David S. D’Amato. Original: Gamestop, Capitalism, and Freedom. Traduzido para o português por Gabriel Serpa.
Os estrategistas de Wall Street definiram-no como um dos mais perigosos short-squeezes em décadas: no final de janeiro, as ações da varejista de videogames GameStop, alvo de praticantes das vendas a descoberto e de muitos hedge funds, dispararam como resultado de uma corrida acionada por usuários do fórum WallStreetBets da Reddit. Neste caso, os investidores estavam apostando na queda das ações no tempo entre a venda inicial e a recompra. Em casos similares, se tudo correr como planejado, os vendedores a descoberto devolvem os ativos emprestados, mais quaisquer juros ou taxas devidas aos emprestadores, a um valor mais baixo.
Mas o que acontece quando as coisas não correm como planejadas? Comerciantes no fórum WallStreetBets atiraram uma chave de fenda nas engrenagens dos investidores, que planejavam vender ações da GameStop,realizando o chamado short-squeeze. Ao agir em conjunto, e voluntariamente, para apoiar o preço das ações da varejista, estes investidores individuais foram capazes de conduzir as ações da GameStop a níveis que ninguém teria imaginado — muito menos os hedge funds que vendiam a descoberto. Aqueles que pensavam estar vendendo a descoberto se viram obrigados a tomar uma decisão difícil: reduzir suas perdas e se proteger comprando de volta as ações — o que naturalmente eleva seu preço —, ou manter a sua posição — o que requer grande capital e acarreta em grandes riscos. O sucesso da empreitada da Reddit significou enormes perdas para muitoshedge funds, que na semana passada, segundo a Goldman Sachs, levaram a maior surra desde a crise financeira causada pelo colapso do mercado imobiliário, há mais de uma década.
Em um movimento polêmico no auge da tempestade, a plataforma comercial Robinhood de repente impôs novas regras em referência ao caso GameStop, levantando críticas tanto da esquerda, quanto da direita. A senadora progressista Elizabeth Warren, por exemplo, questionou as consequências da ação da Robinhood, que teria sido motivada por suas relações estreitas com poderosos players de mercado, como os hedge funds. Outros progressistas, como a Secretária do Tesouro Janet Yellen, viram o caso da GameStop como um exemplo de falha sistêmica, e que justificaria uma regulamentação adicional. Yellen convocou uma reunião com os principais reguladores, incluindo o Federal Reserve e a Comissão de Títulos e Câmbio, para discutir as implicações do caso da varejista de jogos eletrônicos.
O episódio também trouxe à tona outra questão importante, embora quase esquecida, relativa ao sistema econômico capitalista. Talvez surpreendentemente, a esquerda e a direita façam o mesmo juízo errado sobre tal sistema econômico: ambas o entendem como um sistema de mercado livre. A esquerda culpa o mercado e a concorrência por causar colapsos e crises sistêmicas. A direita, por outro lado, se vê fazendo contorcionismos retóricos para tentar explicar o que está acontecendo sob o capitalismo atual, pensando assim estar defendendo ambos mercado e concorrência.
Se a direita e a esquerda estão erradas ao considerarem o capitalismo como sinônimo de livre-mercado, provavelmente a esquerda está equivocada ao condenar o último. A narrativa da esquerda contemporânea é profundamente confusa ao pressupor que o poder do capitalismo na sociedade deriva de um mercado liberto, isto é, de um excesso de liberdade e da fraqueza do Estado. Nada poderia ser mais falso: na verdade, são as regulações e os jogos de cartas marcadas que isentam os capitalistas de operarem em um mercado verdadeiramente competitivo.
Os velhos libertários americanos entendiam isso: o anarquista individualista Benjamin Tucker escreveu que os capitalistas temem seus próprios ensinamentos, glorificando o mercado livre, mas praticando o protecionismo baseado em leis e regulamentações. Tucker, um defensor ferrenho da livre-competição, chamou os capitalistas de um bando de ladrões licenciados. Em um sistema livre e competitivo, disse ele, os capitalistas nunca prevaleceriam. Para libertários de mercado, como Tucker, o Estado era simplesmente o resultado de uma conspiração de capitalistas — no sentido formal e legal de pessoas que se unem para cometer crimes. O Estado foi criado para proteger os interesses do capital e permitir que alguns poucos parasitas dominassem muitos — e não para proteger os cidadãos e fazer cumprir a lei e a ordem.
Anarquistas como Tucker defendiam que os objetivos do socialismo poderiam ser atingidos se as liberdades — que atualmente são monopolizadas pelos capitalistas — fossem estendidas a todas as pessoas. Se queremos uma sociedade mais livre e justa, devemos nos lembrar que este sistema político e econômico que temos hoje não é um mercado liberto.