Na Reason, Ilya Somin, mantendo a prática anual adoptada desde 2007, escolheu o 1 de Maio – Dia do Trabalhador – como data para celebrar o “Dia das Vítimas do Comunismo”. Somin cita a “autoridade” do Livro Negro do Comunismo como fonte para a estimativa de 80 a 100 milhões de mortos no século XX. Para colocar o descritivo dessa “autoridade” em perspectiva, este apanhado das polémicas – incluindo polémicas entre os autores – no que diz respeito às preocupações com a metodologia, e a um dos autores ter extrapolado os números para atingir a bela e redonda soma de 100 milhões, talvez seja de interesse.
Proponho um Dia das Vítimas do Capitalismo, para assinalar as mortes causadas pelo capitalismo (julgando o capitalismo pelos mesmos padrões que Somin aplica ao comunismo).
Devo afirmar, em jeito de esclarecimento, que como anarquista não tenho qualquer desejo de branquear o registo histórico dos regimes marxistas-leninistas (ignorando desde já se a associação exclusiva da etiqueta de “comunista” ao leninismo e ao marxismo-leninismo – uma associação encorajada tanto pelos marxistas-leninistas como pelos apologistas do capitalismo – em prejuízo do marxismo não-leninista e de outras tradições comunistas libertárias, é legítima). Os militantes das tradições marxcianas não leninistas, e ainda menos os anarquistas e os de outras tradições socialistas marxcianas, não se deram lá muito bem nos ditos “Estados dos trabalhadores”. Nem os próprios trabalhadores, já agora, como prova a supressão dos comités fabris sob Lenine. E quer as estatísticas do Livro Negro tenham sido em maior ou menor grau especuladas, é certo que o projecto marxista-leninista esteve sempre disposto a quebrar mais do que alguns ovos; e as suas omeletes enveredaram por vias autoritárias extremamente modernistas ou desenvolvimentistas que infelizmente se assemelharam aos primórdios da indústria na História do capitalismo.
Agora, longe de mim contra-atacar o capitalismo em defesa do “comunismo”, reconheço que o marxismo-leninismo tem sido um sistema de poder de classe autoritário e extractivista. Ataco o capitalismo a par com o marxismo-leninismo como sendo outro sistema de poder de classe autoritário e extractivista, de igual modo alicerçado no Estado e com um número de mortes comparável ao do “comunismo”.
Vamos lá começar. Claro que temos o mais óbvio – todas as mortes causadas directamente pelos Estados ou pelos capitalistas ao longo dos séculos, com o intuito de maximizar o lucro capitalista.
A violência estatal tem estado intimamente presente na História do capitalismo desde o seu surgimento. O pré-requisito central do capitalismo é a separação entre a força-de-trabalho e os meios de produção, com o intuito de obrigar a esmagadora maioria das classes produtivas a entrar no mercado do trabalho assalariado, propriedade dos capitalistas. Tal inclui a circunscrição dos campos abertos no período final do medievalismo e nos primórdios da Europa moderna, a circunscrição parlamentar das pastagens e do refugo na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX. Inclui também uma anulação semelhante da utilização tradicional da terra por parte dos camponeses em todo o mundo colonial, sob administração europeia, desde os tempos de Warren Hastings: a expropriação e genocídio das populações indígenas da América do Norte e da Austrália, a criação do sistema de fazendas na América Latina, a expropriação de 20% do solo mais fértil da África Oriental britânica (e acções semelhantes por parte das potências europeias em toda a África e restantes possessões coloniais à volta do mundo), e um roubo constante de terras e suas circunscrições pelos regimes neocoloniais desde a independência após a Segunda Guerra Mundial. Para termos uma ideia do custo humano da imposição da agricultura capitalista em África, tenhamos em conta o exemplo da guerra do rei Leopoldo no Congo belga.
Inclui os milhões de mortos nos barcos esclavagistas transatlânticos, e as vidas furtadas e encurtadas pela utilização de mão-de-obra escrava para lucro da agricultura capitalista.
Inclui a supressão violenta da concorrência económica à indústria europeia (e.g. as Leis Calico no Bengala).
