Olhando para as notícias acerca da pandemia de COVID-19 (ou coronavírus), é difícil não concluir que se trata de uma daquelas situações salva-vidas nas quais não é possível gerir uma crise sem recorrer à coacção social em larga escala. A China e a Coreia do Sul parecem ter virado a maré no que toca à pandemia, com cada vez menos casos a cada dia que passa. Mas concretizaram-no recorrendo a draconianas medidas de controlo – proibição das viagens, restrição dos ajuntamentos públicos, e confinamentos.
Mas vale a pena darmos um passo atrás e analisarmos como chegamos a este salva-vidas para começar.
As pandemias, acima de tudo, são resultado directo da conectividade. A peste bubónica, que devastou a maior parte da Europa, do Médio Oriente e da China no século XIV, era uma doença frequente com origem nas ratazanas que se encontrava circunscrita às estepes da Ásia Central até que as caravanas da Rota da Seda a trouxeram para zonas densamente povoadas. Na nossa era extremamente conectada, as pandemias estão a tornar-se num fenómeno recorrente de anos a anos. A mais mortífera até à data foi a Influenza de 1918, mas neste século já tivemos a SARS, a MERS, o ébola e a actual pandemia de coronavírus.
As cadeias de logística globalizadas, que unem as redes de distribuição da produção e depois remetem os seus produtos das indústrias no exterior para as prateleiras do comércio a retalho do Norte Global, são essencialmente criações do Estado. De acordo com Alfred Chandler (A Mão Invisível), sem os fundos de terras do governo dos EUA e outros subsídios ferroviários à criação de um sistema de alto volume continental de linhas centrais, e sem estas as redes de retalho e venda por atacado a nível nacional não teriam sido possíveis. E foi a criação deste mercado nacional unificado que permitiu a consolidação da indústria em grandes empresas nacionais. Michael Piore e Charles Saber argumentam (no A Segunda Revolução Industrial) que sem tais políticas para fazer pender a balança para o lado da centralização da produção em massa, a produção americana muito provavelmente teria sido distribuída por vários distritos industriais de âmbito local.
A larga escala de exportações de capital ocidental e deslocação da produção industrial para o Sul Global, ao longo das últimas quatro décadas, foi activamente facilitada pelo Estado em apoio dos interesses capitalistas. A principal função tanto do apoio externo como dos empréstimos do Banco Mundial, há décadas, tem sido a subsidiação das infra-estruturas de bens essenciais e dos transportes sem os quais não teria sido possível a deslocalização lucrativa da produção. E a deslocalização da produção para países com ordenados baixos depende em grande parte das leis de patentes e marcas comerciais – peças centrais de praticamente todos os “Acordos de Livre Comércio” alguma vez assinados pelos governos de todo o mundo – que atribuem às empresas multinacionais o monopólio legal sobre a venda dos bens produzidos sob contrato por agências de emprego independentes. E os contentores que transportam todos esses bens deslocalizados têm um rendimento muito maior graças ao facto de a Marinha dos EUA manter essas vias marítimas abertas à custa do dinheiro dos contribuintes.
Na realidade, o foco central da política externa dos Estados Unidos – e do resto dos países capitalistas industrializados – tem sido a imposição mundial da conectividade. Os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial em grande parte por os analistas políticos de FDR terem determinado que a economia dos EUA dependia – num máximo absoluto – dos mercados e recursos de uma “Grande Área” que incluía a maior parte do Sul Global e a política da “Grande Esfera de Co-Prosperidade do Grande Oriente” por parte do Japão ameaçar retirar boa parte dessa área do mercado global. A ordem americana do pós-guerra foi concebida para assegurar que os recursos e os mercados do anterior mundo colonial continuavam integrados nas economias empresariais do Ocidente, e que nenhuma grande potência voltaria a ameaçar retirar uma parte relevante do mundo tornando-a numa autarcia.
O mesmo vale para a indústria da aviação e para a actual escala das viagens mundiais. Todos os dias milhões de pessoas à volta do mundo voam em transportadoras aéreas comerciais – uma indústria criada essencialmente pelo Estado. Nos Estados Unidos a infra-estrutura da aviação – aeroportos, controlos de tráfego aéreo, etc. – foi originalmente criada às custas do contribuinte. E os jactos civis tamanho jumbo só se tornaram economicamente viáveis graças ao programa de bombardeiros pesados da Guerra Fria de final dos anos 40, que tornaram lucrativas matrizes extremamente caras.
