The following article is translated into Portuguese from the English original, written by Kevin Carson.
Era uma vez, uma porção importante da economia estadunidense tinha sua base numa instituição peculiar, dependente de certo bizarro “direito de propriedade.” Tal instituição peculiar era defendida por pregadores e políticos, por lobistas e por um exército de editorialistas, os quais argumentavam que aquela forma peculiar de propriedade era propriedade no mesmo sentido que qualquer forma ordinária de propriedade. Qualquer violação dessa forma de propriedade, proclamavam eles, era “furto”, exatamente no mesmo sentido de alguém subtrair das pessoas suas posses ordinárias.
O governo federal recorreu à censura para proteger essa forma de propriedade, e foi desenvolvido um estado policial intrometido para levar a efeito a obrigação legal do governo federal de fazer cumprir o direito peculiar de propriedade da qual dependia a tal instituição peculiar. O governo foi forçado a tornar-se mais e mais autoritário em defesa dessa instituição peculiar, porque ela feria frontalmente qualquer instinto humano de liberdade.
Por outro lado, houve proliferação de grupos de defesa e figuras públicas que condenavam a instituição peculiar, e preconizavam a extinção da forma peculiar de propriedade da qual ela dependia. Argumentavam que aquela assim dita “propriedade” era completamente ilegítima e odiosa e não era, na verdade, propriedade genuína no mesmo sentido das posses ordinárias. Ademais, houve esforços organizados para ignorar ou desafiar aquelas reivindicações ilegítimas de propriedade, e para driblar as tentativas do governo de fazê-las cumprir.
Os tempos do era uma vez são hoje.
Joe Biden, anteriormente Senador, a partir da holding bancária – MBNA, e agora Vice-Presidente, a partir da Associação Cinematográfica dos Estados Unidos – MPAA, acaba de anunciar: “Vejam, pirataria é puro furto. Há gente por aí furtando flagrantemente dos estadunidenses — furtando as ideias deles e roubando as energias criativas dos Estados Unidos. Não há motivo de tratarmos propriedade intelectual de maneira diferente daquela pela qual tratamos propriedade tangível.”
Bem, “propriedade intelectual” é tratada diferentemente de propriedade tangível, sim senhor. Isso, porém, deveria fazer Biden feliz, porque aquela primeira, em verdade, é feita ser respeitada mais estritamente do que propriedade tangível. A propriedade intelectual tem de ser protegida de maneiras tais que a propriedade tangível — propriedade legítima — nunca foi, porque a primeira não é natural. Por exemplo, o copyright digital depende de legislação que criminaliza tecnologia que drible a Gestão de Direitos Digitais, mesmo no caso de um comprador de CD que deseje apenas copiá-lo para finalidade de “uso honesto”, tal como tocá-lo em mais de uma plataforma. O copyright digital depende de criminalização da palavra, tal como afixar uma sequência de números num blog ou usar essa sequência numa camiseta. Eis porque Eric Corley foi processado: por publicar um código que conseguia craquear a Gestão de Direitos Digitais da indústria do cinema.
Tais formas de proteção não têm precedentes no caso de propriedade tangível. Bem, na verdade há um precedente. O governo dos Estados Unidos proibiu, nos anos 1850, a distribuição, pelo Correio dos Estados Unidos, de qualquer literatura que pusesse em dúvida a legitimidade de outra instituição peculiar(*), e o Senado dos Estados Unidos proibiu qualquer discussão de sua legitimidade por membros no plenário. (* Essa outra instituição peculiar é, entendo eu, a escravatura, também baseada no conceito de ‘propriedade’. Ver por exemplo http://en.wikipedia.org/wiki/Compromise_of_1850 e também http://www.pbs.org/wgbh/aia/part4/4p2951.html)
“Propriedade intelectual” é feita cumprir por forças-tarefas especiais do FBI, uma delas administrada a partir da sede da Disney(*), com suas ações estreitamente coordenadas com as da MPAA. Provedores de serviços de Internet são arrolados como agentes auxiliares do FBI, espionando seus clientes em favor dos “proprietários” de conteúdo digital. Vejam se vocês conseguem encontrar esse tipo de zelo e diligência nos policiais se mera propriedade tangível, como o carro de vocês, for furtada. (* Segundo o New York Times, Walt Disney foi informante do FBI de 1940 até sua morte em 1966. Ver http://www.nytimes.com/1993/05/06/movies/disney-link-to-the-fbi-and-hoover-is-disclosed.html)
Bem, na verdade há um precedente: o aparato policial autoritário que cresceu em torno da tarefa de reclamar “propriedade” fugida(*), sob as regras daquela outra instituição peculiar dos anos 1850. (* A lei exigia que todo cidadão prestasse auxílio para captura de escravos fugidos. O escravo fugido capturado, outrossim, não tinha direito a julgamento por júri. Ver http://www.pbs.org/wgbh/aia/part4/4p2951.html)
Ambas as instituições peculiares, ontem e hoje, estavam do lado errado da história. Os seres humanos querem ser livres. A informação quer ser livre. Todas as leis em contrário no final fracassarão.
Artigo original afixado por Kevin Carson em 15 de abril de 2011.
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.