, ele não podia cogitar uma inversão deste processo dentro do organismo social. Por esta razão, deu tanta ênfase à solidificação da indústria que estava por vir; e por fazê-lo acabou sendo acusado, por um dos lados, de dobrar-se aos comunistas; e, após sua morte, foi rotulado de comunista pelo mesmo homem que articulou sua saída da redação do The Alarm por seu excesso de individualismo: John Most. Possivelmente, o Sr. Black pode interpretar que isso respalda Most quando ele classifica Lum como um comunista; entretanto, não acho que Most haja ingenuamente.

Lum nunca se comprometeu com a definição de comunismo feita por Most – que a dezesseis dias de morrer havia declarado que “logicamente, levaria à autoridade, repousando-se sobre a mesma”. Mas entre seu mutualismo e o comunismo de Kropotkin, as diferenças não são de todo irreconciliáveis, mas mais uma questão de crença. [Lum percebeu que] há uma distinção fundamental entre governo e administração social; o primeiro tende a cristalizar aquilo que já existe, acorrentando os que vivem à escravidão dos que já morreram; enquanto a outra permite que haja adaptação constante às demandas sociais que surgem…

As percepções econômicas de Voltairine de Cleyre nos deixou muito a ser experimentado: elimine-se os quatro monopólios de Tucker e permita o desabrochar de centenas de novas flores. Mas os expedientes que ela imaginou – especialmente quando estava mais velha – aos quais as pequenas organizações recorreriam, mal podiam ser diferenciados de um comunismo com ausência de moeda.

Façamos com que se acabe com o monopólio da emissão de moeda. Deixemos que as comunidades adotem o sistema monetário de seus membros, se elas assim desejarem; que cada indivíduo o faça se ele quiser. Mas melhor ainda que os trabalhadores abram mão de todos eles. Que eles trabalhem juntos, de forma cooperativa, em vez de serem empregados e patrões; que os grupos sejam fraternais – que cada um use aquilo que precisar de sua própria produção e deposite o restante nos estoques para que outros que precisem destes bens possam usá-los.

Mesmo diante da nossa produção claudicante – na qual menos da metade das pessoas trabalham, e com todo o conservadorismo que opera na contramão das melhorias, em nome de interesses particulares –, nós já teríamos mais que o suficiente para suprir as demandas de todos, caso pudéssemos distribuí-la. Portanto, não há estimativas fixas para as possibilidades. Se um homem, hoje, pode produzir dez vezes mais do que precisa, o que poderíamos dizer das capacidades do trabalhador livre do futuro? E por que tanta preocupação em calcular a exata troca de equivalentes? Se há o suficiente – a ponto até de desperdício –, por que a aflição de que alguém possa pegar um pouco mais do que contribuiu? Não nos amendrontemos se alguém beber um pouco mais de água do que nós, a menos que estejamos diante de um naufrágio; pois sabemos que há o bastante. E uma vez que todas as medidas para ajustar valores equivalentes apenas resultaram na perpetuação de meios para que o fornecedor da moeda extraia uma porcentagem do produto para si, não seria melhor arriscar uma perda ocasional nas trocas diretas, em vez de adotar esse falso ajustador e pagá-lo por um serviço bastante duvidoso?

Tal visão parece correspondente com a previsão de Malatesta de que, independente das doutrinas econômicas formais, uma sociedade anarquista, em termos práticos, evoluiria para algo que remetesse ao comunismo.
No ensaio The Economic Tendency of Freethought, de Cleyre legou todas as formas de opressão à autoridade religiosa. Sobre a ideia de uma autoridade suprema repousa toda a tirania já formulada. Sua interpretação de o protestantismo ser um passo positivo na direção da liberdade foi, possivelmente, influência de Stephen Pearl Andrews e, mais amplamente, da pouca ênfase eclesiástica presente na tradição anglo-republicana.

Por que? Pois, se há Deus, nenhum ser humano, ou qualquer coisa viva, jamais possuiu um direito sequer! Mas simplesmente tiveram um privilégio outorgado, concedido, conferido, dado a eles pelo período que Deus entendeu correto.

Esta é a lógica de um ditador, do catolicismo, a única do autoritarismo. A Igreja diz: “tu que és cego, sê grato por ouvires: Deus poderia tê-lo feito surdo também. Tu que tens fome, sê grato por poderes respirar: Deus poderia privá-lo do ar, como da comida. Tu que estás enfermo, sê grato por não estares morto: Deus é misericordioso por deixá-lo viver. A todo momento e sob todas as circunstâncias aceite o que te é feito e sê grato”. Estas são as benesses e os privilégios concedidos pela autoridade.