Resumindo, o que apodamos de “globalização” tem tanto de engenharia social estatal como os Planos Quinquenais de Estaline, e não teria sido possível sem esta. E da perspectiva da eficiência, a maior parte da sua conectividade não passa de uma engrenagem ao estilo de Rube Goldberg. A esmagadora maioria dos bens que compramos seriam produzidos de modo muito mais eficiente em pequenas fábricas, nas comunidades ou regiões onde vivemos. E tal teria sido com quase toda a certeza o caso se não fosse pela engenharia social que descrevi acima.
Note-se que não o circunscrevi aos países capitalistas industrializados ocidentais. A Nova Rota da Seda da China está prestes a integrar a Ilha Mundial Eurásica e em certa dimensão a África numa escala que faz corar os anteriores esforços imperialistas por parte do Ocidente.
Não tenho interesse em mergulhar nos debates da Esquerda Twitter entre marxistas-leninistas e socialistas libertários sobre se a China é capitalista ou socialista, ou se será capaz de ser imperialista. Quaisquer que sejam os motivos ideológicos ou de classe do Estado chinês, o objectivo operacional da sua tentativa de integrar a massa Eurásica é a conectividade por intermédio de redes de logística de grande volume e infra-estruturas de transportes que alcançam metade do globo. E estou certo de que para um vírus qualquer comboio, camião ou contentor são indistinguíveis sejam estes capitalistas ou socialistas.
Portanto foi o próprio Estado que nos colocou precisamente no tipo de situação de emergência que, de igual modo, só as medidas de um Estado de Emergência serão suficientes para mitigar.
Alguns Estados, claro está, são menos competentes que outros. Bem menos. Desde que o coronavírus chegou aos Estados Unidos, o comportamento de Trump tem sido plenamente consistente com a hipótese de que será mesmo uma máquina enviada do futuro pela Skynet para exterminar a raça humana. Reagiu à pandemia da mesma maneira que o presidente da câmara Vaughn reagiu aos tubarões no Tubarão. Várias testemunhas afirmam que este não só minimizou a gravidade da crise, mas que desencorajou activamente que se fizessem testes nos primeiros dias, pois um número baixo de infecções seria muito melhor tanto para o mercado da bolsa como para a probabilidade de ser reeleito.
A administração Trump travou a utilização de um teste ao coronavírus aprovado pela Organização Mundial da Saúde. Travou os esforços da Dr. Helen Chu, investigadora de vírus da gripe em Seattle, de redireccionar um kit de teste gripal para o coronavírus. A taxas de testes por milhão de pessoas nos Estados Unidos é de uma ordem de magnitude muito inferior à da China, da Coreia do Sul e da Itália. Agora Trump está a proibir, por intermédio de uma ordem executiva, a utilização de material médico fabricado no estrangeiro.
À parte da negligência descarada de colocar em perigo milhões de vidas a bem da sua reeleição, temos aqui uma incompetência numa escala capaz de criar o seu próprio horizonte de eventos. A supervisionar oficialmente a reacção nacional está o jovem criacionista Mike Pence, com o genro de Trump, Jared Kushner, a cumprir o papel de consultor não oficial. E sempre que Trump abre a boca, dá mais uma falsa garantia ou algum conselho que faz com que toda a comunidade epidemiológica se arrepie.
Mesmo na China, que aparenta ter obtido o maior dos sucessos em virar a maré, o encobrimento inicial agravou certamente as coisas mais do que seria de esperar. Contudo, a prevaricação do Estado chinês empalidece quando comparada com a da administração Trump, que não conseguiria lidar ainda pior com esta crise nem que estivesse deliberadamente a tentar maximizar o número de baixas.
E mesmo na China, os esforços do Estado foram de arrasto atrás das redes auto-organizadas entre pares, integrando-se em absoluto nestas. Normalmente é o que sucede em todas as sociedades assoladas pelo desastre – tema do romance Um Paraíso Construído no Inferno de Rebecca Solnit. Willow Brugh, académico estudioso das reacções dispersas aos desastres, também tem muito a dizer acerca disto.
Portanto, mesmo extrapolando que a coacção social em grande escala aparenta ter estabilizado as situações na China e na Coreia do Sul, foi também a coacção social em grande escala – séculos desta, à escala global – que criou o conjunto artificial de circunstâncias às quais os governos agora reagem.
