The following article is translated into Portuguese from the English original, written by Charles Johnson.
O artigo a seguir foi escrito por Charles Johnson e publicado em Libertários Confrangidos, 16 de novembro de 2012.
Os libertários de esquerda são por vezes conhecidos por pegarem-se em distinções e definições de palavras. Contestamos o entendimento comum de definições de ‘direitismo’ e ‘esquerdismo’ políticos; questionamos os termos usados em debates econômicos convencionais acerca de ‘capitalismo’ e ‘socialismo,’ ‘acordos de livre comércio,’ ‘propriedade intelectual,’ ‘privatização’ e ‘propriedade privada’dos meios de produção. Temo-nos tornado conhecidos por fazer coisas estranhas com tempos de verbo quando falamos de mercados‘libertados/emancipados’; brandimos subscritos e distinções triplas de um momento para o outro. Mais famigeradamente, os anarquistas de mercado esquerdistas insistem em que defendemos ‘livres mercados’ mas não ‘capitalismo’ – insistindo em que estes não são sinônimos, e traçando aguda distinção analítica entre a forma de mercado das permutas, e os padrões convencionalmente capitalistas de propriedade econômica e controle social.
Há algumas interessantes discussões a terem lugar acerca dessa distinção; hoje, porém, eu gostaria de estender-me numa distinção por vezes deixada de fora na discussão das distinções entre os “mercados” que o libertarismo de esquerda defende e o “capitalismo” que condenamos – dois sentidos diferentes que amiúde são vistos como um só dentro da primeira metade dessa distinção – dentro do conceito de relações de mercado. A distinção entre ambos é crucial, e ambos defensores e críticos da economia de mercado têm-na negligenciado com demasiada frequência; quando falamos de “mercados,” e especialmente “mercados livres,” há realmente duas definições com as quais poderemos estar trabalhando – uma ampla, e outra estreita.
O que é “um mercado,” em última análise? É um conjunto de relacionamentos humanos. E é uma noção com certa história e exemplos bem conhecidos. Nos modernos debates sociais e econômicos, porém, “mercado” assumiu significado muito além de qualquer local de mercadoconcreto. O que foi abstraído, e o que foi mantido como essencial? Os tipos de relacionamentos que provavelmente teremos em mente variam, dependendo de que elementos dos locais de mercado tenhamos optado por focar – em particular, se focamos (1) os elementos de escolha individual, contratos negociados e livre competição; ou (2) os elementos de troca de uma coisa com valor econômico por outra também com valor econômico, e relações comerciais.
O foco em (1) dá-nos um conceito de mercados como livre permuta. Quando os anarquistas de mercado falam acerca de mercados, ou especialmente a respeito de “o mercado,” amiúde queremos dizer a soma de todas as permutas voluntárias – e quando falamos de mercados emancipados, queremos dizer que a discussão abrange qualquer ordem econômica baseada – na medida em que esteja baseada – em respeito pela propriedade individual, permuta consensual, liberdade de associação, e identificação de oportunidades empresariais. Portanto dizer que algo deveria ser “deixado por conta do mercado” é simplesmente dizer que deveria ser tratado como questão de escolha e de acordos negociados entre indivíduos livres, em vez de por governo coercitivo.
Focar (2) dá-nos conceito bastante diferente, o demercados como sendo o nexo de caixa(*). Amiúde usamos o termo “mercado” para referir-nos a uma forma particular de adquirir e permutar propriedade, e às instituições que funcionam nesse contexto – para referir-nos, especificamente, a comércio e negócios com intenção de lucro, tipicamente mediados por moeda ou por instrumentos financeiros denominados em unidades de moeda. Enquanto que a livre permuta diz respeito às condições subjacentes a acordos econômicos e sociais (diz respeito a que estes sejam consensuais, não objeto de coerção), o nexo de caixa diz respeito ao próprios termos do acordo – diz respeito a o assunto ser conduzido em base de pagamento, numa permuta relativamente impessoal de isto em troca daquilo. (* Nexo de caixa é a redução, no capitalismo, de todos os relacionamentos humanos, mas especialmente das relações de produção, à troca monetária. Essa expressão ocorre mais frequentemente nas obras de Karl Marx, e ainda é usa principalmente pelos marxistas. Ver www.encyclopedia.com, cash nexus.)
