O artigo a seguir foi escrito por Voltairine de Cleyre e publicado em Mãe Terra, 1908. [o primeiro link citado leva à biografia de Voltairine de Cleyre em inglês, na Wikipedia; na página, à esquerda, há uma lista de línguas, inclusive Português]
A presente organização da sociedade, funcionando lógica e inexoravelmente, levou a situação que tanto socialistas quanto anarquistas haviam desde o começo antevisto e vaticinado. Não era mais evitável do que o salto do Niagara poderia sê-lo ao seus tributários iniciarem curso rumo ao mar.
Aqueles que imaginam que as condições industriais podem ser feitas ou desfeitas por esta ou aquela colcha de retalhos jurídica inadequada flagram-se no meio de assustadora ebulição de elementos irreconciliáveis, que débil e infantilmente tentam explicar por meio de algum raciocínio trivial tal como a atitude deste ou daquele político, ou deste ou daquele capitalista, ou de alguma manobra política isolada (por exemplo a proteção sem restrições à imigração), ou da maldade da natureza humana, ou mediante responsabilizarem a “imprensa sensacionalista,” ou a vontade de Deus, e assim por diante. As condições são tão terríveis que de algum modo eles são compelidos a ter sua atenção chamada para o fato; não percebem, porém, que esse é o inevitável resultado da rematada mentira política-econômica de que o homem pode ser livre e a instituição da propriedade continuar a existir.
Desejo estabelecer aguda distinção entre a instituição jurídica da propriedade e a propriedade no sentido de que o que um homem claramente produz por meio de seu próprio trabalho pertence a ele. É a instituição jurídica da propriedade que produziu esta condição, na qual os gritos primários da humanidade estão-se agigantando num pavoroso coro discordante, porque as necessidades primárias da humanidade estão-lhe sendo negadas – e negadas a massas de homens.
Ora bem, o que aconteceu e o que terá de continuar a acontecer? As pessoas nas quais instintos éticos cristãos predominam estão esfomeadas e morrendo nas esquinas; as pessoas nas quais instintos naturais predominam acima das regras ordinárias de ação estão furtando como alternativa a morrer de fome; as celas, os tribunais, as prisões, estão cheios dessas vítimas da injustiça social que, em condições de liberdade, seriam pessoas ativas, enérgicas e úteis. E ademais as ruas estão cheias de pedintes mendigando o essencial à vida.
Pois bem, em tempos como estes, são de esperar acessos violentos de desespero. Não cabe aos anarquistas pregar atos desatinados e insensatos – atos de violência. Pois, verdadeiramente, o anarquismo nada tem em comum com a violência, e só conseguirá prevalecer a partir da conquista das mentes dos homens. Quando porém alguma vítima do presente sistema, desesperada e com a vida arruinada, reage a ele, com violência, não nos compete amontoar infâmias sobre o nome dela, e sim explicar essa pessoa, assim com explicamos outras, quer nossas inimigas ou amigas, como fruto inevitável da “ordem” existente.
Temos de esperar, desde já, que essas pessoas venham a ser rotuladas de anarquistas. Não importa o que elas próprias digam, não importa o que nós digamos, a maioria das pessoas acreditará que elas agiram não como homens desesperados, e sim como anarquistas teóricos. Tal tem sido o destino de toda nova ideia que buscou penetrar a mente humana e elevá-la; os pecados da ordem existente foram atribuídos à sua chegada, e toda calúnia que fúria e medo podem inventar foi amontoada sobre ela. Essa é uma história muito, muito antiga.
Bem, e daí? Se esse é o preço a ser pago por uma ideia, paguemo-lo. Não há necessidade de ficarmos ansiosos com isso, ou com medo, ou envergonhados. Esta é a época de levantar-se de modo intrépido e dizer: “Sim, eu acredito na substituição desse sistema de injustiça por um sistema justo; acredito no fim da inanição, do ficar ao relento, e dos crimes causados por essas coisas; acredito na alma humana pontificando acima de todas as leis que o homem fez ou fará; acredito não haver paz hoje, e que nunca haverá paz, enquanto o homem governar o homem; acredito na total desintegração e dissolução do princípio e da prática da autoridade; sou anarquista, e se vocês me condenarem por isso, estou pronto para receber a condenação.”
Tem sido minha experiência que, quando encaramos um inimigo e o olhamos dentro dos olhos, ele nos respeita muito mais do que quando nos movemos nervosamente e nos esquivamos. E, ademais, há muito maior probabilidade de convencê-lo, ou ao homem indiferente ao lado, com uma declaração de olhos abertos do que falando de maneira indireta. Digo essas coisas porque tenho tido a dor de ver no presente período de repressão muitos de nossos camaradas pensarem e agirem de maneira diferente. Estou certa de que a maioria daqueles que agem como Pedro e negam seu Mestre fazem-no a partir de convicção de bom senso, e não por covardia; mas também estou certa de que essa é uma política muito equivocada, que só pode trazer resultados infelizes.
Encare e confronte – pois estes são tempos nos quais “bravura é circunspecção.”
Afixado por James Tuttle em 1o. de setembro de 2012 em Libertário de Esquerda – Clássicos
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.