Mais, a coacção social em larga escala está a agir de muitas maneiras para impedir reacções não-estatais à pandemia, e a deixar-nos mais vulneráveis a esta.
Na Reason, Nick Gillespie confiantemente afirma que “temos todas as razões para acreditar que os americanos comuns estão a fazer tudo o que está ao seu alcance para minimizar a disseminação da doença, desde serem muito cautelosos com a higene [sic] até ao ‘isolamento social’ voluntário e à minimização dos contactos.” Mas na realidade, e muito mais até que noutros países ocidentais geridos pelo sistema de ordenados e senhorios, as exigências dos empregadores e dos senhorios são um entrave activo ao dito isolamento social.
A vasta maioria dos americanos que tentam lidar com esta pandemia depara-se com a quase impossibilidade de cumprir realmente com os conselhos de mero senso comum. Muitas pessoas têm empregos precários dos quais serão despedidos caso tirem dias por razões de segurança, mesmo que se pudessem dar a esse luxo. Mas é um ponto discutível; a vasta maioria dos trabalhadores com baixos rendimentos – no tipo de serviços que envolvem servir comida ou vender roupa ao público, cuidar de doentes e idosos, etc., e constituindo assim os com maior risco de disseminar uma doença infecciosa – não têm direito a baixas pagas, e teriam que optar entre irem trabalhar doentes ou serem despejados das suas casas.
De qualquer modo, visto que o Estado nos encurralou num canto no qual o Estado terá provavelmente que desempenhar algum papel para nos retirar do dito canto, as reacções não-estatais ainda desempenham um papel crucial na mitigação dos danos que resultarem da inepta reacção estatal.
Uma das formas mais importantes – possivelmente a mais importante – de controlo de danos é o apoio mútuo para aqueles que não possam pagar a sua auto-quarentena. Tal inclui, obviamente, organizar apoio financeiro e material para aqueles que não têm direito a baixa médica. Mas inclui também campanhas massivas de pressão sobre empregadores, senhorios e fornecedores de bens essenciais, bem como boicotes e manifestações de solidariedade para com aqueles que forem despejados, aos quais se exija que vão trabalhar doentes ou que não recebam dispensas remuneradas. Podem encontrar muitas recomendações no que diz respeito ao apoio mútuo e à solidariedade neste belo documento comunitário.
Mas dado aquilo com que lidamos, o âmbito das reacções imediatas à actual pandemia encontra-se na melhor das hipóteses extremamente limitado, consistindo a maior parte de mero controlo de danos. Em última instância a nossa reacção deve centrar-se em acções de longo prazo para prevenir que este tipo de coisas não ocorra novamente, ou para reduzir a nossa futura vulnerabilidade às mesmas.
Tais acções incluem a relocalização das economias, migrar a produção do sistema de ordenados para o da economia social e comunitária e construir redes de apoio mútuo de alta capacidade para diluir os riscos e os custos. Precisamos de uma economia que esteja menos conectada, menos coisas a chegarem-nos de milhares de quilómetros de distância e com menos pessoas a andar de aviões a jacto todos os dias, e na qual as pessoas com trabalhos que não sejam essenciais possam ficar em casa e distanciar-se sem a autorização de um patrão e sem correrem o risco de se tornarem sem-tecto. As coisas que temos que fazer, num esforço de longo prazo para construirmos uma sociedade pós-capitalista e pós-estatal, são praticamente as mesmas coisas que provavelmente teremos que fazer numa proporção cada vez maior devido às necessidades decorrentes da actual crise.
No seu A Crise da Acumulação James O’Connor escrevia que, durante os imprevistos económicos e períodos de grande desemprego ou subemprego, por necessidade os trabalhadores satisfazem na mesma as suas necessidades recorrendo à economia doméstica e informal. E em alturas de crises estruturais permanentes, como as que o capitalismo tem experienciado nas últimas décadas, algumas dessas mudanças tendem a ser permanentes.
Ao mesmo tempo, as recentes crises económicas têm coincidido com os progressos tecnológicos de ferramentas baratas de pequena escala, apropriadas para redireccionar a produção para a economia social. Já nos anos 70, intelectuais anarquistas como Colin Ward e Karl Hess tinham defendido as oficinas de bairro com maquinaria combinada com o intuito de restaurar aparelhos já defuntos. Keith Paton, num panfleto dirigido ao Sindicato dos Requerentes do Reino Unido em 1972, sugeria que os desempregados utilizassem estas oficinas como fábricas comunitárias para produzirem para o seu próprio consumo.