Note a diferença entre privilégio e direito. Um direito é, de forma abstrata, um fato. Não é algo a ser dado ou conferido; ele é. Do gozo de um direito, posso ser privada. Do direito em si, jamais. O privilégio, de maneira abstrata, não existe. Tal coisa não há. Ao reconhecermos os direitos, privilégios são destruídos.

Porém, em termos práticos, no momento em que se admite uma autoridade suprema, renuncia-se a todos os direitos; é a supremacia que passa a detê-los todos, e pouco importa o que possui a humanidade, porque ela o tem por um mero capricho daquela autoridade. O exercício da função respiratória deixa de ser um direito, torna-se um privilégio concedido por Deus; o uso do solo não é mais um direito, mas uma gentileza da Divindade; a posse do produto que resulta do trabalho também não se caracteriza como direito, mas uma bênção. E o roubo do ar que respiramos, das terras, da labuta, não é errado (já que se não há direitos, não pode haver a violação deles), e sim a graça que o “Todo Poderoso” conferiu ao ladrão do ar, da terra e da labuta.

Ela desafiou essa autoridade, bem como toda a ordem social que deriva dela, sem se desculpar por isso.

Subvertamos a ordem civil e social! Eu destruiria, até o último resquício, este escárnio que chamam de ordem; esta usurpação da justiça! Destruir lares? Sim, todos aqueles que repousam sobre a escravidão. Todo casamento que representa a compra e a venda da individualidade de um dos envolvidos ao outro! Qualquer instituição que se coloque entre o homem e seus direitos; todo laço que faça de alguém um senhor e de outro seu servo; toda lei, todo estatuto e todo decreto que representem a tirania; tudo aquilo a que se chama de privilégio americano, obtido às custas dos direitos de outros povos. Podem berrar “Niilista! Segregacionista!”. Digam que eu isolaria a humanidade, reduziria a sociedade a seu estágio primitivo, faria dos homens selvagens! Não é verdade. Mas em vez de assistir esse sistema deprimente, doentio e escravagista seguir em frente, em vez de contribuir para manter vivas as suas amaldiçoadas instituições, eu ajudaria a reduzir o tecido social ao seu estágio primordial.

Porém, propor a destruição da ordem vigente não é a mesma coisa que opor-se a ela. De Cleyre segue no sentido de negar que a ordem só é possível por meio da autoridade – pela imposição calcada no uso da força – e acaba reproduzindo a afirmação de Proudhon de que a liberdade não é a filha, mas a mãe da ordem.

Às vezes, chego a sonhar com tal mudança social. Sou acometida de um pouco de fé na evolução e na bondade dos homens. Pinto uma fuga gradual do agora para o belo futuro no qual não haverá reis, presidentes, senhores de terra, banqueiros, corretores, magnatas, monopolistas, ou cobradores de impostos; onde não haja mercados abarrotados e crianças famintas; balcões vazios e pessoas nuas; pompas e miséria; desperdício e necessidade. Me dizem que isso é idealismo barato, pintar esse mundo feliz, livre da pobreza, do crime e das doenças; me dizem que eu “deveria estar atrás das grades” por fazê-lo.

Max Nettlau

Nettlau não apenas foi um expositor do pensamento de Malatesta referente ao anarquismo sem adjetivos, como vimos anteriormente, como também foi um expoente dessa mesma doutrina.
Ele percebeu que os modelos econômicos concorrentes em anarquia não apenas mudariam de acordo com suas diversas localidades, e seguindo as preferências locais, mas também serviriam a funções complementares no que diz respeito a divisão do trabalho dentro da própria sociedade – e esta, como um todo, consistiria em uma mistura entre individualismo e comunismo.

