Escrito por Joel Williamson. Artigo original: Constructing an Unfixed Freedom de 21 de novembro de 2022. Traduzido por Gabriel Camargo
Interesse Próprio
Em toda interação e em toda estrutura social, os seres humanos exercem um instinto psicológico inevitável conhecido como interesse próprio. Trata-se de um fator motivacional profundo que é inseparável de nossa subjetividade. Quer sejamos gentis ou cruéis, ele opera no pano de fundo de nossas decisões e persiste apesar de estarmos cientes de sua presença. É uma característica fundamental e definitiva do animal humano.
Embora essa observação amoral não fale sobre como alguém deve buscar seus interesses, ela pode criar uma base sobre a qual podemos explorar essas questões e construir uma política que valha a pena possuir.
Mutualismo Ético
O interesse próprio está entrelaçado com o desejo de se autodeterminar. Quando um indivíduo se autodetermina, ele exerce sua vontade de liberdade. A expressão dessa liberdade, no entanto, nunca ocorre em um vácuo e não é moldada em uma bolha. Ela é entendida e atualizada por meio das muitas esferas de interações sociais que encontramos ao longo de nossas vidas. As teias interligadas de relacionamentos, formais e informais, moldam o conteúdo de nosso interesse próprio de uma forma que revela a importância da liberdade recíproca. Um ambiente socialmente recíproco significa que cada indivíduo é livre para fazer o que quiser, desde que não impeça ninguém de exercer a mesma liberdade. Essa condição expressaria a perfeita mutualidade. Seria adequado, então, chamar essa atmosfera de mutualismo ético.
Condições Atuais
Infelizmente, estamos vivendo em um mundo muito aquém dos padrões do mutualismo ético. Nossas condições atuais são definidas por grandes concentrações hierárquicas de poder, dinheiro e influência. Nossas instituições políticas são coercitivas e nossas economias crescem a partir da pilhagem histórica. Por que existe um abismo tão grande entre o mutualismo ético e a disseminação da dominação como a conhecemos? Até este ponto, um egoísmo grosseiro tem assombrado a história. A guerra, o cercamento e o fanatismo conquistaram o mundo e nos convenceram, em grande parte, a nos afastarmos das tentativas significativas de mutualidade. Dominar os outros se tornou a norma graças a uma hegemonia cultural tóxica que recompensa esse comportamento. A raiz dessa hegemonia vem da tentativa equivocada de encontrar liberdade por meio da dominação. Se essa raiz não for cortada pela base, ela pode se transformar em um fetiche maciço de hierarquia que persiste por meio da eliminação retributiva da espontaneidade. Essa tentativa vulgar de ordem nos nega a verdadeira expressão de nosso interesse próprio ao confundir nossa liberdade com nacionalismo, tribalismo e estatismo. Sob essas condições, somos ensinados e esperados a reduzir nossa empatia e a encontrar nosso lugar em proscritas e categorizáveis caixas. Essas expectativas são mantidas por meio de leis coercitivas e perpetuadas voluntariamente por aqueles que optam por aplicá-las. Dominar os outros, portanto, é um exercício de uma vontade confusa de liberdade. O poder nos motiva na medida em que nos oferece autonomia. Mas uma autonomia que impede o outro é um esforço em vão para a autorrealização. A vontade de poder é incapaz de chegar à raiz de nossas motivações. Ela nos incentiva a participar da opressão, e levá-la adiante seria, em última análise, uma negação de si mesmo. Não precisamos nos rebaixar ao nível dos tiranos só porque o deus de Nietzsche está morto.
Considerando a Anarquia
Tendo abandonado amplamente a cooperação, nossa situação atual é marcada por estratificações de classe que nos envolvem em uma rede de interesses conflitantes que beneficiam alguns em detrimento de outros. Em algum momento, torna-se inconcebível para os detentores do poder considerar a possibilidade de avançar em direção a condições sociais que se aproximem do mutualismo ético, uma vez que seu conforto material e psicológico depende da manutenção do status quo. Quanto aos muitos que estão sujeitos a esse poder, a vontade de liberdade contém uma promessa radiante e emancipatória de mutualidade. O desafio crucial de nosso tempo é descobrir maneiras criativas de sair desse labirinto político de controle.
