De Cayce Jamil. Artigo original: What is Justice? Traduzido para o português por Gabriel Serpa.
Se você escutar a um protesto, provavelmente ouvirá frases relacionadas à obtenção de justiça, tais como sem justiça, não há paz. Entretanto, o que se entende pelo termo justiça não está claro. Alguns presumem que o termo significa que reparações diretas devem ser feitas pelo Estado a um grupo prejudicado. Outros supõem que isso justifica alguma forma de retaliação contra o grupo agressor. Na realidade, nenhuma dessas formas dejustiça é realmente Justiça.
De acordo com Pierre-Joseph Proudhon e, mais tarde, Georges Gurvitch, a justiça é fundamental para manter a sociedade unida (Bosserman, 1968). A religião, de fato, parece surgir precisamente porque é necessária uma compreensão compartilhada da justiça para que a sociedade funcione. Como escreveu Proudhon: a justiça é a mais primitiva da alma humana, a mais fundamental da sociedade, a mais sagrada entre as nações […] É a essência das religiões ao mesmo tempo em que é a forma da razão, o objeto secreto da fé […] (citado em De Lubac 1948: 278). Inicialmente, a religião é o grande unificador dentro da sociedade porque contém uma compreensão compartilhada da justiça.
A compreensão culturalmente compartilhada da justiça, encontrada dentro da religião, Proudhon chamada de justiça autoritária. Como a religião e a autoridade estão entrelaçadas no início da civilização, a justiça autoritária se baseia na noção de que o poder faz o direito. A justiça, como a ordem, começou com força. No início era a lei do príncipe, não a da consciência. Obedecido por medo, ao invés de amor, ele é imposto, ao invés de explicado (Proudhon, 2004: 255). Dentro das antigas civilizações, a forma de justiça autoritária que predominava é conhecida como a lei da retaliação. A lei da retaliação pode ser resumida na expressão olho por olho. Há numerosas referências à lei de retaliação, quase universalmente, dentro da civilização primitiva. Os registros escritos mais antigos da frase datam do código Hamurabi, de 1754 a.C. Entretanto, na Era Axial, entre 800 a.C. e 600 a.D., encontramos uma evolução na compreensão da justiça em uma multidão de religiões (Graeber, 2014). De Pitágoras, Buda e Confúcio a Zoroastro, Jesus Cristo e Maomé, a justiça é redefinida quase sem exceção. Ao invés de retaliação, a justiça autoritária agora prioriza a restauração.
A justiça autoritária, entretanto, permaneceu intacta. Ela foi baseada na fé e na obediência. Como comentou Proudhon (1890: 80): em todas as idades o sacerdote se submeteu ao príncipe, e os deuses sempre falaram como os políticos desejavam. Embora a nova forma de justiça autorizada agora enfatizasse a restauração, o controle da autoridade sobre a justiça ainda era entendido como legítimo. Foi somente na Era da Razão, a partir do século XVI, que a justiça autoritária foi desmantelada. A descoberta científica, como o modelo heliocêntrico do universo, e a invenção tecnológica, como a prensa, desafiaram inerentemente e, eventualmente, derrubaram a autoridade que a religião tinha sobre a justiça. Inadvertidamente, os cientistas liberaram a justiça da religião. Como resultado, a legitimidade da justiça autoritária foi gradualmente demolida. A justiça, fora das mãos da religião, só pode ser baseada no indivíduo. Mesmo em relação ao crime, Proudhon (2004: 257, 260) argumentou que só há uma maneira de fazer justiça; é que o culpado, ou simplesmente o acusado, deve fazê-lo ele mesmo […] Então a justiça, que brota da liberdade, não será mais vingança: será reparação. A justiça deve agora ser algo que a consciência faz a si mesma, e não um veredicto imposto externamente.