Ora bem, um dos pontos centrais da economia de livre mercado é que “mercados” nesses dois sentidos estão inter-relacionados de maneira positiva. Quando ocorrem dentro do contexto de um sistema de livre permuta, pode haver papel positivo, essencial até, das relações sociais baseadas no nexo de caixa – produzir, investir, comprar e vender a preços de mercado – na sustentação e florescimento de uma sociedade livre. Embora ligados, porém, eles são distintos. Mercados, tomados amplamente – como livre permuta – podem incluir relações de nexo de caixa – mas também muito mais. A livre permuta pode, de fato incluir muitas características que competem com, limitam, transformam, ou até solapam relações impessoais de nexo de caisa em domínios específicos. O estreitamento dos laços de família é parte de um livre mercado; a caridade é parte de um livre mercado; presentes são parte de um livre mercado; permutas informais e escambo são parte de um livre mercado. Num mercado emancipado nada haveria que proscrevesse as características do cotidiano em nossa economia tal como de fato existe – trabalho assalariado, aluguéis, organizações empresariais organizadas, seguro corporativo, finanças corporativas e assim por diante, todos estariam disponíveis como teoricamente possíveis resultados do mercado.
Também, porém, arranjos alternativos para ganhar o sustento – inclusive muitos arranjos que claramente nada têm a ver com o cotidiano ou o capitalismo como o conhecemos: cooperativas de trabalhadores e de consumidores, clínicas comunitárias grátis e cobertura médica de ajuda mútua são exemplos de permuta voluntária; como também sindicatos de trabalhadores voluntários e informais. E também comunas consensuais, experimentos mais estreitos ou mais amplos com economias de dádiva, e outras alternativas ao capitalismo hoje prevalente. Essa definição ampla de mercados é tão ampla que você poderia, sugestivamente, descrever um mercado plenamente livre, nesse sentido, como o espaço de máxima experimentação social consensualmente mantida.
Embora, porém, liberdade e crescimento de espaços para experimentação econômica e social sejam, de um ponto de vista libertário, algo a ser sempre desejado e defendido, o valor de um nexo de caixa, em relacionamentos econômicos e sociais, depende inteiramente do contexto social dentro do qual esteja inserido. Os anticapitalistas de livre mercado têm destacado o papel central que a intervenção do governo “em favor das empresas” tem desempenhado em dar forma a nossas escaramuças diárias com contas e negócios, sustento e trabalho, mercadorias e consumo. Privilégios políticos a modelos de negócios corporativos, monopólios do governo e mercados cativos estão profundamente arraigados, centralmente posicionados, difusos na economia corporativa realmente existente, e são enormes em escala. Ademais, intervenções interconexas do governo sistematicamente atuam no sentido de restringir, ocupar impedindo a entrada, reduzir a pó ou simplesmente proscrever alternativas menos hierárquicas, menos comerciais, das pessoas comuns ou de setores informais aos mercados manipulados dominados pelas corporações no tocante às necessidades diárias, seja no ganhar o sustento, ou em habitação, ou em saúde, ou em acesso ao crédito, ou em ajuda mútua, seguro e alívio de crises.
Esses atributos profundos, estruturais, da economia empurram-nos para trabalho, habitação e mercados financeirso em termos artificalmente desfavoráveis; eles deformam os mercados para os quais somos impelidos por meio de intensa concentração de recursos nas mãos dos privilegiados, sem alternativas de empresa de pequena escala e comunitárias/de base que pudessem em vez daquilo revelar-se muito mais atraentes. Os libertários de esquerda insistem na importância desse ponto porque, em discussões de economia de mercado, ele é facilmente esquecido, visto equivocadamente apenas como o cotidiano e a vida diária numa economia de mercado. Quando porém ele é negligenciado, com demasiada frequência as pessoas que se opõem às piores iniquidades do sistema de mercado manipulado responsabilizam as injustiças da liberdade, ou do caráter não regulamentado das instituições de mercado; enquanto aquelas que desejam defender os mercados emancipados veem-se na defensiva, tentando defender instituições indefensáveis, quando deveriam estar destacando que as piores características destas são produto das restrições ao mercado.
Quando os esquerdistas reclamam do comercialismo sem peias, acerca do assomo da presença de chefes e senhorios e dívidas em nossas vidas diárias, acerca das crises que os trabalhadores enfrentam todos os meses só para pagar o aluguel ou as contas médicas, temos de entender que eles estão falando de perversidades sociais reais, que nascem dos mercados num sentido, mas não em outro. Estão falando, especificamente, acerca daquilo em que o nexo de caixa é transformado por privilégios políticos e monopólios do governo, quando alternativas competidoras entre empresas, e alternativas competidoras dos modelos de negócios convencionais, foram paralisadas, não puderam entrar por seu espaço ter sido ocupado excluindo-as, ou simplesmente foram tiradas da lei pelas ações do estado corporativo. E eles estão falando acerca de relacionamentos sociais os quais os libertários não precisam, e não devem, gastar qualquer energia para defender. Quaisquer papéis positivos e emancipadores que os relacionamentos de nexo de caixa possam ter no contexto da livre permuta – e é importante que tenham muitos – eles podem simplesmente facilmente tornar-se instrumentos de alienação e exploração quando forçados sobre participantes não desejosos deles, em áreas da vida deles onde eles não os necessitem ou queiram, por meio dos efeitos imeditaos ou indiretos da força do governo e dos mercados manipulados.
