Sobre a teoria das zonas libertas: Ou como as pessoas racializadas já estão trabalhando

De Eric F. Artígo original: On Liberated Zones Theory: Or How BIPOC Folks Are Already Doing the Work, 8 dezembro 2023. Traduzido para o português por Nico.

Anteriormente apontei que os esforços nos territórios de Rojava e Cooperation Jackson no Mississipi podem ser vistos como…

tentativas, como Wesley Morgan descreve, “de criar ‘poder dual’ através da criação de cooperativas”. Morgan desaprova o que chama de “sindicalismo de mercado” e o critica por simplesmente criar “unidades em uma economia de mercado” que ainda se baseia em “acesso ao mercado”. Entretanto, essa opinião não leva em conta a união desta prática dento de avanços mais amplos pela autonomia anti-estatal tais como a autodefesa em ampla escala que, como em Rojava, tem criado espaço para mercados não-capitalistas. Tais métodos não seriam diferentes do chamado de Samuel Edward Konkin III de “proteção e agências de mediação agoristas” e  “companhias de proteção” para proteger mercados crescendo fora da economia do estado capitalista e conter “o Estado, defendendo aqueles que as contrataram para proteção”.

A visão de Konkin de certo modo é uma especulação cínica em comparação as lutas vividas pelos lutadores curdos, mas encontramos validade no argumento de que construir uma economia cooperativa centrada no produtor é inseparável da ação direta como autodefesa ou a criação de redes de trocas contra-econômicas. Pessoalmente, acredito que essas observações representem um desenvolvimento mais revolucionário e não-utópico na tradição dos primeiros anarquistas norte americanos  como Josiah Warren, projetos comunitários de mercados não-capitalistas como Utopia, Modern Times e o Cincinnati Time Store. Mas essas ideias também estão  dentro da “teoria das zonas libertas” como teorizado (e disputado) pelos camaradas do Community Movement Builders. Portanto, eu quero ‘propagandear’ a teoria e prática deles pois acredito que seja bastante convincente. E apesar de que eu vá adicionar meus comentários pessoas (no mínimo para raciocinar sobre alguns pontos), o propósito real desta obra é enfatizar o trabalho que já vem sendo feito por pessoas racializadas. De fato, se esse artigo expõe algo, é o fato de que quase tudo que anarquistas brancos e colonizadores como eu propõem, já é feito por comunidades negras e indígenas.

Community Movement Builders é uma organização incrível que descreve a si mesma como “um coletivo de integrantes negros, residentes da comunidade e ativistas servindo a comunidades negras pobres e da classe trabalhadora” que “se organiza para construir poder nas comunidades negras, desafiando instituições existentes e criando novas instituições controladas pelo nosso povo”. Eles têm presença em Atlanta, Dallas e Detroit, com cada um se adaptando as condições locais. Alguns dos projetos que estão envolvidos incluem desenvolvimento de fundos imobiliários, desenvolvimento de cooperativas, programas de fiscalização à polícia, hortas comunitárias, programas de apoio mútuo, e alianças internacionais com grupos socialistas como o Pati Kan Pèp no Haiti. Tudo isso cabe dentro da “teoria das zonas libertas”, cuja definição – oferecida pelo CMB – soa importante o suficiente para ser reproduzida aqui, na íntegra:

Zonas Libertas são territórios onde as massas (a comunidade de pessoas que vive dentro e ao redor de uma área específica) estão em controle quase completo de seu destino socioeconômico pois controlam as instituições em uma região específica, cidade, município ou estado. Uma vez que zonas/territórios libertos existirão dentro de instituições capitalistas hostis e economias capitalistas maiores, não é possível atingir o controle completo enquanto não ocorrerem outras transformações maiores. O controle alcançado existe dentro de uma estratégia maior de desafio ao estado e as instituições capitalistas.

Economicamente, a comunidade controlará os sistemas de mercado através de vários empreendimentos controlados pelos trabalhadores e cooperativas. Assim assegurando que a mais-valia do trabalho das comunidades locais seja controlado de dentro das zonas libertas e não seja explorado por capitalistas. Por esse motivo o excedente pode ser distribuído para desenvolver a comunidade e atender as necessidades humanas e não o capitalismo. Assim, as comunidades estarão no controle da geração e gerência de sua riqueza interna.

Num estágio avançado da atividade liberatória, o aparato de governança estatal estará também sob o controle das pessoas (instituições atuais ou novas). Isso pode ser realizado tanto através de apoio cooperativo de atividades econômicas e criação de novas economias para mitigar forças reacionárias de reentrar a zona liberta.