[…] venho sendo assombrado, faz algum tempo, pelo contraste que há entre a grandeza dos objetivos anarquistas – a maximização da liberdade e do bem-estar coletivo – e a estreiteza, por assim dizer, de seu programa econômico, seja o dos individualistas ou dos comunistas. Me inclino a pensar que o sentimento de inadequação quanto a base econômica impede que as pessoas tenham confiança no anarquismo, do qual os objetivos gerais parecem belos ideais para muitos. Sinto que nem comunismo nem individualismo, caso viessem a ser adotados sozinhos, seriam suficientes para a liberdade – que sempre demanda uma escolha dentro de uma pluralidade de possibilidades. Sei que comunistas, quando diretamente perguntados, dirão que não há qualquer objeção de sua parte aos individualistas que desejem viver à sua própria maneira, desde que não incorram em monopólios ou na autoridade – e vice versa. Mas raramente isso é dito de forma verdadeiramente aberta e amigável; ambos os séquitos estão convencidos de que a liberdade só é possível sob seus respectivos arranjos. Eu admito que possam existir comunistas e individualistas a quem suas doutrinas, e somente elas, trazem satisfação completa e não deixam questões em aberto por resolver (ao menos em suas opiniões); estes não sofreriam qualquer interferência externa em sua lealdade a este ou aquele sistema econômico. Mas eles não deveriam pensar que as pessoas são integralmente adeptas a seus modelos e que todas elas concordariam com suas opiniões sob pena de recaírem à condição de adversárias, às quais não se deve dispensar qualquer simpatia. Permitam-se apenas olhar para a vida real, que só é suportável por ser diversa e variada, apesar de toda a uniformidade oficial…

Nem o comunismo, nem o individualismo hão de desaparecer; e se por meio da ação das massas fossem implementadas as bases de uma espécie brutal de comunismo, o individualismo se fortaleceria mais do que nunca em oposição. Sempre que um sistema uniforme prevaleça, os anarquistas, se acreditarem em seus ideais, se anteciparão e jamais permitirão se tornarem os perpetuadores de sistemas cristalizados, seja o do mais puro comunismo.

Estarão eles fadados ao eterno descontentamento, à luta permanente e a nunca desfrutar do descanso? Talvez eles se tranquilizem quando todas as possibilidades econômicas tenham atingido suas dimensões completas, podendo então direcionar suas energias a atividades construtivas e não mais à luta e destruição. Este desejável estado de coisas poderia ser preparado desde agora se fosse compreendido, de uma vez por todas, pelos anarquistas de que tanto o comunismo quanto o individualismo são igualmente importantes e permanentes; e que a prevalência de apenas um deles haveria de ser a maior desgraça para a humanidade. Do isolamento buscamos refúgio na solidariedade; da excessiva presença da sociedade buscamos alívio no isolamento. Solidariedade e isolamento são ambos, no momento certo, liberdade e ajuda para todos nós. Toda vida humana alterna entre estes polos, em infinitos graus de oscilação.

Permita-me imaginar, por um momento, que vivo em uma sociedade livre. Eu certamente teria diferentes ocupações, manuais e intelectuais, as quais requeririam força e habilidade. Seria demasiadamente monótono se os três ou quatro grupos com os quais eu trabalho (pois espero que até lá já não haja mais sindicatos!) se organizassem em parâmetros exatamente iguais entre si; prefiro pensar que diferentes formas e graus de comunismo prevaleceriam em cada um deles. Mas será que eu não me cansaria disso e desejaria um pouco de isolamento e individualismo? Talvez eu me voltasse, então, mais a uma das muitas possibilidades dentro do individualismo de trocas equivalentes. Quem sabe as pessoas não fariam mais de um, durante a juventude, e mais do outro, já em idade avançada? Aqueles trabalhadores medianos tenderiam a continuar em seus grupos; aqueles que se destacassem por sua eficiência logo se cansariam de trabalhar com iniciantes e tocariam seus trabalhos sozinhos – a menos que fossem acometidos por um grande senso de altruísmo, que os fizesse sentir prazer em atuar como professores ou orientadores para os mais jovens. Também acho que no começo eu adotaria o comunismo com meus amigos, e o individualismo com desconhecidos, moldando minha vida futura de acordo com minha própria experiência. Portanto, a mudança livre e simples de uma variedade de comunismo para outra, assim como para uma das variedades de individualismo, seria a saída mais óbvia e elementar para uma sociedade verdadeiramente livre; e qualquer grupo que tentasse tornar predominante apenas um dos sistemas teria de ser combatido arduamente, da mesma forma com que os revolucionários combatem o sistema atual.

Nettlau percebeu que a tendência de aglutinar propaganda anarquista a modelos econômicos dogmáticos, para uma sociedade do futuro, era perniciosa para o sucesso de esforços conjuntos – já que ela tornava, de maneira eficaz, a proposta anarquista menos atrativa, pois tornava o apoio a um séquito específico em uma condição.

