Novos indícios de derramamento de sangue na “trégua de Natal” da Primeira Guerra Mundial fortalecem — em vez de enfraquecer — seu exemplo de paz.
O jornal Telegraph do Reino Unido relata o incidente (“A trégua de Natal de 1914 foi quebrada quando francoatiradores alemães mataram dois soldados britânicos“, 22 de dezembro) a partir de registros históricos. Na linha de frente na França, o sentinela britânico Percy Huggins foi morto por um francoatirador alemão; o líder de seu pelotão Tom Gregory retaliou e foi abatido por outro atirador.
Isso pode não se encaixar na imagem sentimentalizada da trégua, mas tirá-la do pedestal a torna mais relevante ao nosso mundo imperfeito. Bertrand Russell observou que “admitir em teoria que há ocasiões em que é apropriado lutar e que na prática que essas ocasiões são raras” produz muito menos guerras reais do que a ideia de que “em teoria não há ocasiões em que é adequado lutar e que na prática essas ocasiões são muito frequentes”.
A quebra da trégua neste caso permaneceu como ponto isolado; ela permaneceu em vigor nos dois lados, mesmo quanto as tropas estavam a menos de 1,5 km de distância. A influência de uma Brigada de Guardas “extremamente profissional” manteve as tensões locais altas desde o começo, com a rejeição imediata do pedido alemão de cessar-fogo.
Também é instrutivo observar o aspecto “olho por olho” do caso, impulsionado por retaliação a agressões específicas e não pela situação geral de guerra (a indicação de um dos francoatiradores que agiria fez com que uma terceira morte fosse inevitável). É necessário alguma coisa para fazer com que as hostilidades se espahem mais rapidamente que a tolerância, sem observar a regra do “olho por olho”. O que seria essa coisa? A política.
Emma Goldman argumentava que sem a rejeição do movimento socialista à ação direta em prol de uma dependência de meios políticos, “a grande catástrofe teria sido impossível. Na Alemanha, o partido tinha 20 milhões de adeptos. Que poder para evitar a declaração de hostilidades! Mas, por um quarto de século, os marxistas haviam treinado os trabalhadores a serem obedientes e patriotas, a dependerem de atividades parlamentares e a confiar cegamente em seus líderes socialistas. Agora, a maioria desses líderes deu as mãos ao Kaiser (…). Em vez de declarar greve geral e paralisar as preparações para a guerra, eles aprovaram o orçamento governamental para o massacre”. Somente o detonador da rivalidade entre líderes nacionais poderia transformar o assassinato de um arqueduque numa disputa que multiplicaria os três mortos causados pela morte de Percy Huggins em 15 milhões de vítimas.
Em sua carta final, Huggins disse a sua família: “Eu anseio pelo dia em que este terrível conflito acabará. Vocês consideram a guerra uma coisa terreível, mas a imaginação não consegue captar os horrores do conflito que podem ser vistos no campo de batalha e são indescritíveis; rezo para que esta seja a última guerra da história”. Um século de avanços em comunicações globais e comércio dá aos soldados Huggins de hoje ampla base com a qual coexistir sem políticos e meios de verificar a confiança alheia. Não devemos esperar mais um século para chegar à “última guerra da história”.
Traduzido por Erick Vasconcelos.