Nas décadas desde então o preço das ferramentas com controlo digital destinadas a pequenas oficinas caiu numa ou mais ordens de magnitude, em paralelo com um acréscimo semelhante no que diz respeito às suas capacidades. A revolução dos criadores desde a viragem deste século inclui, entre outras coisas, o Conjunto de Construção da Aldeia Global – todo um ecossistema com ferramentas de produção livre desenvolvidas pelo grupo Ecologia Livre no seu site demonstrativo Factor & Farm. Alguma da maquinaria de bancada (mesas de corte, routers, impressoras 3D, etc.) estão dentro do âmbito de alcance dos custos de uma oficina de bairro; outras ferramentas, mais caras (incluindo a fornalha de indução, a fundidora de alumínio, etc.) provavelmente iriam requerer uma divisão de custos por parte de uma federação de oficinas. Mas qualquer uma delas é muito mais barata que as suas contrapartes comerciais, e em conjunto são capazes do mesmo tipo de produção industrial que outrora requeria uma fábrica de produção em massa com um custo superior a um milhão de dólares.
Fora isso, a maior parte das pessoas já possui uma variedade de aparelhos e ferramentas domésticas subaproveitadas – ferramentas eléctricas, máquinas de costura, etc. – estas, em conjunto com as dos seus vizinhos, poderiam substituir grande parte das compras necessárias por via do nexo do dinheiro. Criando bibliotecas de ferramentas para partilhar o equipamento subutilizado e poupar o dinheiro das duplas aquisições; produção doméstica para a vizinhança (micropadarias, microcervejeiras, trabalhos eléctricos e de canalização, etc.) utilizando a capacidade das ferramentas que as pessoas de qualquer modo já possuem; partilha de carros cooperativa e não-capitalista, cuidar de crianças, de idosos, etc.; jardins comunitários e paisagismo comestível; tudo isto no seu todo pode reduzir a necessidade do fluxo de rendimentos por via de ordenados de forma relevante e criar uma boa margem de independência.
A história de pessoas desempregadas empregarem as suas habilidades e ferramentas para trabalharem uns para os outros tem origem (no mínimo) nos artesãos em greve na Grã-Bretanha dos primórdios do século XIX que montaram uma produção independente e trocavam os seus bens por intermédio de um sistema de notas de trabalho. Entre outros exemplos de práticas semelhantes encontramos a Organização Cooperativa de Apoio aos Desempregados e a Associação de Intercâmbio dos Desempregados nos Estados Unidos da era da Depressão.
O mesmo vale para a junção de recursos contra a calamidade e ao fornecimento de apoio material aos desempregados por via da economia solidária. Durante e logo após o crash de 2007-08, várias pessoas propuseram contra-instituições como almofada de apoio aos desempregados e subempregados para fazer frente aos efeitos mais nefastos da Grande Recessão. Dougald Hine e Nathan Cravens propuseram uma multitude de organizações apoiadas pela comunidade: espaços comuns de trabalho como Media Labs e Fab Labs, e recursos para auto-apoio como jardins comunitários associados a Cafés Abertos livres. Na altura propus que se expandisse o modelo de modo a incluir a habitação: um esqueleto de coabitação barata, livre, talvez seguindo o modelo das pousadas da YMCA, parques de caravanas com abastecimento de água e electricidade, ou o campo gerido por migrantes propriedade do governo n’As Vinhas da Ira.
Tudo isto tem a seu favor uma grande eficiência. O capitalismo cresceu ao longo dos séculos num ambiente de terra e recursos artificialmente baratos resultantes da anexação ou da colonização, da socialização de custos e riscos e de uma ampla subsidiação dos desperdícios, com um modelo industrial concebido para maximizar a produção e incluir a obsolescência programada para evitar uma duração ideal. Está a afogar-se na sobrecarga administrativa e está assolado de problemas de informação e incentivos que resultam da ausência dos proprietários e do controlo hierárquico. Na contra-economia, por outro lado, todos os benefícios são assimilados por aqueles que contribuem para o esforço e para o conhecimento em vez de irem para aqueles que destes extraem rendas. Uma vez que é auto-gerida e organizada em grande parte à base de pares sem necessidade de autorizações, a sobrecarga administrativa é praticamente nula. E uma vez que, tal como um velho ferreiro, se vê obrigada a maximizar os resultados com base nos escassos recursos materiais que tem à sua disposição, a contra-economia pode prosperar com base no desperdício que foi descartado pela economia capitalista.