Inclui todas as guerras sangrentas, invasões, golpes e apoios ao terrorismo – tanto pelos poderes coloniais como pelos neocoloniais – com o intuito de manter o controlo capitalista sobre as terras e recursos expropriados e frustrar qualquer reforma agrária. Na realidade algumas das páginas mais sangrentas do Livro Negro do Capitalismo – os assassinatos de centenas de milhar por Suharto na Indonésia (com a delegação da CIA em Jakarta a providenciar as listas de alvos), o derrube de Arbenz na Guatemala e os exuberantes esquadrões da morte que se espalharam por toda a América Central durante décadas, a vaga de golpes fascistas pela América do Sul sob a Operação Condor – levadas a cabo para “combater o comunismo”. A guerra dos EUA no Vietname foi travada, na sua maior parte, para manter a borracha e o estanho desse país integrados na economia empresarial americana. Na realidade, a principal motivação dos EUA, em encontrar um pretexto para a guerra contra o Japão, foi a ameaça do Japão poder retirar os recursos e os mercados da indochina francesa, das Índias Orientais holandesas, etc., do GrandeEspaço que era necessário reter sob controlo dos EUA para a sua sobrevivência e integrá-lo na autarcista Grande Esfera de Prosperidade Mútua da Ásia Oriental. A documentação interna dos anos 40 e 41 do Departamento de Estado está repleta de alertas quanto à possibilidade do capitalismo americano não conseguir sobreviver de forma reconhecível sem ter garantido o seu acesso ao estanho e à borracha indochinesas, ao petróleo da Índia Oriental e por aí fora, acompanhado da clara intenção de iniciar uma guerra com o Japão por todos os meios possíveis caso esse acesso fosse imediatamente ameaçado.
A política externa dos EUA do século XX orientou-se acima de tudo pelas necessidades expansionistas do capital. As elites empresariais americanas (bem como as elites capitalistas das potências coloniais europeias) tendo experienciado a Depressão e a inquietação trabalhista dos anos 90 do século XIX, viram-no como sendo resultado de uma crise de hiperprodução de capital, da indolência da capacidade industrial e de um subconsumo que só poderiam ser remediados por intermédio da conquista de novos mercados e da exportação de capital de investimento. Assim o cerne fulcral da política externa dos EUA tornou-se no que William Appleman Williams apodou de “Imperialismo de Portas Abertas”, cuja característica era definida pelo policiamento do supracitado Grande Espaço de modo a evitar a sua deserção.
Smedley Butler, major-general da Marinha na reforma, foi bastante honesto quanto aos interesses de classe defendidos em todas as guerras em que combateu.
Despendi trinta e três anos e quatro meses de serviço activo como membro da força militar mais ágil deste país, o Corpo de Fuzileiros. Servi em todos os cargos desde segundo-tenente até major-general. E durante esse período, passei a maior parte do tempo a ser os músculos de primeira classe para o Grande Capital, para Wall Street e para os banqueiros. Resumindo, fui um extorsionista, um gangster ao serviço do capitalismo.
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O problema da América é que quando o dólar só rende 6 porcento aqui, fica irrequieta e vai além-mar para ganhar a 100 porcento. Depois a bandeira vai atrás do dólar e os soldados vão atrás da bandeira.
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Auxiliei a tornar o México e principalmente Tampico seguros para os interesses petrolíferos americanos em 1914. Ajudei a tornar o Haiti e Cuba num sítio decente para os rapazes do National City Bank lá poderem ir buscar os seus rendimentos. Ajudei na violação de meia dúzia de repúblicas centro-americanas em benefício de Wall Street. Auxiliei a purificar a Nicarágua para a Banca Internacional dos Brown Brothers em 1902-1912. Levei a luz à República Dominicana para os interesses do açúcar americano em 1916. Ajudei a que as Honduras ficassem no ponto para as empresas frutíferas americanas em 1903. Em 1927 na China ajudei a garantir que a Standard Oil se mantinha sem que a molestassem.
A expropriação não foi algo que ocorreu uma única vez para permitir o início do capitalismo. O que David Harvey apoda de “acumulação pela expropriação” é uma característica permanente do capitalismo até à data. O Livro Negro do Capitalismo inclui a privatização e circunscrição dos bens de interesse comum sob o neoliberalismo, normalmente extorquidos pelo FMI ao abrigo de programas de reajustamento estrutural.
Resumindo: ao longo dos últimos séculos a esmagadora maioria do solo arável e recursos da Terra viram anulados todos os seus direitos de usufruto tradicional e comunitário, e foram convertidos em propriedade de donos capitalistas ausentes – no interesse do capital. A maior parte da população mundial foi forçada a separar-se dos seus direitos de usufruto no que aos meios de produção diz respeito e guiada como bestas a tornar-se assalariada – no interesse do capital. E o mundo capitalista infligiu incomensurável morte e devastação, mundo fora – no interesse do capital – sempre que este sistema de propriedade imposto pela violência e o regime de assalariados se viu em risco.