A liberdade, via de regra, não é totalmente explicada, em todas as suas possibilidades, aos novatos no movimento, deixando com que eles escolham por conta própria o tipo de vida que incorporaria a maior liberdade para si – mas é apresentada como uma combinação entre hipóteses comunistas, coletivistas ou individualistas. Assim, a grande e primordial verdade a respeito da liberdade se funde, de uma vez, às hipóteses de arranjos econômicos e administrativos – o que necessariamente limita o sucesso da propaganda. A quem nós verdadeiramente queremos o melhor: aos que honestamente crêem na liberdade, os rebeldes contrários a toda e qualquer forma de autoridade, ou aos sectários que aderem a hipóteses mais complicadas?

Agora, devo expor as razões pelas quais me considero cético quanto a doutrinas econômicas que geralmente estão atreladas ao anarquismo. Certamente, eu mesmo defendo tais doutrinas e elas não diferem sensivelmente daquelas que usualmente são propostas. Mas eu gostaria que fosse tão claro a todos, como é para mim, que tais doutrinas não são mais que simples suposições que, por nenhum motivo, deveriam separar comunistas e individualistas. E o movimento deveria ser uno, relegando tais desavenças a meros detalhes.

Evidentemente, muitos sugerem que o anarquismo é impossível fora das bases econômicas que eles convictamente defendem. A isso, respondo que o simples caráter hipotético de suas doutrinas deveria ser suficiente para prevenir todo e qualquer segregacionismo. Além disso, muitos desentendimentos nascem de discussões acerca de teorias conflitantes, sem que se considere o contexto e a época do anarquismo a que se refere o autor. A sociedade anárquica não há de ser um mecanismo de ferro fundido, mas necessariamente um organismo em desenvolvimento ao qual diferentes métodos serão propícios em períodos diversos. Acima de tudo, percebo os momentos de liberdade em que há mais insegurança, e aqueles em que a segurança é maior. O que quero dizer é que à medida que a liberdade se enraíza, sua base econômica estará mais segura para que se realizem as mudanças. Portanto, discutir os sistemas econômicos de uma anarquia também se faz necessário antes de que todos declarem a que período do desenvolvimento eles se referem.

A Questão do Anarco-Capitalismo

Como nos é apresentada a questão em An Anarchist FAQ:

[…] alguns “anarco”capitalistas tentam se valer da tolerância, associada ao anarquismo sem adjetivos, para afirmarem que sua ideologia deveria ser aceita como parte do movimento anarquista. Afinal, dizem eles, o anarquismo diz respeito à derrubada do estado, e a questão econômica é de segunda ordem. Entretanto, esse uso do anarquismo sem adjetivos é equivocado, já que é um consenso, desde a época em que se discutiam os tipos de economia, que estes deveriam ser anticapitalistas (isto é, de ordem socialista). Para Malatesta, por exemplo, haviam anarquistas que previam e propunham outras soluções, outras formas futuras de organização social, para além do comunismo anárquico, mas eles desejavam, assim como nós, a destruição do poder político e da propriedade. “Deixemos de lado a exclusão de escolas de pensamentos para que cheguemos a um entendimento acerca das formas e dos meios”. Em outras palavras, era certo que o capitalismo deveria ser abolido, juntamente ao estado, e quando isso ocorresse, o desenvolvimento da experimentação livre teria início.

Deixando de lado a discussão sobre o anarcocapitalismo ser ou não anarquismo, concordo com David Graeber que – apesar dos mercados serem um elemento provável em uma sociedade pós-capitalista – o anarcocapitalismo não poderia sobreviver em um arranjo inteiramente voluntário.