A maior eficiência da contra-economia comunitária permite às pessoas, nas palavras de Vinay Gupta, “safarem-se por baixo”.
Podíamos utilizar o método “fazer mais com menos” de Fuller para atingir a auto-suficiência com um custo de capital muito inferior à “compra por cima”. Uma abordagem integrada e inclusiva que pondere todos os sistemas para atingir um estilo de vida sustentável – a habitação, as ferramentas de jardinagem, os sistemas de monitorização – todas essas coisas foram concebidas com base em Fuller e pensadores mais tardios, todos eles inspirados pela eficiência. A indolência – o desperdício – dos nossos estilos de vida anteriores estava a consumir 90 porcento da mão-de-obra produtiva só para se aguentar.
Uma conta combinada de mil dólares mensais de combustível equivale à nossa energia vital a ir pelo cano abaixo porque o sítio onde vivemos é uma porcaria, a nossa vida repousa sobre o ventilador de lixo que é o desperdício do dinheiro, e que é o desperdício do tempo. O nosso carro, a nossa casa, a quantidade dos nossos impostos que o governo gasta em combustível, em electricidade, em desperdícios de calor… todo o tempo que perdemos a ganhar esse dinheiro é desperdiçado na medida em que esses sistemas são ineficientes, aquém das melhores práticas.
Numa escala mais ampla, os novos movimentos municipalistas em Barcelona, Madrid, Bolonha, Utreque e Preston na Europa, em Cleveland e Jackson nos EUA, e movimentos equiparados como o movimento zapatista em Chiapas e os resquícios de bolivarianismo dos colectivos comunitários dos bairros na Venezuela, estão a trabalhar activamente na construção de economias integradas por pares de âmbito local.
Uma economia destas, plenamente desenvolvida ao nível comunitário, poderia incluir micro-fábricas e espaços para resoluções, fundos de terras com cooperativas de habitação baratas construídas quer a partir de matérias-primas locais e nacionais ou com novas técnicas ultra-baratas como a impressão em 3D, um sistema de serviços de transporte organizados numa cooperativa, internet municipal gratuita sem fios, espaços livres de coworking e espaços comunitários para roulotes de comida, com moeda comunitária, etc.
Entretanto, a vulnerabilidade do capitalismo globalizado por-uma-unha-negra bate-se contra o próprio capital com um pacote de incentivos radicalmente diferente. E se as redes de logística globalizadas são uma das principais causas da pandemia, também estão extremamente vulneráveis a esta. Para dar um par de exemplos, diminutos em si mesmos, John Feffer na Foreign Policy in Focus relata uma conversa entre um arquitecto que diz ter ficado sem acesso ao seu fornecedor de carpetes chinês. E na loja de jardinagem e sementes aqui da minha zona que também vende outros produtos para auto-suficiência, disseram-me que até ver estavam sem acesso a fogões de madeira exactamente pela mesma razão.
O rompimento e quebra intermitente das redes globais de abastecimento e distribuição provavelmente irão levar a um grau considerável de relocalização económica. Como escreve Andrew Nikiforuk na The Tyee:
Vista da perspectiva da sobrevivência à crise climática, a pandemia traz-nos algumas boas notícias. A redução da actividade económica na China, o principal consumidor de petróleo do mundo, já resultou numa queda de 25 porcento da emissão de gases estufa e em céus azuis. O tráfego de navios de contentores no Pacífico caiu para metade para 100 viagens mensais. As vendas de automóveis caíram 80 porcento e as exportações caíram quase 20 porcento.
Neste aspecto, o vírus está a preparar-nos para aquela que bem pode ser a nova realidade. Para lidarmos a sério com a emergência climática, temos que abrandar a actividade económica, reduzir o comércio, relocalizar as economias e restringir severamente as viagens.