As pessoas dentro das zonas controlarão seus recursos locais assim como a terra, habitações, e trabalho e serão responsáveis pela tomada de decisões de como esses elementos serão gerenciados. Da nossa perspectiva ideológica com organização de autodeterminação negra, as massas verão a si mesmas como parte de um esforço pan-africanista maior, adotando a unidade e resistência do povo africano tanto local quanto internacional.

Quando li esta perspectiva, ela explodiu minha cabeça. Aqui estão, pessoas exercendo uma práxis incrível com base em uma excelente teoria para estabelecer redes autônomas de cooperativa —e baseadas no bem coletivo — economias de mercado que resistem a extração e legitimidade capitalista. Os elementos (necessários) adicionados de antirracismo e anticolonialismo — algo que falta no meu próprio pensamento — torna isso ainda mais poderoso no contexto do modelo para mudança social.

Certamente, um dos elementos da teoria das zonas libertas que pode soar incômodo aos anarquistas (particularmente aos anarquistas de mercado) é o objetivo de “aparato de governança estatal estará também sob o controle das pessoas (instituições atuais ou novas)”. Entretanto, penso que é um problema bem menor do que parece a primeira vista. Mesmo quando o CMB fala de “partidos revolucionários que realmente representam os interesses do povo,” também enfatizam “a consistente luta das massas” e centram o “desafio as instituições estatais”. E por conta da abordagem descentralizada da teoria das zonas libertas, isso se torna menos uma questão de argumentar por uma tática unificada e mais sobre o que é mais apropriado para as condições locais. Por exemplo, enquanto o meu trabalho geralmente é focado na construção de instituições não-estatais como fundos de investimento, cooperativas, e programas de apoio mútuo, eu também tenho boa relação com os representantes locais do Partido Comunista dos Estados Unidos e os Socialistas Democráticos da América e já apoiei muitos candidatos socialistas locais. Eu não tenho problemas com coalizões de partidos de esquerda e candidatos tomando controle de grandes áreas urbanas para “apoiar atividades econômicas cooperativas e a criação de novas economias para mitigar a reentrada de forças reacionárias nas zonas libertas”. De fato, essa me parece uma das poucas formas para que certas políticas como orçamentos participativos e ações anti monopólios poderiam se sustentar. O controle de governos locais em zonas específicas também combina muito bem com o modelo de municipalismo libertário de Kevin Carson. Ele defende que estruturas de governança cooperativas como o “Estado Parceiro” de Michel Bauwen e Cosma Orsis não precisam ser…

tanto um ‘governo’ mas sim um sistema de governança. Não é nem um pouco necessário que seja um estado, no sentido de ser uma instituição que reivindica a exclusividade do uso da força num determinado território. Isso é, essencialmente uma associação social não-estatal — ou plataforma de suporte — para gerenciamento dos bem comuns, estendido para uma região geográfica inteira… De fato, é bem possível argumentar por uma completa separação do Estado Parceiro até mesmo de formas residuais de soberania do poder de polícia sobre todos os indivíduos em determinada área geográfica. É possível ter todo um sistema policêntrico de instituições populares com participação autosselecionada ou usuários de um recurso comunitário particular, com suficiente sobreposição de participantes, e grandes minorias ou mesmo maiorias destes na mesma área sendo membros da maioria deles. Neste caso a arbitragem ou negociação das relações entre eles produzirão um corpo de “leis comuns” para os sistemas como um todo, com um nível considerável de factual coordenação sobre uma área geográfica comum.

Carson vê esse projeto como uma versão de “nível municipal” da “ideia simionista de substituir a lesgilação sobre seres humanos com a ‘administração das coisas’”, uma interpretação que é diretamente (e potencialmente estratégica) relacionada com  a ideia de Friederich Engels de definhamento da “autoridade política sobre o homem” para “uma administração de coisas e uma direção de processos de produção,” na fundação do que, ele continua em outro ponto “uma associação igualitária e livre de produtores”. Mas com a ênfase adicionada nas instituições específicas a comunidades e a sobreposição de inúmeros esforços cooperativos governamentais e não-governamentais, esse e outros programas reunidos sob o a teoria das zonas libertas permitem objetivos comuns e, consequentemente, colaboração imediata entre anarquistas , sociais democratas, comunistas, e mesmo radicais libertarianos para usar a governança local para facilitar redes de cooperativas lideradas pela comunidade (particularmente produtores).

