Kevin Carson. Título original: The Myth of the Private Sector, Part I: Why Big-Small and Vertical-Horizontal Trumps “Public-Private”, 5 novembro 2020. Traduzido por Gabriel Serpa.
O Mito do Setor Privado, Parte I: Por Que as Abordagens “Pequeno-Grande” e “Horizontal-Vertical” Importam Mais que “Público-Privado”
Hoje, 28 de outubro, Rachel McKinney, uma amiga e professora de Filosofia, reclamou no Twitter que ela tentava criar um exame de meio de semestre: “[o aplicativo] Blackboard é uma porcaria. Não há maneira intuitiva de dividir perguntas em blocos; não dá para aplicar instruções para diferentes seções; não consigo modulá-lo para pedir aos alunos que marquem 10 das 15 alternativas das quais podem optar, por exemplo”. Como eu suspeitava, ela explicou que a escolha do software foi involuntária: “os três maiores são Blackboard, Canvas e Moodle – ‘gerenciador de aprendizado’. As instituições escolhem um deles e os educadores devem usá-lo. O Blackboard é o mais antigo e truncado e, de longe, o pior.”
Isto é exatamente o que acontecia com o software de gráficos que nós usávamos no hospital em que trabalhei. O programa é produzido por uma corporação burocrática e hierarquicamente antiquada; vendido para outra burocracia corporativa; seu uso é imposto para uma clientela cativa de empregados – sem que haja qualquer feedback de usuários em qualquer momento deste processo.
A experiência de Rachel, assim como a minha, são exemplos típicos da ignorância dos departamentos de TI das nossas instituições, que optam por softwares de “produtividade” para consumidores cativos, sem o parecer de quem os usa.
Como observou Tom Coates há anos, a proliferação de programas para de uso individual – muitos deles livres e de código aberto – diminuíram cada vez mais a distância, em termos de qualidade, daquilo que se pode realizar em casa e no trabalho, ao ponto de eliminar de uma vez esta discrepância. Eu ainda daria um passo adiante e afirmaria que frequentemente as pessoas são mais produtivas fora do ambiente de trabalho, quando podem escolher livremente quais programas e aplicativos vão usar, do que quando são forçadas a engolir as bugigangas oferecidas no trabalho.
Vejamos outra anedota presente em minhas experiências de vida. Quando me mudei, há cinco anos, para minha casa atual, o pedaço de terra em que vivo foi repartido de um outro lote de terra maior. Nos meses subsequentes, o sistema de GPS usado pelos entregadores da FedEx e da UPS não acusaram a mudança que foi feita, portanto recebi inúmeros avisos de que minhas encomendas não haviam sido entregues, porque o endereço “não existia”.
Liguei exaustivamente às empresas e expliquei a situação, dando a quem quer que me atendesse as instituições detalhadas de como chegar à minha casa. Ainda assim, persistiu a incapacidade de se realizar as entregas, porque – devemos isto a uma perversidade da cultura institucional – os entregadores preferiam acreditar nos aparelhos de GPS do que em seus próprios olhos. Finalmente, depois disto se estender por meses, dei um jeito de conversar com uma pessoa do setor logístico que configurou meu endereço nos computadores, alertando automaticamente os entregadores. Desde então, tem sido um serviço relativamente confiável.
Já o serviço de Correios tem sido de extrema confiança, no que diz respeito à entrega, desde que me mudei para cá. A razão disto é que os carteiros são pessoas que moram nesta cidade e dirigem por estas ruas há muitos anos.
O serviço público de Correios é melhor que o serviço de entregas privado da UPS em fazer uso daquilo que Friedrich Hayek chamou de “descentralização” ou “dispersão do conhecimento” de seus empregados.
Todos estes exemplos sugerem que a distinção, desenvolvida pelos libertários de direita – isto é, aquilo que americanos imaginam quando ouvem a palavra “libertário” –, entre público (governo) e privado (empresas) é consideravelmente menos importante do que as diferenças na administração e organização, quando se trata da eficiência operacional de uma instituição ou do grau de relativa liberdade sentida por aqueles que com ela interagem.
Em um modelo genuinamente libertário de organizações, a dicotomia entre público e privado é menos pertinente, na maior parte dos casos, do que aquela entre grande e pequeno, vertical e horizontal, autogestionado e hierarquizado.
De acordo com a tipologia das instituições, em “People or Personnel”, de Paul Goodman, organizações grandes e autoritárias, sejam agências do governo ou corporações capitalistas, guardam maiores semelhanças entre si do que com pequenas organizações autogeridas, pouco importando a classificação nominal de “pública” ou “privada”.
“Em uma empresa centralizada, sua função está voltada mais às metas da instituição do que às das pessoas…
A autoridade é disposta de cima para baixo. A informação é colhida pelos de baixo e processada de modo a ser utilizada pelos de cima; as decisões são tomadas por cúpulas; e as políticas, o cronograma e os procedimentos-padrão são transmitidos para baixo em uma corrente de comando. A empresa como um todo é dividida em departamentos e nestes são atribuídos cargos diversos a funcionários, em busca de uma performance padronizada…
Este sistema foi planejado para disciplinar exércitos; para manter registros, cobrar impostos e executar funções burocráticas; para certos tipos de produção em massa; e ele foi amplamente difundido.