Por qualquer padrão legítimo de eficiência, as redes globais de logística que se estendem desde fábricas em Shenzhen até às prateleiras do Walmart na Califórnia são completamente irracionais. Muita da actual maquinaria utilizada nas oficinas chinesas – ferramentas CNC de utilização comum – é perfeitamente capaz de produzir num modelo industrial distrital para um mercado local. A única “eficiência” que as redes de abastecimento transoceânico cumprem é a do acesso a mão-de-obra barata. Caso contrário o mais eficiente seria aquelas oficinas ignorarem as patentes e os direitos de marca das empresas ocidentais para as quais foram contratadas e produzem para continuarem a produzir os mesmos bens sem os logótipos da Swoosh e da Apple, e continuarem a vende-los – a um preço que reflicta o seu real custo de produção, sem a carga das várias centenas percentuais pagas em direitos de autor – à população local. Oficinas semelhantes, nas economias produtivas relocalizadas, podiam produzir directamente para as comunidades nos Estados Unidos.
Se bem me lembro, houve rumores de que a liderança chinesa em 2008 ponderara seriamente em fazer tais mudanças. Talvez desta vez vão em frente. À medida que as redes de logística se tornam imprevisíveis e quebráveis, chegou certamente a altura para aqueles que como nós estão nesta ponta dessas redes de ponderarem em reconstruir a indústria num âmbito local.
E todas aquelas coisas que foram reiteradamente descartadas como sendo impossíveis ou inviáveis durante anos, as incontáveis regras que eram consideradas como invioláveis, foram radicalmente reavaliadas e revistas só nestas últimas semanas. Durante toda a vida nos disseram que esta escassez artificial, esta irracionalidade, era mera parte da natureza das coisas e que não podia ser mudada. E agora, com o golpe de uma caneta, livraram-se delas.
Por exemplo, depois de vinte anos de falsas promessas quanto ao teletrabalho e as videoconferências, o potencial destas está finalmente a ser adoptado como medida de segurança pública. Todos os empregos que podiam ter sido feitos por via das redes de fibra óptica durante todos estes anos em vez de cara-a-cara, mas não o foram, agora estão a ser feitos dessa maneira ou prestes a sê-lo. As comunidades locais estão a impor uma moratória sobre as rendas.
Seria agradável se as pessoas se habituassem a tais medidas “extraordinárias” e de “emergência”, que sempre foram concretizáveis, e estas se tornassem no novo normal. Não aceitem um regresso ao status quo.
A pandemia do coronavírus, e o há muito devido decrescimento económico que gerou, são eventos raros cujo desfecho final está ainda por se conhece. Um número significativo de sistemas extremamente interconectados e extremamente complexos estão a ser dissolvidos e as coisas estão no ponto certo para se recristalizarem numa estrutura completamente diferente.
A última crise desta magnitude foi a Grande Recessão de 2008, e saímos desta de um modo muito para lá daquilo que conseguíamos imaginar na altura. Muitos jovens idealistas no final dos seus 20s votaram em Obama com base na sua retórica aparentemente progressista, só para serem traídos. Em vez de resgatar os endividados, os trabalhadores e os consumidores, de reestruturar a economia, este resgatou os bancos e as empresas do ramo automóvel e restaurou o status quo. A geração que testemunhou esta traição acabou por criar a espinha dorsal do Occupy, do As Vidas Negras Contam e do NoDAPL [movimento de oposição aos oleodutos – NDT], e a abastecer as insurreições de Sanders em 2016 e este ano. Viveram uma década de trabalho precário, de estágios não remunerados, sem seguros de saúde e a ter de voltar a viver em casa dos pais. Foram alvo de chacota e desinteresse por parte do sistema neoliberal, e viram duas tentativas de esforço para trabalharem dentro do sistema por via do sistema de eleições primárias do Partido Democrata serem sabotadas.
Com base em todos os indícios, dirigimos-nos para outra Grande Recessão ou pior. Praticamente toda a gente com menos de 40 partilha a mesma experiência formativa que foram as traições consecutivas por parte do sistema. Se a última crise nos deu o movimento Occupy e a insurreição de Sanders, suspeito que esses movimentos nada serão quando comparados com a reacção que virá desta vez. Estamos fartos que nos lixem.