Até agora só nos debruçamos sobre a violência directa, visível e dramática. Mas toda esta mortalidade visível empalidece quando comparada com a estimativa no “Ocultado” de Bastiat. Nomeadamente, todas as mortes que são resultado indirecto da acção do Estado em favorecimento dos capitalistas. Todas a mortes mencionadas previamente partem de eventos “fora da normalidade” que decorreram no início do sistema capitalista, para a sua implantação, ou no processo recorrente de forçar a norma capitalista em todo o planeta. Sabem, todas aquelas coisas que o sistema de ensino americano e a comunicação social varrem para debaixo do tapete, e das quais a maior parte dos americanos nunca ouviu falar. Agora vamos analisar todas as coisas “normais”, tudo aquilo que os americanos aceitam como meramente inevitáveis ou parte normal da vida do dia-a-dia, “as coisas são assim” – e todas as mortes que daí resultam.
A expropriação da terra e dos recursos, e a privatização de bens comuns necessários à sobrevivência, deixaram um legado de séculos de desigualdade, destituição e fome que é menos dramático, mas que a longo prazo é ainda mais letal. O Livro Negro do Comunismo, recordem, não restringe a estimativa de mortes causadas pelo comunismo às mortes directamente infligidas pelos Estados marxistas-leninistas. Inclui fomes que resultaram da má gestão por parte do Estado, ou como efeito não intencional de políticas que foram aplicadas por outras razões (e.g. a fome na China durante o Grande Salto em Frente).
Tal significa que, para determinar a estimativa de mortes causadas pelo capitalismo, devemos incluir todas as mortes que resultam da desigualdade ou da pobreza estrutural sob o capitalismo, resultado da expropriação em massa de terras e recursos, concentração da riqueza e extracção recorrente das rendas económicas.
Paremos e analisemos: longe da versão que obtemos da História – na qual a fome mundial resulta da persistência na utilização de formas “primitivas” pré-capitalistas de produção agrícola, como alertaram Norman Borlaug e a Revolução Verde – a verdade é que o mundo produz comida suficiente para dez mil milhões de pessoas, e a fome é total responsabilidade de uma má distribuição. Sendo mais específico, a fome ocorre principalmente entre aqueles que foram despejados das terras nas quais anteriormente se alimentavam, bem como entre os seus descendentes, para que a sua terra fosse convertida em produções agrícolas lucrativas. E muitos dos cereais que outrora teriam alimentado imensos seres humanos são agora utilizados para alimentar gado bovino para abastecer as necessidades dos mercados urbanos no estrangeiro. Sendo descarado, os descendentes dos expropriados e roubados não têm dinheiro para competir naquela “democracia do dólar” que os libertários de direita tanto gostam. Todos aqueles que passam fome nas ruas de Calcutá, seja porque os seus antepassados foram despejados por Warren Hastings, seja por eles próprios terem sido despejados pelo FMI, são vítimas do capitalismo.
Todos os que morrem em Flint graças à privatização e circunscrição da água, que falecem na América por não poderem pagar cuidados de saúde, que padecem com problemas de saúde e subnutrição por viverem num deserto alimentar, ou da poluição que é desproporcionalmente despejada nas comunidades onde vivem as pessoas mais pobres ou as pessoas de cor, são vítimas do capitalismo.
Quanto à estimativa de mortes destes acontecimentos “normais”, o capitalismo está em dificuldades se o seu próprio Livro Negro empregar a mesma metodologia que foi aplicada no Livro Negro do Comunismo. Ao contarem as mortes causadas pela fome, doença, etc., sob o comunismo – em justaposição com as mortes deliberadamente infligidas por razões políticas – para chegar ao seu total, os autores do Livro Negro deixam aberta a possibilidade de contarmos de igual modo o excesso de mortalidade que resulta da fome ou das doenças associadas às circunscrições e despejos dos primórdios da Europa moderna e do mundo colonial. O mesmo vale para todas as mortes que resultam das desigualdades económicas sob os governos pós-coloniais ou sob os regimes neoliberais, tanto na periferia como no centro.