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Suponhamos que concedamos, para efeito de argumentação, a modesta narrativa explanatória acerca dos atores dominantes na economia capitalista – das práticas de negócios das corporações da Fortune 500, a nossos confrontos diários com empregadores, senhorios ou corporações financeiras. O tamanho delas, seu domínio competitivo, e grande parte de suas práticas diárias de negócios são, substancialmente, o resultado dos subsídios que recebem, dos privilégios estruturais de que gozam, e das restrições políticas impostas às empresas competidoras, ou mais informais, menos comerciais, alternativas aos negócios delas enquanto tais – competidoras que poderiam contê-las, desalojá-las, ou simplesmente acabar com a necessidade delas para início de conversa. Numa época de socorros a bancos de multitriliões de dólares, não é difícil aceitar que grande parte das fortunas de fato existentes, e do cotidiano na econoia corporativa tal como a conhecemos – incluindo especificamente grande parte do poder abusivo condenado por críticos da Esquerda – não é resultado de atendimento eficaz a necessidades de clientes, ou de atitude implacável na competição no mercado; é, em grande medida, produto de explorar restrições políticas forjadas pela aliança de interesses entre o governo hipertrofiado e as grandes empresas.
Mesmo se você aceitar essa asserção/pretensão explanatória, poderá ainda perguntar-se por que os libertários de esquerda insistem com tanta confiança em que a competição econômica não controlada não apenas alterará a posição desses agentes, talvez com alguma tendência, ceteris paribus, no sentido de riqueza menos concentrada e menos arranjos corporativos ou de índole típica de negócios na vida econômica – como ainda transformará positiva e qualitativamente o panorama econômico. Os libertários de esquerda são radicais e normalmente bastante otimistas quanto a de processos de mercado totalmente emancipados emergirem naturalmente as economias de comunidade/base, alternativas, às quais eles são favoráveis, com mudanças sociais qualitativas de distanciamento de (entre outras coisas) trabalho assalariado, propriedade de terras arrendáveis, propriedade corporativa, grandes firmas e, em certa medida significativa, comércio corporativo como um todo. Essa é uma asserção/pretensão forte, mais forte do que a a asserção apenas explanatória – chamemo-la de asserção preditiva ousada – não apenas acerca de tendências ceteris paribus, mas acerca das perspectivas de surgimento de economias mutualistas a partir de processos emancipados, e de desencadeamento de maiores igualdade econômica, igualdade social, progresso cultural e sustentabilidade ecológica, que os libertários de esquerda prometem conseguir mediante uso de meios libertários.
Obviamente, como já argumentei em detalhe, há uma argumentação simples referente a umaasserção/pretensão de possibilidade de que elas possam surgir. Uma “economia de mercado” no sentido amplo não tem de ser uma economia dominada pelas relações de nexo de caixa, e as pessoas poderiam escolher adotar qualquer número de experimentos radicais. E como os libertários de esquerda têm repetidamente destacado, o fato empírico de uma economia qualitativamente diferente ainda não ter surgidonão pode ser explicado simplesmente pela dinâmica dos livres mercados – não temos um livre mercado, e o modelo dominante atualmente existente é (como já admitimos) dominante precisamente por causa da redistribuição regressiva da riqueza e das restrições políticas que o capitalismo de estado tem imposto.
O caráter ousado da asserção preditiva vem, eu argumentaria, da combinação de dois elementos distintos da posição libertária de esquerda. O primeiro – asserção da tendência econômica – envolve um conjunto de observações empíricas e de desdobramentos teóricos em economia. Ela é, em realidade, nem tanto uma única asserção crítica ou teoria unificada, quanto uma espécie de programa de pesquisa para uma economia de mercado mutualista, dirigindo a atenção para certo número de áreas para efeito de estudo e discussão. Se a asserção explanatória modesta mostra certa tendência, ceteris paribus, rumo a posição mais fraca e mais instável das corporações, e rumo a maior papel para alternativas anticapitalistas, não comerciais, de setor informal ou independentes, então a mais forte asserção de tendência econômica chamaria a atenção para fatores que afetam a força da tendência, e a força ou fraqueza de fatores de efeito igual mas oposto que poderiam impedir, afinal, que ceteris se mantivessemparibus. Áreas que ela destaca para atenção incluem problemas do agente principal e problemas de conhecimento em grandes organizações ou em relacionamentos hierárquicos; a assunção de risco, horizontes de tempo, custos de transação e outros fatores em formas corporativas convencionais e também em modelos alternativos não corporativos de propriedade, gerência e financiamento; as possíveis mudanças em tolerância a risco, gastos de consumo, ou interesse em capital social sob condições de maior liberdade e condições materiais menos precárias; e muitas outras questões relativas a pequisa empírica detalhada que, dentro do âmbito deste ensaio, só posso indicar indiretamente.