Em toda a sociedade, Proudhon argumentou que o indivíduo tem se tornado, cada vez mais, como a única fonte legítima de justiça, o que ele chamou de justiça imanente. A religião ou o Estado não podem mais forçar o indivíduo a se conformar com sua interpretação autoritária da justiça. A justiça agora é entendida como sendo mantida apenas pelo indivíduo. Previsivelmente, foi por volta desta época, na Europa, que Martinho Lutero negou a Igreja, a religião estatal caiu, a teoria do contrato social surgiu e ondas de revoluções irromperam por todo o continente. A religião não era mais o grande unificador da sociedade. A justiça imanente tornou-se a negação da justiça autoritária. Por causa do domínio da justiça imanente, o poder faz a justiça tornou-se uma base completamente ilegítima para a justiça. Agora é entendido coletivamente que a única fonte legítima de justiça se baseia unicamente na consciência do indivíduo. No entanto, a sociedade, particularmente na base da maioria de suas estruturas sociais, ainda ostenta as marcas da justiça autoritária. Todas as estruturas sociais que surgiram na antiguidade, como o Estado e a propriedade, permanecem em sua essência, baseadas na noção de que o poder faz a justiça, e na própria justiça autoritária. Estas antigas estruturas sociais contradizem esta nova forma de justiça compartilhada com base no indivíduo. Consequentemente, a luta social é ampliada, uma vez que ao nosso senso de justiça, culturalmente compartilhado, não foi permitido fincar suas raízes.
Para alinhar a sociedade com a justiça imanente, todas as estruturas sociais que ainda se baseiam na justiça autoritária devem ser abandonadas. Para abandonar a autoridade, a sociedade deve primeiro estar plenamente convencida da realidade de uma justiça imanente. Deve ser demonstrado que a justiça autoritária não só impede a justiça imanente, mas também gera desordem social. Somente quando a justiça imanente for devidamente compreendida, a sociedade poderá ser reorganizada a partir da consciência do indivíduo (Jamil, em Press). Naturalmente, a sociedade construída em torno da ideia compartilhada de justiça imanente implica uma sociedade construída em torno do contrato. Como Proudhon (2004: 125) escreveu, na Ideia Geral da Revolução no Século XIX:
A idéia de contrato, ao contrário da de governo […] passou pelos séculos XVII e XVIII sem ser percebida por um único publicitário, sem ser observada por um único revolucionário. Por outro lado, todos os mais ilustres da Igreja, em filosofia, em política, conspiraram para se opor a ela.
Relativamente, a estrutura social baseada na justiça imanente, em contraste com a justiça autoritária, leva diretamente à propriedade baseada no uso e a um estado não-governamental, nas palavras de Proudhon, que é um estado baseado no consentimento e não na força imposta (Wilbur, 2013). A propriedade baseada no consentimento do estado governamental mantém sua legitimidade baseada no legado histórico de justiça autoritária. Ao liberar a propriedade da autoridade, a propriedade é detida exclusivamente pela consciência do indivíduo. Da mesma forma, ao abandonar o estado governamental, que é o monopólio da força e do domínio simbólico, Proudhon argumentou que o Estado seria reformulado. Quem não vê que a organização mutualista das trocas […] empurra irresistivelmente os produtores, cada um seguindo sua especialidade, para uma centralização análoga à do Estado, mas na qual ninguém obedece, ninguém é dependente, e todos são livres e soberanos? (Citado em Wilbur, 2013: 26). Ao invés de se impor externamente à sociedade, o estado não governamental seria teoricamente constituído internamente e se preocuparia principalmente com os esforços administrativos.
Em resumo, a demonstração de justiça imanente dentro do indivíduo permite reivindicar justiça baseada na restauração e sinaliza o fim da justiça autoritária na sociedade. A justiça imanente se realiza através da reciprocidade de perspectivas. A realização da reciprocidade de perspectivas resulta inerentemente no reconhecimento da dignidade humana (Bosserman, 1968). O dever da justiça passa apenas pela defesa da dignidade humana. Como escreveu Proudhon: reciprocidade na criação é o princípio da existência. Na ordem social, a reciprocidade é o princípio da realidade social, a fórmula da justiça (citado em McKay, 2011: 283). É através da reciprocidade de perspectivas que a restauração, ao invés da retaliação, pode ser realizada. Somente através da reorganização da estrutura social, para que ela se baseie na justiça imanente, a ordem social pode ser gerada e restaurada.