Por Gary Chartier. Artigo original: A Critique of Randy Barnett’s ‘Accomodating’ Libertarianism’ do 16 de julho de 2024. Traduzido em português por Ruan L..
Randy Barnett provavelmente está na lista curta dos libertários mais influentes na vida pública estadunidense. Sua pesquisa acadêmica acerca do Direito desafiou internamente, nas cortes, o poder estatal. De fato, o mesmo já expôs seus argumentos diante do Supremo. Ele já foi um participante ativo nos debates teóricos intra-libertários por décadas. Além disso, seu livro The Structure of Liberty, que está agora em sua segunda edição, articula um modelo convincente e claro de uma ordem legal sem estado que prestou uma contribuição à teoria libertária no curso de um quarto de século.
Portanto, quando Barnett grita, como faz em seu novo ensaio, que é tempo de atualizar o libertarianismo, as pessoas, ouvindo, entenderão. Todavia, não é claro se devemos abraçar o programa proposto.
O foco principal de Barnett está na forma do libertarianismo em um mundo não-libertário. Mas, ele começa clamando aos libertários, pedindo que os mesmos aceitem fundamentos baseados em concepções de lei natural – algo que não parece nem mais, nem menos relevante em nosso segundo-melhor mundo do que em um totalmente libertário.
Certamente, Barnett está correto em reivindicar que uma teoria tudo-ou-nada da lei natural oferece uma visão convincente da boa vida e que pode ajudar a orientar os desejos pessoais tendo em vista um sentido e o florescimento significante. Ao mesmo tempo, não há razão para esperar que uma teoria política assim ofereça tal visão. Uma noção de lei natural – a minha, a de Roderick Long, aquela que Barnett recomenda (aquela desenvolvida por Rasmussen e Den Uyl) ou outra – pode certamente servir de base para uma concepção rica do florescimento da vida humana e, além disso, uma teoria política convincente. Mas, dificilmente poderíamos esperar tais coisas da própria teoria. O libertarianismo, independentemente de seus fundamentos, certamente possui implicações sobre a vida social fora da esfera política. Os libertários não gostam de ver as pessoas sendo emburradas pelas hierarquias sociais nem mais, nem menos do que eles gostam de ver pessoas sendo aperriadas pelo Estado. Além disso, eles reconhecem os benefícios excepcionais da experimentação social: nós devemos apoiar o ethos libertário mais amplo, e não somente a política libertária.
Libertários como Michael Huemer, desafiando o Estado, deram uma enfâse correta na equivalência moral entre agentes do tipo comum e do tipo estatal, porque o comportamento dos últimos é sistematicamente inconsistente dentro dos limites morais que acreditamos que as pessoas normais deveriam aderir, ao mesmo tempo que não possuem quaisquer coisas como uma justificação especial que este tipo de inconsistência parece requerir. Esta é a razão pela qual me parece menos interessante do que a Barnett o fato de que vivemos em um mundo de Estados. Barnett quer que trabalhemos com eles. Todavia, não é claro o porquê de termos de ignorar o fato de que os estados são exercícios de bandidagem em larga escala. Eles são envolvidos em pilhagem; eles são predadores. Eles são escravistas. Eles são assassinos … Eles são ilegítimos, porque não têm o consentimento daqueles que são governados. Eles são, na verdade, gangues criminosas gigantes.
Acredita Barnett que os estados podem fazer coisas mais ou menos legítimas, que podem ser dignos de ser obedecido em alguns casos em que os mesmos são prováveis protetores de direitos. Todavia, isto não parece ser terrivelmente relevante quando os mesmos estão ativamente engajados em atividades que envolvem violação de direitos e é provável que façam mesmo isso de maneira constante.
De fato, uma gangue criminosa pode fazer coisas úteis. Pode, por exemplo, proteger alguém de outras gangues. Mas, isto não a torna algo além de uma gangue criminosa. Teremos uma razão para cooperar com a mesma, em aguns casos – quando, por exemplo, a mesma oferece realmente uma proteção contra a violência injusta. De qualquer maneira, não teríamos nenhuma razão ou para tratá-la como inofensiva ou legítima, ou para endorsar suas ações; exceto quando estas ações são em si consistentes com as demandas da moral. Não teríamos nenhum dever de obedecê-la.
Sou um anarquista. Mas, alguns libertários que acreditam que pode haver um estado legítimo que pode, e deve, operar sob impecílios morais estreitos – falo de Robert Nozick, Jacob Hornberger ou qualquer um dos vários pensadores da tradição Objetivista – terão toda a razão para tratar os regimes com a mesma suspeita que o anarquista o faz. Eles teriam pouca razão para se juntar a Barnett na aceitação da legitimidade dos regimes que não aceitam regimes morais robustos.