Então temos esta fascinante conexão entre a teoria das zonas libertas e a teoria do “intercomunalismo” do Pantera Negra Huey P. Newton; uma tentativa de adaptar o materialismo dialético para um contexto colonial moderno [1] Newton escreve:

[O] mundo hoje é uma coleção de comunidades dispersas. Uma comunidade é diferente de uma nação. Uma comunidade é uma pequena unidade compreensiva de instituições que existem para servir um pequeno grupo de pessoas. E dizemos ainda que a luta no mundo hoje é entre o pequeno círculo que administra e lucra sobre o império dos Estados Unidos, e as pessoas do mundo que querem determinar seus próprios destinos.

Atualmente vivemos em uma era de “intercomunalismo reacionário, na qual um círculo de dirigentes, um pequeno grupo de pessoas, controlam todas as outras pessoas usando sua tecnologia”. Mas..

[a]o mesmo tempo, nós dizemos que essa tecnologia pode resolver a maioria das contradições materiais que as pessoas encontram, que já existem as condições materiais que permitiria as pessoas do mundo desenvolver uma cultura que é essencialmente humana e poderia nutrir os fatores que permitiriam as pessoas a resolverem contradições de uma forma que não causariam a matança de todos nós. O desenvolvimento de tal cultura seria o intercomunalismo revolucionário.

Essa lógica de controle comunitário sobre os meios de produção é extremamente similar ao expresso na teoria das zonas libertas. Newton chega mesmo a fazer referência a “as pessoas nas zonas libertas do Vietnam do Sul” [grifo nosso] em sua análise. E em uma entrevista com Millenials are Killing Capitalism, CMB Kamau Franklin explicitamente cita como seu trabalho segue a linha do Partido dos Panteras Negras assim como identifica a solidariedade entre lutas de diferentes povos sofrendo sobre o capitalismo. Essa colaboração internacional não apenas entre a classe trabalhadora mas todos os povos oprimidos se assemelha, com pouquíssimas modificações, a teoria das zonas libertas sendo um desenvolvimento no intercomunalismo e, consequentemente, uma interpretação mais contextual e descentralizada do materialismo dialético como um todo.

Também considero interessante que Rukiya Colvin e Richard Feldman, em seu perfil de várias instituições em Detroit lutando por zonas libertas, identificam certas instituições religiosas como centros de desenvolvimento de comunidade. Por exemplo, eles escrevem sobre que a Igreja Episcopal do Messias é…

mais que um lugar de veneração já que anualmente sediam protestos antiviolência, cultivam criatividade através de mercados, promovem o bem-estar através de jardins comunitários, apoiam a equidade digital através da Iniciativa da Internet Equitativa, e organizam encontros mensais de coalizões entre movimentos sociais, enquanto também trabalham pela reconstrução da vizinhança através das opções de habitações de baixo custo que oferecem. Seu espaço também serve como uma pequena encubadora de negócios.

Isso me é algo muito caro, já que no último ano, tenho refletido sobre a comunidade religiosa e a liberação coletiva. Mas novamente, esse tipo de pensamento já foi extensivamente coberto por teólogos negros e latino-americanos como Martin Luther King , James H. Cone e José Míguez Bonino e muitos mais. Então uma vez mais voltamos ao argumento principal: pessoas racializadas já estão fazendo o trabalho prático e teórico apresentado neste artigo. Nós, como esquerdistas precisamos deixar algumas brigas de lado e especialmente, parar de dizer para comunidades racializadas o que elas deveriam ou não fazer. Invés disso, nós devemos nos somar no esforço de estabelecer zonas libertas em conjunto com outras estratégias como ações de massa com trabalhadores e sindicalismo revolucionário [2]. Eu também diria que anarquistas de mercado tem muito a oferecer a luta, seja com compreendendo problemas de conhecimento hayekiano e problemas de ações coletivas, táticas agoristas (como mencionadas acima), um modelo de capitalismo de estado monopolista (à la Benjamin Tucker), ou simplesmente nossos corpos e mãos. Então coopere! Conheça seu vizinho! Aprenda a defender a si mesmo ou se organize estrategicamente para ser defendido! Evade a legibilidade estatal capitalista! Oh, e se você estiver interessado em apoiar o Community Movement Builder confira a página para doações!

Notas

1. A Encyclopedia Britannica está correta ao encerrar seu tópico sobre materialismo dialético com a ressalva: “Não existe exposição sistemática de suas visões filosóficas do materialismo dialético de Marx e Engels, que declarasse suas visões filosóficas principalmente no decorrer de suas polêmicas.” De todo modo, eu recomendo fortemente Dance of the Dialectic: Steps in Marx’s Method de Bertell Ollman.

2. Zonas revolucionárias intercomunalmente libertas?

Anarchy and Democracy
Fighting Fascism
Markets Not Capitalism
The Anatomy of Escape
Organization Theory