A única filosofia política adequada para a realização do mutualismo ético é aquela que coloca a liberdade como seu mais alto valor. Não há melhor proposta ou expressão conhecida dessa tendência do que o Anarquismo. Apesar dos esforços de propaganda que promovem concepções errôneas comuns da Anarquia como caos vicioso e violência, ela é, na verdade, uma contemplação intrincada da condição humana que promove a liberdade com mais paixão do que qualquer outra filosofia política. É pouco conhecido ou apreciado o fato de que o Anarquismo tem sido, na verdade, abordado ao longo da história em várias capacidades, e qualquer filosofia política contemporânea honesta também deve lidar com os problemas éticos do poder e da violência institucional que a Anarquia desafia. Para aqueles de nós que rejeitam essa violência normalizada, a Anarquia é nossa amiga. Ela é a verdadeira expressão da a vontade pessoal de liberdade e a maneira de realizar a promessa do mutualismo ético.
A anarquia postula que a autodeterminação é tão fundamentalmente importante para a experiência humana que qualquer força em contradição deve justificativa para negar essa liberdade. A vastidão de maneiras pelas quais a liberdade nos pode ser negada pode ser expressa por meio de uma variedade de instituições culturalmente legitimadas, tanto religiosas quanto seculares. Certa vez, em uma entrevista gravada em vídeo, a conhecida anarquista e agitadora Emma Goldman definiu o Anarquismo como “uma filosofia social que visa à emancipação econômica, social, política e espiritual da raça humana”. Isso significa que, segundo o Anarquismo, todas as formas de autoridade são indesejáveis e que devemos ter como objetivo a construção de uma sociedade baseada na cooperação voluntária e na livre associação para todos.
A primeira pessoa a se autodenominar anarquista e mutualista foi o filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon. O Anarquismo Mutualista de Proudhon é uma filosofia abrangente que inclui implicações éticas, políticas e econômicas que não serão totalmente exploradas neste artigo. No entanto, gostaria de destacar algumas de suas percepções que são relevantes para a trajetória dos argumentos deste texto. Ao considerar como progredir em direção à liberdade social, Proudhon assumiu uma posição explícita contra o que ele chamou de absolutismo. Para Proudhon, isso significava rejeitar metas finais utópicas perfeitas marcadas por estágios categorizáveis e determinados na história. Em vez disso, Proudhon favoreceu um processo aberto que equilibrou a meta ambiciosa da liberdade com a nossa realidade concreta não livre de fato existente. Ele adotou uma abordagem de “progresso por aproximações”, em que mais e mais liberdade seria conquistada por meio de etapas pragmáticas graduais rumo à libertação. A perspectiva de Proudhon sobre o avanço da liberdade é crucial para o sucesso a longo prazo do Anarquismo e nós nos beneficiamos dessa visão.
Além da orientação de Proudhon para evitar o absolutismo e o utopismo, há outras armadilhas que podemos evitar quando estivermos pensando em como expandir a liberdade. Uma delas é reduzir o objetivo do Anarquismo à abolição das formas imediatamente identificáveis e óbvias de dinâmicas de poder desiguais. Todos os sistemas identificáveis de opressão devem ser superados, mas também os exemplos menos óbvios de falta de liberdade. É nosso trabalho identificar esses sistemas, ir além deles e construir a liberdade em seu lugar.
Anarquia Como Flecha
É por isso que é melhor imaginar o projeto anarquista como uma flecha gradualista, não limitada a um foco singular em um determinado objetivo, como a ausência de estado. Evoluir para além do estado é um objetivo fundamental da Anarquia, mas não é o fim, porque a libertação, entendida adequadamente, não tem limites. Alcançamos determinados objetivos no caminho para a ausência de estado, mas a liberdade em si é inabalável e está sempre se expandindo.
Há também problemas táticos a serem considerados quando minimizamos o Anarquismo à abolição do estado. Um deles é que, se você levar o assunto a sério, pode acabar se aliando a forças hostis. O niilismo político de um antiestatismo tênue é facilmente cooptado pelos fascistas, por exemplo, que às vezes também podem estar interessados em derrubar o status quo. Infelizmente, os fascistas só estão interessados na subversão política para implementar um autoritarismo ainda maior. Uma grande variedade de reacionários defende uma agitação acelerada em direção à guerra civil. Jogos populistas de números como esses são bem adequados para recrutas ingênuos que podem ser capazes de fornecer munição para um meio e um fim insensatamente sangrentos. Uma pessoa pode, sem querer, tornar-se um peão nas tentativas assassinas dos nazistas sem uma análise mais ampla e profunda da liberdade.