Mesmo aquilo que hoje parece ser uma gritante divisão ideológica, provavelmente se resolveria com facilidade na prática. Eu costumava frequentar fóruns de internet, nos anos 90, repletos de seres que se autointitulavam “anarcocapitalistas”… a maioria gastava uma grande parte do seu tempo acusando anarquistas de esquerda de serem proponentes do uso da violência. “Como você pode ser favorável a uma sociedade livre e ser contra o trabalho assalariado? Se eu quiser contratar alguém que colha meus tomates, como você pretende me impedir senão por meio de coerção?”. Logicamente, para eles, qualquer tentativa de se extinguir o sistema de salários só poderia ser tentado por meio de uma nova KGB, ou coisa que o valha. Ouvimos estes argumentos com frequência. O que ninguém ouve é um deles dizer “se eu quiser contratar a mim mesmo para colher os tomates de outra pessoa, como você irá me impedir senão por meio de coerção?”. Todos eles parecem imaginar que em uma sociedade do futuro, sem um estado, integrarão a parcela empregadora. Ninguém jamais se coloca na posição daquele que apanhará os tomates. Mas de onde, exatamente, eles imaginam que estes colhedores viriam? Aqui podemos sugerir um exercício: chamemos de parábola da ilha dividida. Dois grupos de idealistas diferentes reclamam metade da ilha para si. Eles concordam em delinear uma fronteira de forma que haja recursos iguais para cada um dos lados. Um dos grupos cria um sistema econômico em que alguns dos membros detém propriedades, enquanto outros não têm nada e estes ainda não podem contar com nenhuma garantia social: eles morrerão de fome se não aceitarem as condições de emprego ofertadas pelos detentores da riqueza. O outro grupo cria um sistema no qual todos têm a garantia dos meios mínimos para sua sobrevivência, e está aberto a receber aqueles que quiserem vir para o seu lado. Por que razão os seguranças, as enfermeiras e os mineiros do lado anarcocapitalista da ilha ficariam lá? Os capitalistas se veriam desprovidos de sua mão de obra em questão de semanas. Como resultado disso, seriam obrigados a patrulharem suas próprias terras, a esvaziarem seus próprios penicos e a operarem seu próprio maquinário – isto é, a menos que rapidamente passassem a ofertar a seus empregados propostas e benefícios extravagantemente vantajosos, de forma que estivessem vivendo em uma utopia socialista, no final das contas.

Por estas e tantas outras razões, estou certo de que, na prática, qualquer tentativa de criar uma economia de mercado sem exércitos, polícia ou prisões para respaldá-la, em nada se assemelharia ao capitalismo. De fato, suspeito que tal resultado seria pouco parecido com aquilo que estamos acostumados a imaginar acerca dos mercados. Obviamente eu posso estar errado. É possível que alguém tente e os resultados obtidos sejam muito diversos daquilo que imaginei. E neste caso, tudo bem, eu estaria equivocado. Meu objetivo principal, porém, é criar as condições para que possamos descobrir.

Portanto, me parece que qualquer que seja a sociedade que venha a prevalecer após serem retirados o estado e as corporações da vida social e econômica, esta será plural e composta por expedientes locais dos mais diversos e de arranjos ad hoc – produção dentro de unidades sociais primariamente comunistas, produção de bens comuns baseada em pares, trocas em um mercado aberto, cooperativas de produtores e consumidores, micro vilarejos, etc. Mas o capitalismo (em oposição ao mercado como tal), na medida em que requer a absorção de terras e de recursos, bem como a garantia dos monopólios e das barreiras de entrada, seria insustentável sem que houvesse uma força exógena que o lastreasse – como hoje ocorre com o estado, que é financiado em grande parte pelos recursos tomados dos contribuintes.

Conclusão

Estes aos quais chamamos de anarquistas sem adjetivos – especialmente Voltairine de Cleyre – adotaram uma abordagem que, desde seu início, vem sendo compartilhada por um grande número de pensadores. Isso inclui todos que mencionei ao longo deste ensaio, aqueles que citei em estudos anteriores – James Scott, Elinor Ostrom, David Graeber e Colin Ward –, bem como Piotr Kropotkin, Paul Goodman e tantos outros. Aquilo que compartilham entre si é a crença na capacidade de seres humanos comuns organizarem formas cooperativas para si, e o respeito pelos inúmeros exemplos deste arranjo ao longo da história, em suas variedades e particularidades, que transcendem meros rótulos ideológicos copiados-e-colados. Mesmo quando estes pensadores se formam em ambientes sectários – e continuam identificados com eles (o individualismo no caso de de Cleyre, ou comunismo no caso de Kropotkin) –, seu apreço pelos exemplos reais de engenhosidade humana, e suas conquistas, se sobrepõem às adjetivações que escolhem abraçar. Todos eles adotam a abordagem da anarquia em ação (título de um dos livros de Colin Ward, Anarchy in Action): observar aquilo que as pessoas de fato já realizaram; e reunir-se pessoalmente com outros indivíduos para que se discuta a resolução de problemas em comum, sem se preocupar com o rótulo – de mercado, sindicalista, ou comunista – que darão às soluções.

Anarchy and Democracy
Fighting Fascism
Markets Not Capitalism
The Anatomy of Escape
Organization Theory