Contudo, além do programa de pesquisa empírica que a asserção de tendência econômica sugere, os libertários de esquerda defendem também uma segunda, asserção/pretensão normativa,baseada na possibilidade de relações sociais menos hierárquicas, menos formalizadas e menos comercializadas, e na desejabilidade de campanhas cônscias e concertadas de ativismo social sem estado para provocar as condições sociais que prezamos. Os libertários de esquerda não apenas sugerem que empregadores, hierarquias gerenciais ou empresas comerciais convencionais tenderão a enfrentar certas dificuldades e instabilidades econômicas bem típicas num mercado emancipado; procuramos tornar nós próprios e nossos vizinhos pessoas mais difíceis de lidar, mediante consciamente organizar-nos e nos tornarmos nas alternativas que esperamos ver surgir. Nosso esquerdismo não é apenas um programa de pesquisa, mas um manifesto ativista.
A forma de uma sociedade livre é formada não apenas por tendências e “forças de mercado” anônimas mas também por ativismo social consciente e organização comunitária. “Forças de mercado” não são entidades acima do humano que nos tratam sem consideração a partir de fora; elas são uma forma tornada convenientemente abstrata de falar dos padrões sistemáticos que surgem de nossas próprias escolhas econômicas. Nós somos forças de mercado e, em mercados entendidos amplamente como espaços de experimentação social livre de livre curso, está em nossas mãos, e compete a nós, fazer escolhas diferentes; ou mudar a abrangência das escolhas disponíveis, por meio da prática criativa de ativismo social diligente, emperramento cultural, organização no local de trabalho, greves, boicotes, manifestações imóveis mediante ocupação de área, desinvestimento/descarte, desenvolvimento de alternativas humanas, contrainstituições e prática de solidariedade de comunidade/bases e ajuda mútua.
Isto, obviamente, é apenas enunciar a asserção normativa; apenas esbocei a conclusão, não (ainda, aqui) desenvolvi argumentação em seu favor. A argumentação dos libertários de esquerda favorável ao ativismo social sem estado assenta-se num conjunto de argumentos que só posso tanger de leve no espaço deste ensaio, mas a defesa normativa de um programa esquerdista amplo de ativismo social e econômico pode extrair apoio de (1) considerações éticas ou sociais independentes em favor de maior autonomia e de relações sociais menos hierárquicas, menos privilegiadas, menos rígidas, mais participativas e mais cooperativas. E pode extrair apoio também de (2) argumentos em favor de uma concepção “espessa” de libertarismo, que se abebera e se reforça mutuamente de compromissos integrados com antiautoritarismo radical, e de preocupações acerca de ampla dinâmica social de deferência, privilégio, participação e autonomia.
De qualquer forma, o elemento normativo e ativista das asserções/pretensões libertárias de esquerda acerca de mercados emancipados pode ajudar a explicar a força da asserção ousada preditiva, como segue. As investigações dos anarquistas de mercado debaixo da asserção de tendência econômica dão-nos razões para sugerir, mais ou menos fortemente, que livrar-nos dos mercados manipulados e de monopólios radicais interconexos seria suficiente para trazer à existência certo tipo de socialismo de laissez-faire – a tendência natural dos mercados emancipados bem poderá ser a de a propriedade ficar mais amplamente dispersa e de muitas formas de privilégio social ou econômico concentrado, destituídas dos socorros financeiros e monopólios que as sustinham, desmoronarem em virtude do próprio peso. Contudo, os libertários de esquerda veem os mercados emancipados como caracterizados não apenas por socialismo delaissez-faire, mas também por anticapitalismo empresarial: quaisquer motivos que tenhamos para prever que algumas concentrações de poder econômico ou social possam não simplesmente entrar em colapso por conta própria, o recurso dos libertários de esquerda a ativismo não violento junto às pessoas comuns visa a destruí-las. A força da asserção preditiva, pois, provém de suas duplas origens: ela é tanto uma profecia acerca dos prováveis efeitos da liberdade de mercado quantoproposta radical acerca do que fazer com o que restar.
A pedido dos Libertários Confrangidos, os comentários serão desligados aqui a fim de poderem ser redirecionados para o artigo original.
Artigo original afixado por Charles Johnson em 16 de novembro de 2012.
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.