Além do problema dos fascistas, um compromisso tênue com o antiestatismo também pode levar a um tipo de brutalidade organizada encontrada na revolução formal apoiada por pessoas como os Tankies. Apesar de falar da boca para fora sobre o anti-imperialismo ou fazer gestos retóricos para libertar o trabalho, os comunistas de estado não gostam de projetos interessados na liberdade real. Não é preciso olhar além da Rebelião de Kronstadt para entender como o autoritarismo vermelho pode ser mortal para os anarquistas e sua paixão por um mundo além da hierarquia. É por isso que qualquer apelo não equilibrado à unidade da esquerda deve ser tratado com profunda desconfiança.
Sem o imediatismo da revolução formal vermelha ou marrom e com o reconhecimento de que as aproximações graduais da liberdade devem ser consideradas, pode-se também cair na armadilha do reformismo liberal. Apesar de esse provavelmente ser o menor dos três males, ele é, por definição, o tipo de entrincheiramento político que a Anarquia busca superar. Ser pego em sua teia garante nossa derrota precisamente porque o processo eleitoral-reformista em si é uma contradição prática de meios e fins para os anarquistas. Isso não significa que não devamos celebrar ou incentivar a liberalização da política de drogas ou de fronteiras, mas, à luz da derrubada de Roe vs Wade nos Estados Unidos, deveria ser óbvio que devemos imaginar e aprender maneiras de agir diretamente em direção à liberdade. A reforma, assim como o gradualismo, avança lentamente, mas o possível fracasso de qualquer insurreição criativa e experimental custa muito menos do que o desperdício de energia do eleitoralismo.
Particularismo Tático
A dinâmica de poder desigual se manifesta em uma variedade de formas complexas e particulares que podem ser difíceis de superar usando soluções de tamanho único. A maneira pela qual agimos diretamente para libertar a nós mesmos e aos outros será diferente conforme a situação e o contexto. Por exemplo, contornar as limitações de um sistema de saúde falido é incrivelmente difícil para muitas pessoas, e pode haver uma série de razões pelas quais alguém pode considerar criar ou adquirir ilegalmente seus próprios medicamentos salva-vidas. Isso é a Anarquia em ação. Da mesma forma, pode ser o caso de um indivíduo que esteja lidando com um parceiro abusivo ou pais que apresentam comportamento nocivo. Essa pessoa precisa desesperadamente de uma maneira de sair de sua situação vulnerável, e o método utilizado para abrir caminho para a liberdade pode ser muito diferente da luta pela assistência médica. Cada uma dessas circunstâncias infelizes é um exemplo de falta de liberdade e é importante destacar como elas exigem ferramentas diferentes para lidar com seus respectivos problemas.
Além disso, vale a pena ter em mente que, mesmo quando experimentamos a liberdade, as muitas maneiras pelas quais o autoritarismo pode se infiltrar em nossas vidas, institucional ou interpessoalmente, são muito complexas. Tão complexas que, às vezes, exigem soluções hiperindividualizadas que nenhum terceiro ou projeto poderia esperar resolver. É uma complexidade sem fim. Uma tarefa exclusivamente adequada para a flecha gradualista da Anarquia.
Emancipação Prática
Quando canalizamos nossa vontade própria de liberdade por meio do mutualismo ético, criamos uma base sobre a qual podemos considerar a única filosofia política que coloca a liberdade como seu valor mais alto–o Anarquismo. Reorientar-nos para ver a Anarquia como uma flecha gradualista nos permite abordar a vida e nossa paixão pela liberdade de forma mais holística. Essa proposta, embora mais abstrata em certos aspectos, oferece uma política sustentável e realista.
Todas as metas libertárias são importantes, sejam elas de curto ou longo prazo, micro ou macro. Se plantarmos as sementes da liberação agora por meio da criação de formas alternativas de ser, poderemos expandir gradualmente e descobrir o que é possível. Nenhum momento revolucionário singular é adequado para atingir os padrões de uma filosofia viva e respirante que busca realizar o que tantas mentes conservadoras veem como impossível. O estado pode se extinguir com o patriarca, mas novas liberdades estão sempre à espreita, esperando para serem descobertas e gradualmente realizadas.