Sempre que pessoas como Jeff Bezos ou Elon Musk são atacadas pela esquerda devido ao seu parasitismo, o desfecho é tão incerto – e muito mais súbito – quanto o regresso do cometa Halley. Sem falha, vemos um enxame de vozes conservadores, libertarianas e centristas – desde as peças de opinião financiadas pelos Koch e as colunas de Stossel, passando pelos comentários mordazes no “New York Times” e terminando nas reacções de lambe-botas no Twitter – a realçarem que Bezos e Musk criam “mais valias”. Portanto iremos dar uma vista de olhos às mais valias que criam, vamos lá?
A ideia para os carros eléctricos ou para as baterias de iões de lítio surgiu de Elon Musk? Ele próprio terá concebido o design de uma versão aperfeiçoada, ou até mesmo de um qualquer componente aperfeiçoado, para qualquer uma destas coisas? Não. A única coisa minimamente original que podemos associar ao génio criador pessoal de Elon em qualquer perspectiva real é um inviável e incrivelmente estúpido sistema de túneis que não impressiona ninguém além dos autarcas citadinos e dos sicofantas do Twitter.
Todo e cada um dos carros que sai de uma das oficinas Tesla, todos os componentes destes – até mesmo todas as oficinas Tesla, já agora – foram construídos por outra pessoa que não Elon Musk, utilizando materiais que já tinham sido concebidos por outras pessoas que não Musk e em última instância escavados do solo por outras pessoas que não Musk. A ideia de tornar um veículo eléctrico mais eficiente, de tornar uma bateria mais eficiente ou de produzir ambos de modo mais eficiente, era uma ideia que surgiria a qualquer pessoa por mais remota que fosse a sua familiaridade com os carros eléctricos já existentes. E embora ideias mais específicas quanto à forma sob a qual se podem concretizar estes objectivos só possam ocorrer a um número de pessoas muito mais diminuto já associadas à indústria dos carros eléctricos, até me atrevia a apostar que praticamente todos os engenheiros de design que trabalham para a Tesla têm ideias mais concretas sobre esta questão do que Musk.
O mesmo vale para Bezos. Os armazéns automatizados com utilização de rastreios RFID, as cadeias automatizadas de logística e o comércio online eram tudo coisas que já existiam antes da Amazon. Muito do seu modelo de negócios já tinha sido explorado em primeira mão pela Walmart – não pela família Walton, mas pelos engenheiros e especialistas em logística contratados por estes – e unir isto ao restante não era propriamente uma visão única no século por parte de um génio visionário do nível de Jeff Bezos.
Não. Não só o trabalho da produção, não só os materiais, não só o design, mas até mesmo as partes dos conceitos subjacentes que requereram algum labor e perícia reais e que não eram óbvias a qualquer outra pessoa, foram obra de outras pessoas que não Musk ou Bezos. A única razão pela qual ambos são alvo de tanta reverência actualmente é por terem dinheiro, ou estarem numa posição que lhes permitiu que pessoas com dinheiro lhes dessem ouvidos. Pois arrancar com as coisas requer dinheiro para iniciar a engrenagem.
Há um fluxo constante de bens e serviços entre quem cujo trabalho produz esses bens e aqueles que os consomem, com os trabalhadores de uma indústria a fornecerem os trabalhadores de outra indústria com as necessidades diárias que consomem, e estes por sua vez produzem os seus próprios bens para que os trabalhadores de outras indústrias os consumam. Em nenhuma parte deste processo advém qualquer bem material de algo além do labor de seres humanos ou quaisquer dádivas gratuitas obtidas da Natureza. Em nenhum destes passos quer Elon Musk quer Jeff Bezos levantam sequer um dedo para extrair materiais do solo, transformá-los em bens ou entregá-los a quem quer que seja.
O que temos, em termos funcionais – o que é retractado no mundo de pernas para o ar da ideologia capitalista como sendo a criação de “mais valias” por parte de Musk e Bezos por intermédio dos seus “investimentos” – é um sistema de trabalhadores que disponibilizam constantemente os produtos fruto do seu trabalho uns aos outros através de um sistema de crédito mútuo. A função de avançar com a liquidez, de iniciar a engrenagem, é uma função social que podia ser desempenhada de modo cooperativo. Não há qualquer valor subjacente aqui – só um fluxo horizontal constante de bens e serviços por parte de um grupo de trabalhadores para outro, à medida que os produzem.
As ideias podem surgir a uma quantidade indeterminada de pessoas, todos os materiais e trabalho advêm de outras pessoas que não Musk ou Bezos, e num mundo mais racional toda a operação podia ter sido organizada de modo a beneficiar por inteiro aqueles que produzem e consomem esses bens, sem que Musk ou Bezos retirassem daí os seus milhares de milhões nem obrigassem os seus trabalhadores a viver em auto-caravanas e a urinar em garrafas.
Mas de acordo com as regras do sistema capitalista que prevalece na maior parte do mundo, a função social de iniciar a engrenagem – ou de providenciar liquidez para que as coisas se mexam – está reservada àqueles que acumularam imensos estoques de dinheiro. A função de criar dinheiro em si está restringida legalmente a instituições com um qualquer capital mínimo. A expansão do abastecimento de dinheiro, a criação da própria liquidez em si, advém dos donos do dinheiro o emprestarem de modo a que exista, acumulando ainda mais dinheiro no decorrer desse processo. E uma vez que esta classe se apropriou da função de financiar a produção, acumula cada vez mais dinheiro através do controlo dos meios de produção – dinheiro que, por sua vez, se torna na fonte de ainda mais rendas, e por aí fora.
Estas são regras concebidas acima de tudo para favorecer os interesses daqueles que dispõem de grandes reservas de dinheiro, por um Estado controlado por estes, com o intuito de reforçar o seu monopólio sobre o crédito e sobre o controlo dos meios de produção. Para estarmos na posição de iniciar a engrenagem e colocar as coisas a funcionar, temos que ser ou bilionários ou saber como atrair os bilionários. E nem é preciso dizer que todos aqueles milhares de milhões na posse dos bilionários são mais valias que advêm da prévia monopolização das funções do crédito e do controlo das condições sob as quais é permitido aos trabalhadores que produzam.
Paremos por um momento para ponderar a crassa ineficiência que tal impõe à sociedade, da perspectiva da conceptualização, com o intuito de permitir que os donos do capital extraiam as suas mais valias a partir de todos nós. A função do dinheiro tal qual se compreende devia ter por base os fluxos horizontais, e não, de todo, o seu armazenamento. O facto de as reservas de determinado tamanho serem um pré-requisito para obter uma licença que nos permita exercer funções monetárias – fazendo assim com que essa função seja fonte de renda para os proprietários dessas reservas – é um problema.
Tal resume-se ao facto da função de prover liquidez e manter as coisas a andar – uma função que por direito devia ser organizada de modo horizontal e cooperativo como bem social comum, sem outro custo além da administração dos zeros e uns da base de dados – foi circunscrita. E do mesmo modo que a classe que circunscreveu os baldios utilizou o seu monopólio sobre as terras para extrair rendas daqueles que as trabalhavam (e ainda o continua a fazer!), a classe que circunscreveu o crédito e o dinheiro que seriam bens comuns extrai rendas das nossas andanças.
Em 1649 em St. George Hill, na Inglaterra, um grupo de camponeses sem terra que dava pelo nome de Cavadores disse aos senhorios que “as vossas reivindicações sobre estas terras têm por base o roubo, e como tal declaramo-las nulas e abolidas.” Deitaram abaixo as cercas e começaram a cultivar essas terras. É altura de fazermos o mesmo com o dinheiro.