Estados são sistematicamente injustos. Todavia, Barnett gostaria de afirmar uma noção libertária da cidadania. Além disso, visa nos encorajar a reconhecer que há não somente direitos naturais, mas também civis – isto é, direitos que são mantidos em virtude de nosso status como membros de estados particulares. Ele quer tratar os estados como clubes, como organizações de membresia. Assim, ele pode insistir que a “a membresia tem seus previlégios”. A linguagem da membresia, invocando o plano infalível das aulas de moral e cívica de que “the government is us” [em português: “o governo somos nós”, “o governo somos todos nós” ou “nós somos o governo”), obscurece a relação essencialmente adversativa e predatória entre o Estado e aqueles que estão sujeitos ao mesmo. Além disso, a abordagem orientada pela membresia [no original: membership-oriented] arrisca não somente a ignorância do caráter ilegítimo e criminal do modus operandi dos Estados, mas também enconraja as pessoas a buscar o “libertarianismo em um só país”. Este tipo de libertarianismo falha em reconhecer a importância de se respeitar a igualdade de status, de direitos e das pessoas sem se importar com papeis emitidos pelo governo ou com as atividades em que seus governantes não-consensuais estão engajados. Isso pode levar a qualquer lugar: desde restrições à imigração até sanções sobre o comércio internacional. Notemos que Barnett não afirma nada disso. Meu ponto é que o “libertarianismo em um só pais” poderia acolhê-las muitíssimo bem). O “libertarianismo” em um só país” dá as costas ao universalismo moral que é o cerne da tradição liberal, e formula um raciocínio circular (petitio principii, begging the question, circular reasoning etc.) a respeito da autoridade dos Estados de conferir previlégios especiais a membros putativos.
Barnett também implora que repensemos a maneira a qual pensamos as instalações públicas, sugerindo que o uso de algumas delas pode ser corretamente submetido a uma regulação estatal, mesmo que não sejam propriedade do Estado.
Ele defendeu há muito tempo que os limites que versam como os proprietários privados regulam o acesso a “acomodações públicas” (public accommodations) deve ser visto como baseado na common law, ao invés de produtos das inovações legislativas recentes. Todavia, se este é ou não é o caso, não importa. Do fato que algo é um aspecto longevo da doutrina da common law, não se segue daí que isso respeita apropriadamente a autonomia, as liberdades associativas e os direitos de propriedade das pessoas.
Richard Epstein fez uma defesa forte da tese que afirma que as regras legais estadunidenses em meados do século XX, que impediam a discriminação no âmbito do acesso às assim chamadas “acomodações públicas” eram justificadas, dado o pano de fundo de ameaça de uma violência que seria dirigida aos indivíduos que se recusarem a discriminar e dar suprir o desejo amplo, talvez escondido, dos mercantes de ver tais regras impostas uniformemente. (Os mercadores teriam aceitado bem tais regras por um motivo duplo: sensitividade moral e porque a discriminação custaria seus negócios. Todavia, mesmo se Epstein foi bem sucedido em uma referência a um contexto histórico muito específico [este, no caso], daí não se segue que tratar o acesso às acomodações públicas como uma matéria ordinária ou, em geral, sujeita a uma regulação estatal foi demonstrada como razoável sob bases libertárias. A Ética exige que os proprietários permitam o acesso às acomodações sobre um fundamento não-preconceituoso. Entretanto, a Ética também exige que a força física não seja usada contra o corpo de qualquer pessoa, ou suas posses, tendo em vista previnir, findar ou remediar uma conduta imoral que não involve em si mesma força ou fraude.
Barnett sugere que os libertários devem se preocupar com o poder corporativo, e ele nos convida a imaginar o uso terrível no qual tal poder poderia ser exercido. Certamente, ele está correto em sua profunda preocupação por causa dos abusos nos quais algumas empresas poderiam se engajar. Todavia, questiono-me se estes abusos, quando eles ocorrem em nosso mundo, são realisticamente concbíveis de maneira separada das ameaças governamentais, de um lado (como aquelas contra as redes sociais); e os previlégios legalmente garantidos (notavelmente aqueles que se referem à propriedade intelectual – talvez um exemplo de um direito civil Bernettiano), de outro. Admira-me, também, se os efeitos sistêmicos da interferência licenciadora do Estado, da maneira que Barnett parece visar, não levaria à expansão posterior do poder estatal ao invés do aumento da liberdade.
Barnett sugere, ao contrário de seu eu mais jovem, que ele está hoje convencido que os libertários deveriam estar mais preocupados com a liberdade que com a propriedade. Todavia, penso eu que deveríamos rejeitar tal dicotomia. Um esquema genuinamente justo dos direitos de propriedade determina os contornos aos quais a liberdade – especificamente, o subconjunto da liberdade reivindicável pela força – se refere.
Deixando de lado uma breve referência a uma versão vigorosa de um pensamento de lei natural, o manifesto de Barnett parece ser primariamente um grito por uma visão mais acomodante do poder estatal pelos libertários. O próprio compromisso de Barnett com a liberdade é indubitável, tal qual sua credibilidade acadêmica e sua envergadura intelectual. Mas, suspeito que, mesmo no segundo melhor mundo que nós nos encontramos, podemos buscar a liberdade sem fazer as consessões que Barnett gostaria de encorajar.