Então, temos o rompimento de todos estes sistemas complexos, e temos uma gigantesca proporção do público saturado disto e dispostos a forçar a criação de algo novo. Que tipo de nova configuração irá emergir quando se reestabelecer alguma forma de ordem? Ninguém sabe, embora eu creia que os temas que debati acima quanto à relocalização económica e à produção directa para uso entre pares sejam uma suposição tão válida como qualquer outra no que diz respeito ao direccionamento geral de qualquer mudança. Seja como for estamos num ponto de mudança, e é altura de pressionarmos o mais possível de modo a termos algum efeito sobre um desfecho positivo.
Que forma pode tomar esta pressão?
Li recentemente uma obra de ficção acerca de um ponto de viragem causado por uma crise económica, o Nova Iorque 2140 de Kim Stanley Robinson. Para vos descrever o ambiente, milhões de precários que viviam numa zona inundada da Baixa de Manhattan viram-se devastados por um furacão, incontáveis milhares mudaram-se para campos de emergência para refugiados montados no Central Park. Cada vez mais impacientes com a escassez de comida ou falta de saneamento básico, as multidões em fúria migram para a Alta de Manhattan, onde prédios residenciais de luxo com centenas de andares de altura estão na sua maior parte vazios, mantidos como investimentos imobiliários por parte de senhorios ausentes. Empresas de segurança mercenárias que trabalham para esses senhorios ausentes abrem fogo sobre os refugiados climáticos que tentam procurar abrigo nestes prédios vazios.
Amelia Black, uma popular figura da comunicação social cujo programa é seguido por centenas de milhões de telespectadores na nuvem, mostra filmagens aéreas da devastação causada pelo furacão, dos prédios de luxo vazios e dos mercenários a disparar sobre as multidões de desamparados. Depois diz isto:
Sabem que mais? Estou farta dos ricos. Estou mesmo. Estou farta que giram o planeta todo em seu favor. Estão a dar cabo dele! Por isso acho que o devíamos resgatar, e tomar conta dele. E tomar conta uns dos outros como parte disto. Acabaram-se as migalhas. Lembram-se daquele Sindicato de Chefes de Família de que já vos falei? Julgo que chegou a altura de todos se juntarem a esse sindicato, e desse sindicato entrar em greve. Uma greve geral. Acho que devia haver uma greve geral. Agora. Hoje…
Por greve de chefes de família digo que devem deixar de pagar as vossas rendas e hipotecas… talvez também os vossos empréstimos de estudante e seguros de saúde. Qualquer dívida privada que tenham contraído só para que a vossa família tivesse segurança. Para fazer frente às necessidades diárias da existência. O sindicato declara toda essa dívida como hedionda, como uma espécie de chantagem que exercem sobre nós, e exige que seja renegociada… Por isso, deixemos de a pagar e consideremos tal como uma Jubilação? … É um nome antigo para este tipo de coisa. Depois de iniciarmos esta Jubilação, até haver uma reestruturação que perdoe a maior parte dessa dívida, não vamos pagar nada.
Podem achar que deixar de pagar a hipoteca vos mete em sarilhos, e seria verdade se fossem os únicos, isso podia acontecer. Mas se todos o fizerem, torna-se numa greve. Em desobediência civil. Numa revolução. Por isso têm que participar todos. Não é muito difícil. Basta não pagarem as vossas contas!
Estamos a ser assolados por uma pandemia global que é resultado directo de um sistema capitalista global hiperinterconectado que nos foi imposto pelos Estados. Além de matar milhões de pessoas, obriga milhões das mais vulneráveis a escolher entre o contágio ou o desemprego e a perda de casa. E está a espoletar uma crise económica que muito certamente irá resultar em desemprego e perdas de casa numa escala ainda maior. A gestão desta crise, o acréscimo de um conjunto de circunstâncias artificiais criadas pela violência do Estado, bem poderá implicar um certo grau de acção inevitável por parte do Estado.
Por isso façam o que for preciso para ultrapassar isto. Aproveitem todo o apoio que o Estado vos ofereça. Cumpram as medidas estatais que vos pareçam de senso comum, como quarentenas e restrições aos grandes ajuntamentos. Se a pressão por parte do Estado fizer com que o vosso empregador vos ofereça uma baixa paga, ou o governo local imponha uma moratória à vossa renda, aproveitem o que conseguirem.
Mas deixem que todos os outros expedientes que adoptarmos para sobreviver a esta crise, para nos ajudarmos uns aos outros a sobreviver, se tornem nas sementes de uma sociedade na qual possamos viver sem medo de que isto se repita.