Em O Processo, Franz Kafka narra a história de Joseph K., um funcionário de alto escalão de um banco, que se vê perdido em meio a um processo penal incompreensível. Não sabe do que está sendo acusado, não conhece quais são as etapas do processo, suas possibilidades de defesa são limitadas. Uma obscura burocracia permeia tudo, e o sigilo reforça a incerteza e a indefinição da situação de Joseph K.
Kafka aí parece falar do Brasil às vezes.
Na véspera da final da Copa do mundo no Brasil (12/07), diversos manifestantes foram presos, com a determinação de 26 mandados de prisão. A acusação era de associação para quadrilha armada e a prisão foi justificada pela eminência de protesto violento marcado para o dia do final da Copa. Daí a prisão preventiva.
Desde então, surgiram vários problemas com o inquérito e a detenção cautelar.
O próprio fato das prisões terem sido efetuadas às vésperas da final da Copa do Mundo pode ser interpretado como uma medida de intimidação aos protestos. A Anistia Internacional se manifestou afirmando que as prisões eram a “repetição de um padrão de intimidação que já havia sido identificado pela organização antes do início do Mundial”.
Reforçando essa conclusão, os manifestantes e seus advogados não tiveram acesso ao conteúdo das acusações, impossibilitando a ampla defesa e o contraditório. Agravando ainda mais a situação, o próprio desembargador responsável pelo julgamento dos habeas corpus impetrados em favor dos manifestantes, Siro Darlan, da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, chegou a ter negado seu acesso aos documentos do inquérito policial.
Pelo menos 10 dos advogados de ativistas foram grampeados pela Polícia Civil, escutas estas autorizadas pela Justiça, incluindo o telefone fixo do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos. O coordenador Thiago Melo salientou que referidas escutas violam o Estatuto do Advogado, que garante o sigilo telefônico do advogado no exercício da profissão:
“O grampo do telefone do IDDH se constitui numa violação da prerrogativa dos advogados que trabalham no instituto pelo sigilo necessário nas conversas entre advogado e cliente. Isso é um prejuízo para uma organização que é de direitos humanos e cuida de casos de violência institucional, de pessoas ameaçadas”.
Também não estava claro se as provas que embasaram a prisão preventiva eram fortes, como afirmava a promotoria. Segundo a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática, interceptações telefônicas e de mensagens da ativista Elisa Quadros Pinto Sanzi, a Sininho, revelaram que ela negociou compras de fogos de artifício, para uso em manifestações. Mas quando comprar fogos de artificio se torna ilegal?
Nesta terça (23/07), o desembargador Siro Darlan decidiu pela soltura liminar de vinte e três manifestantes (cinco dos quais presos, e os demais foragidos), reconhecendo que não havia embasamento suficiente para a decretação da prisão preventiva:
“6) (…) a decisão que decretou a custódia preventiva dos pacientes deixou de contextualizar, em dados concretos, individuais e identificáveis nos autos do processo, a necessidade da segregação dos acusados, tendo em vista a existência de outras restrições menos onerosas.
7) Com efeito, o decreto da custodia cautelar não analisou a inadequação das medidas cautelares alternativas diversas da prisão (…) sendo certo que o Magistrado somente poderá decretar a medida extrema da prisão preventiva quando não existirem outras medidas menos gravosas ao direito de liberdade do acusado por meio das quais seja possível alcançar, com igual eficácia, os mesmos fins colimados pela prisão cautelar e, via de consequência, permitir a tutela do meio social naquelas hipóteses em que haja risco de reiteração.”
A prisão preventiva dos ativistas foi o meio pelo qual o estado brasileiro fechou com chave de ouro o “estado de exceção esportivo” instaurado com a Copa do Mundo no Brasil, o último abuso dentre tantos outros cometidos pelo estado sob o pretexto do Mundial — embora todos os abusos cometidos sejam realidade perene no Brasil.
Quanto ao uso da prisão preventiva, os números são claros. A população carcerária do Brasil, uma das maiores do mundo, com mais de 550 mil pessoas na prisão, é composta por uma quantidade desproporcional de presos preventivos: cerca de 217 mil detidos aguardam julgamento. Um dos fatores que acentua este quadro, onde metade dos presos não foi julgada, é a lentidão do Judiciário, em razão da qual as prisões preventivas vão sendo estendidas indefinidamente. Na prática, o estado brasileiro frequentemente usa a prisão preventiva como uma forma de antecipação da punição.
Além disso, devemos questionar também a quantidade de justificativas legais de que o estado dispõe para prisões preventivas. O art. 312 do Código de Processo Penal estabelece que uma das hipóteses para a prisão preventiva é a “garantia da ordem pública”. Mas o que é a “ordem pública”?
Há tempos que criminalistas brasileiros questionam o modo como essa “garantia da ordem pública” tem sido usada arbitrariamente para levar pessoas à prisão sem julgamento, indício ou prova de que elas estivessem, em liberdade, impedindo o andamento do processo ou prestes a cometer um novo crime.
O contexto histórico é importante. O Código de Processo Penal vigente no Brasil foi criado na ditadura de Getúlio Vargas e seu modelo de processo criminal visa fortalecer o poder punitivo do estado. À época, a ditadura getulista foi ao ponto de instaurar explicitamente uma presunção de culpa no Decreto-Lei nº 88/37 para os crimes contra a segurança nacional, onde se lia “presume-se provada a acusação, cabendo ao réu prova em contrário”.
O Código de Processo Penal foi emendado, mas muitos desses elementos autoritários permaneceram, como a vaga hipótese da “garantia da ordem pública”. Essa tradição judicial brasileira defende, na prática, o estado contra o indivíduo, as punições e o pesadelo kafkiano em vez da liberdade.
Garantias como o devido processo legal, a presunção de inocência, o habeas corpus e a proibição das prisões arbitrárias existem para nos proteger do estado. Sem elas, ninguém está seguro.