Por exemplo, Noam Chomsky defende que se em vez de nos limitarmos a comparar os números de óbitos na China e na Índia durante os anos da fome, olharmos também para o excesso de mortalidade na Índia quando comparado com a da China em anos “normais”, a perspectiva altera-se drasticamente.
[Amartya Sen] realça que a Índia e a China tinham “semelhanças bastante gritantes” quando iniciaram a planificação do seu desenvolvimento há 50 anos, incluindo na taxa de mortalidade. “Mas há poucas dúvidas de que no que à morbidade, mortalidade e longevidade diz respeito, a China lidera claramente sobre a Índia” (também na educação e noutros indicadores sociais). Estima que o excesso de mortalidade na Índia comparado com a China se aproxime de 4 milhões anuais: “a Índia parece conseguir atingir a cada oito anos uma fasquia que a China só atingiu nos seus anos da vergonha”, 1958-1961.
Em ambos os casos, os desfechos têm a ver com as “predisposições ideológicas” dos respectivos sistemas políticos: na China há uma distribuição relativamente igualitária dos recursos médicos, incluindo nos meios rurais, e uma distribuição pública dos alimentos, coisas que não existem na Índia…
Ultrapassando a amnésia, suponhamos que agora aplicávamos a metodologia do Livro Negro e dos seus resenhadores à História como um todo, e não só à parte doutrinariamente aceitável. Concluiremos então que na Índia o “experimento” democrático capitalista desde 1947 causou mais mortes do que em toda a História do “colossal e imenso falhanço do… experimento” comunista em todos os lados desde 1917: mais de 100 milhões de mortes em 1979, dezenas de milhões mais desde então, só na Índia. O “preceito criminoso” do “experimento democrático capitalista” torna-se ainda mais grave se nos debruçarmos sobre os seus efeitos desde a queda do comunismo: milhões de cadáveres na Rússia, para vislumbrarmos outro caso, na medida em que a Rússia seguiu confiantemente a receita do Banco Mundial de que “países que liberalizam rapidamente e mais amplamente recuperam mais depressa [que aqueles que não o fazem]”, regressando ao que fora antes da Primeira Guerra Mundial, uma imagem familiar em todo o “Terceiro Mundo”. Mas “não conseguimos fazer uma omelete sem partir alguns ovos”, como teria dito Estaline. A acusação torna-se muito mais séria se tivermos em conta que as vastas áreas que permaneceram sob tutela ocidental, atingem uma fasquia verdadeiramente “colossal” de esqueletos e um “sofrimento absolutamente fútil, desnecessário e inexplicável”. A acusação ganha ainda mais força se lhe acrescentarmos as somas dos países devastados como resultado directo dos assaltos das potências ocidentais, no mesmo período.
Todos os que morrem de fome porque não conseguem comprar alimentos, cujos antepassados produziam directamente comida para a sua subsistência antes de serem despejados e empurrados a entrar no mercado assalariado (ou a irem para as ruas), são vítimas do capitalismo. Qualquer libertário de direita que consiga ler lido este texto até aqui terá certamente vociferado repetidas vezes a sua objecção de que “o capitalismo não é isso!” Tal é, afinal, o padrão da constrição da direita libertária quando confrontada com o número de mortos causados pelo capitalismo real.
Não, não caro amigo. Tu e os quejandos da direita libertária elogiam constantemente o actual sistema capitalista por todas as coisas maravilhosas que este criou, como o iPhone, e por benefícios como o suposto “declínio global da pobreza extrema”. Mas o capitalismo empresarial transnacional que louvam foi erguido tendo por base todas as atrocidades que enumerei acima, e em muitos casos continua a lucrar perpetuamente com esse legado. Vejamos a Apple, por exemplo. Se o iPhone é o seu fruto, o roubo e a extracção dos rendimentos são as raízes dessa pútrida árvore. São parte integral do seu modelo de negócio. Quando assumimos o crédito por ter feito a salsicha, temos também de acatar a culpa por cada bocado de osso, cabelo, vísceras e miudezas que esta levou. São inseparáveis.
Como tal os defensores do capitalismo representam a longa e sangrenta história de morte registada nas páginas do seu próprio Livro Negro, tanto quanto qualquer marxista-leninista representa a fome na Ucrânia, as purgas estalinistas, a fome decorrente do Grande Salto em Frente ou os campos da morte no Camboja. Essas mortes, recordadas no Dia das Vítimas do Capitalismo, são vossas. Este Livro Negro é vosso. Aceitem-no como tal, ou calem-se de uma vez por todas acerca do “comunismo”.