Prometi a mim mesmo que não ia mais comentar o que diz Barack Obama, porque simplesmente não vale a pena. O que Obama fala só faz sentido se você tiver uma coisa em mente: ele, como os outros políticos, pensa que a maioria das pessoas são idiotas.
Porém, eu estou tão chocado com o que Obama disse há alguns dias na Europa que eu preciso quebrar minha promessa. Em seu discurso, ele disse, em relação aos acontecimentos na Crimeia, que:
A Rússia se referiu à decisão dos Estados Unidos de ir à guerra no Iraque como exemplo de hipocrisia ocidental. Agora, é verdade que a Guerra do Iraque foi amplamente debatida não só no resto do mundo, mas também dentro dos EUA. Eu participei desse debate e me opus à intervenção militar. Mas, mesmo no Iraque, os Estados Unidos buscaram atuar dentro do sistema internacional. Não reivindicamos ou anexamos o território iraquiano. Não tomamos posse de seus recursos para nosso proveito. Ao invés disso, terminamos a guerra e deixamos o Iraque para seu povo com um estado soberano capaz de tomar decisões sobre seu próprio futuro.
É difícil acreditar que um redator da presidência poderia conseguir inserir tantas mentiras em tão poucas frases. Mas ele só as escreveu. Obama escolheu dizê-las e, por isso, ele deve ser acusado de fraude premeditada. (Preciso dizer que nada disso é exclusivo a Obama? Praticamente todos os políticos são demagogos. A característica que diferencia Obama dos outros é seu descaramento.)
Vamos contar as mentiras.
A Guerra do Iraque foi amplamente debatida não só no resto do mundo, mas também dentro dos EUA.
Perceba que ele não disse que foi debatida de forma “honesta”, por que um debate não pode ser honesto quando o governo alimenta a imprensa (que, em sua maior parte, estava ansiosa por ser enganada) com mentiras sobre armas de destruição e massa e sugestões de que Saddam Hussein estava conectado aos ataques de 11 de setembro. Todos os figurões da administração Bush que estavam envolvidos com a “segurança nacional” mentiram para o público em dado momento. As pessoas que questionavam os dados “confiáveis” da inteligência eram tachadas de pusilânimes ou fracas em relação a Saddam. Se isso conta como debate aberto, não há diferença entre a administração Bush e qualquer outro regime autrocático.
Os Estados Unidos buscaram atuar dentro do sistema internacional.
Sério? Dentro do direito internacional, Bush não teve permissão para iniciar a guerra contra o Iraque, que não havia ameaçado ninguém, até que tivesse passado outra resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas (a 18ª ou 2ª, dependendo de como você preferir contar). Essa resolução foi proposta mas retirada quando Bush percebeu que seria vetada. Então ele ignorou as regras das Nações Unidas — que proíbem o início de guerras a não ser que sejam em auto-defesa ou autorizadas pelo Conselho de Segurança — e lançou a invasão por conta própria, depois de o Congresso americano carimbar sua “autorização para o uso de força militar” discricionária. Sim, Bush usou outros governos como cobertura, a chamada Coalizão dos Voluntários — de que 3 membros, de um total de 48, de fato enviaram tropas. (A administração Bush era ótima em inventar nomes orwellianos para suas políticas.)
Não reivindicamos ou anexamos o território iraquiano. Não tomamos posse de seus recursos para nosso proveito.
É verdade, mas a administração Bush, em muitos aspectos, bem que tentou. A astuta elite americana já há muito tempo percebeu que o imperialismo à moda antiga estava ultrapassado. As populações subjugadas não aceitariam a situação e elevariam demais os custos da manutenção do império. Assim, um novo imperialismo, mais brando, nascia. Sem mais anexações de territórios, mandados da ONU, protetorados ou colônias de jure. O que não significa que não haveria controle de facto, que era o objetivo do regime de Bush no Iraque desde o primeiro dia da guerra.
Os prepotentes burocratas enviados após a queda de Saddam estavam armados com planos para reconstruir o Iraque de cima a baixo, desde seus semáforos de trânsito até sua bandeira. O petróleo seria “privatizado” e dividido entre as empresas americanas apadrinhadas. (Lembra-se das promessas de que o petróleo pagaria pela guerra? Não pagou.)
Os bilhões de dólares gastos para reconstruir a infraestrutura destruída pelos bombardeios americanos (desde 1991) começaram a encher os bolsos de empreiteiras, sem resultados práticos. Os iraquianos até hoje sofrem com o fornecimento serviços públicos inadequados, como água, eletricidade, esgoto e cuidados médicos.
A administração Bush também esperava construir três duzias de bases militares permanentes (com a concessão de vários contratos lucrativos para empresas americanas) e uma embaixada do tamanho do Vaticano.
Poucos desses planos se tornaram realidade — mas somente porque o primeiro-ministro Nouri al-Maliki, que foi o candidato escolhido pelo Irã, não permitiu. Ou seja, os Estados Unidos não anexaram territórios ou roubaram recursos — mas não foi por falta de tentativa.
Terminamos a guerra e deixamos o Iraque para seu povo com um estado soberano capaz de tomar decisões sobre seu próprio futuro.