O princípio da descentralização repousa sobre o empenho dos indivíduos em suas atividades e a organização é o meio pelo qual elas cooperam. A autoridade é retirada lá de cima, tanto quanto possível, e realocada em múltiplos núcleos formadores das políticas internas e de tomadas de decisão. A informação é disseminada e discutida pessoalmente entre núcleos da cúpula e da base. Cada indivíduo se torna cada vez mais consciente de toda a operação e trabalha de acordo com suas habilidades. Cada núcleo decide o seu cronograma.
Nas empresas que adotam sistemas de centralização interligada em nossa sociedade, sejam elas comerciais, governamentais ou não-lucrativas, o que infla os custos operacionais são todos aqueles fatores organizacionais, procedimentais e motivacionais que não são diretamente determinados pela função a ser desempenhada ou pela vontade de desempenhá-la. Estes fatores são determinados por patentes e aluguéis, preços congelados, escalas sindicais, “featherbedding” (ato de empregar mais funcionários do que o necessário para que desempenhem uma mesma função), benefícios adicionais, reembolsos, papeladas, despesas permanentes, promoções e relações públicas, desperdício de tempo e habilidades com departamentos e funções desnecessários, mentalidade ineficiente de excessivo cuidado com micharia e absoluto desleixo com grandes quantias, procedimentos inflexíveis e cronogramas extremamente rigorosos que implicam em maiores contingências e horas extras…
Mas quando as empresas podem ser gerenciadas autonomamente por profissionais, artistas e trabalhadores comprometidos com suas atividades, há economia ao longo do processo. Os indivíduos se desdobram com os meios disponíveis. Eles investem em utilidade, não em convenções. Improvisam de maneira criativa em procedimentos à medida que surgem as oportunidades e se dispõem a intervir nas emergências. Eles não veem o tempo passar. Aproveita-se cada habilidade disponível. Evitam a superficialidade e, se necessário, aceitam uma remuneração de subsistência. A administração e as despesas são “ad hoc” (para uma finalidade específica). As tarefas tendem a ser encaradas pela essência e não de maneira abstrata.”
De fato, a distinção entre iniciativa governamental e privada, tão amplamente polemizada na tradição libertária de direita, é altamente insignificante.
Antes de tudo, corporações são parte de uma rede interligada de organizações que incluem o próprio estado. Como apontaram os sociólogos de “Power Elite”, C. Wright Mills e G. William Domhoff, a sociedade americana é governada por inúmeras agências federais do Poder Executivo, algumas centenas de grandes corporações e bancos, junto a um número semelhante de “think tanks” e fundações. Todas estas instituições são controladas pelo mesmo conglomerado de pessoas que transitam entre si; para atestar esta afirmação basta olhar para as diretorias entremeadas de bancos e corporações, junto ao número de representantes e secretários de qualquer departamento do Gabinete Federal e as empresas nas quais eles já serviram anteriormente como diretores ou vice-presidentes (e vice-versa).
Em segundo lugar, o estado opera essencialmente como um estado capitalista, executando as medidas necessárias de apoio às grandes empresas. O modelo de que lançam mão estas empresas para obterem lucro – e em menor escala, mas sem deixar de ser significante, o capital como um todo – está diretamente atrelado ao estado. A maioria dos lucros obtidos pelas corporações resulta ou dos subsídios estatais diretos, ou de arrendamento extraído com o auxílio de monopólios com respaldo estatal, barreiras de entrada e restrições à concorrência. Uma das funções primordiais do estado é socializar os custos operacionais das grandes corporações, bem como os seus riscos, e subsidiar parte majoritária de seu faturamento.
De forma genérica, o tamanho e a estrutura interna de uma organização nos revela mais sobre sua natureza – não apenas seu grau de eficiência, mas quão libertária ou autoritária ela é, e qual papel ela desempenha na estrutura geral de poder – do que a simples alcunha de “pública” ou “privada”. Uma empresa cuja atividade seja guiada pela cooperação das partes envolvidas em seu funcionamento é mais libertária, do ponto de vista de quem usa seus serviços, do que aquelas que pertençam a corporações ou ao estado, que tradicionalmente apresentam um corpo administrativo hierárquico e burocrático. Da mesma forma, um projeto de coabitação autogerido por seus habitantes é mais libertário, do ponto de vista dos que lá vivem, do que ambos os tradicionais projetos habitacionais estatais ou os complexos de moradia de proprietários de terra.
As alternativas autogestionadas, sejam “públicas” ou “privadas”, são muito mais fáceis, em termos práticos, de serem levadas em uma direção libertária ou anarquista do que as burocracias e corporações.
Logo, precisamos nos deslocar para além deste recorte superficial dos debates pautados na privatização capitalista, modelo apresentado pelos libertários de direita, “versus” a estatização/nacionalização, como defende a velha esquerda. Em vez disso, devemos focar na descentralização de todas as organizações ao nível local e democratizar seu controle interno. Sem patrões, sem senhorios, sem burocratas!