A guerra de fato terminou em 2011. Mas não nos esqueçamos de que antes que as tropas (a maioria delas) saísse do país, Obama implorou para que al-Maliki permitisse que as forças americanas permanecessem além da data estipulada no Acordo sobre o Estatuto das Forças (SOFA — Status of Forces Agreement). Al-Maliki — que não precisava mais dos EUA, tendo o Irã como apoio — estabeleceu condições tão absurdas para Obama que a maioria das tropas foram retiradas de acordo com o plano. (O SOFA foi assinado por Bush, mas isso não impede que Obama leve o crédito por “terminar a guerra”.) O governo americano continua a financiar, armar e treinar o exército de al-Maliki, que reprime a minoria sunita da população.
O que foi deixado para o povo do Iraque foi uma catástrofe, como já indicamos. Peter Van Buren, um funcionário do Departamento de Estado que supervisionou a reconstrução de duas províncias orientais do Iraque, chama a Guerra do Iraque de “pior decisão de política externa da história americana”. É difícil pensar num exemplo melhor de ambição cega. Podemos observar o cerco a Fallujah em 2004. Sobre ele, o jornalista Dahr Jamail escreve:
De acordo com a administração Bush naquele momento, o cerco a Fallujah foi executado para combater algo que se chamava de “terrorismo”, mas, do ponto de vista dos iraquianos que eu via de perto, o terror era estritamente americano. De fato, foram os americanos que iniciaram a espiral cíclica de violência em Fallujah quando tropas dos Estados Unidos da 82ª Divisão Aérea mataram 17 manifestantes desarmados em 28 de abril do ano anterior do lado de fora de uma escola que eles haviam ocupado e transformado em posto avançado de combate. Os manifestantes simplesmente queriam que a escola fosse desocupada pelos americanos para que seus filhos pudessem utilizá-la. Naquele momento, como atualmente, porém, aqueles que reagem à violência do estado são rotineiramente chamados de “terroristas”. Governos raramente levam o mesmo rótulo.
Os arquitetos da catástrofe tinham tudo planejado e não era o bem estar dos iraquianos que entraria em seu caminho. Como afirmou Van Buren:
Tudo o que era necessário [pensavam os americanos] era uma ação rápida no Iraque para estabelecer uma presença americana permanente no coração da Mesopotâmia. Nossas guarnições futuras poderiam supervisionar o território e fornecer o poder necessário para esmagar quaisquer elementos desestabilizadores futuros. Tudo isso fazia muito sentido para os visionários neoconservadores do começo do governo Bush. A única coisa que ninguém imaginava era que o elemento desestabilizador principal seriam os próprios Estados Unidos.
A invasão deflagrou uma onda de violência entre sunitas e xiitas que não se via durante o governo de Saddam Hussein e conscientemente apoiada pelo governo dos EUA. A maioria dos sunitas foi varrida de Bagdá. Inúmeros foram mortos ou mutilados; milhões se tornaram refugiados. O incêndio está fora de controle até hoje, alimentado pela opressão e pela corrupção de al-Maliki, que ganhou o epíteto de “Saddam xiita”. Como afirma Van Buren:
Com o colapso de sua estratégia, o desespero e a cegueira histórica da administração Bush levaram ao aumento de medidas extremas: tortura, gulags secretos, rendições, assassinatos com drones não-tripulados, ações extra-constitucionais em casa. Os acordos mais sujos foram firmados para conseguir tirar alguma coisa do que ocorria.
É absolutamente impressionante o mal que foi causado pelos americanos, que esperavam gratidão. O resultado? Van Buren diz:
Até mesmo o normalmente tranquilo Departamento de Estado dos EUA adverte os americanos que viajam até o Iraque que eles “sofrem risco de sequestro […], uma vez que vários grupos insurgentes, incluindo a Al Qaeda, permanecem ativos” e observa que o “guia para empresas do Departamento de Estado aconselha o uso de serviços de proteção”.
É isso que foi deixado ao povo iraquiano pelo poder benevolente dos Estados Unidos da América. Quanto ao respeito à soberania iraquiana por parte dos EUA, a administração Obama agora pressiona al-Maliki para impedir que os aviões dos seus aliados iranianos passem pelo espaço aéreo do Iraque para auxiliar o presidente sírio Bashar al-Assad em sua guerra civil. Essa é a soberania iraquiana.
Isso também sublinha uma das muitas características absurdas da política externa dos EUA (se é que é possível chamá-la de política): enquanto Obama ajuda al-Maliki a combater a al-Qaeda no Iraque, os Estados Unidos dão suporte às filiais da al-Qaeda que combatem Assad na Síria. (Por sinal, a al-Qaeda não estava presente no Iraque antes da invasão do governo Bush.) Novamente, é inacreditável.
Ao menos não é necessário que nós aprovemos as políticas de Vladimir Putin para ver a hipocrisia de Obama ao contrastar a anexação provocada e praticamente sem derramamento de sangue da Crimeia pela Rússia com a agressão dos Estados Unidos ao Iraque. Infelizmente, os americanos que cometeram esses frios assassinatos em massa e toda a destruição da sociedade iraquiana provavelmente têm menor chance de serem levados à justiça do que Putin por seus crimes, digamos, na Chechênia.
(Agradecimentos a Scott Horton por suas proveitosas sugestões.)
Traduzido do inglês para o português por Erick Vasconcelos.