Escrito por Eric F. Artigo original: In Lieu of Free Banking, do 23 de maio de 2023. Traduzido por Gabriel Camargo.
Em círculos libertários e anarquistas de mercado, o conceito de sistema bancário livre sempre foi um importante ideal para uma genuinamente livre e saudável sociedade competitiva. Isso implica em um sistema monetário no qual os bancos não apenas mantêm moeda, mas podem emitir sua própria sem a necessidade de um ente centralizado. Assim sendo, a oferta de dinheiro seria determinada exclusivamente por sua demanda, bem como a disposição das instituições financeiras em emiti-lo—com diferenças em confiança, taxas de juros e termos gerais sendo fatores competitivos essenciais. A origem do sistema bancário livre se encontra no século XIX, quando países como os Estados Unidos e a Escócia não possuíam o forte sistema bancário centralizado dos dias atuais. Embora o primeiro fosse mais um sistema descentralizado, mesmo que ainda estatista, o segundo foi um sistema amplamente desregulado de mercado aberto para bancos não registrados, que circundavam três bancos registrados principais e que, por fim, mostrou-se altamente estável e bem-sucedido. Argumentos ideológicos favoráveis mais explícitos ao sistema bancário livre tornar-se-iam populares entre anarquistas individualistas nos Estados Unidos entre a metade do século XIX e início do XX. Benjamin Tucker, por exemplo, argumentou que o monopólio de emissão de moeda constituía um dos “quatro de principal importância” ao capitalismo de estado, e que, baseando-se em Josiah Warren e Pierre-Joseph Proudhon…
caso o setor bancário fosse livre para todos, cada vez mais pessoas nele entrariam, até que a concorrência se tornasse forte o suficiente para reduzir os preços dos empréstimos de dinheiro aos custos da mão de obra, que estatísticas mostram ser inferior a três quartos de um por cento. Assim sendo, os milhares de pessoas que são atualmente impedidas de abrir seu negócio devido às taxas ruinosamente altas que precisam pagar pelo capital necessário, verão removidas as dificuldades.
Lysander Spooner, abordando outros aspectos específicos, especulou que…
sob perfeita liberdade bancária, substancialmente toda a riqueza material do país poderia ser utilizada como capital bancário. O montante de moeda que esse capital é capaz de prover é tão grande . . . que nunca haveria escassez. E a competição para sua oferta sem dúvida seria grande o bastante para manter baixas as taxas de juros.
Outros pensadores, como Friedrich Hayek—em seu livro de 1976 The Denationalization of Money—argumentam que um sistema bancário livre não apenas promoveria inovação e flexibilidade em serviços financeiros, mas que também possibilitaria um maior volume de trocas internacionais e reduziria a necessidade de intervenção governamental na economia.
No entanto, os argumentos de Hayek não contêm alguns dos mais radicais elementos anticapitalistas que possuíam os primeiros pensadores individualistas—o principal sendo como o sistema bancário livre levaria ao mutualismo bancário, em última instância alternado a balança de poder de classe do próprio sistema de mercado. Mutualismo bancário é um esquema financeiro no qual um banco depende de crédito mútuo, em oposição ao empréstimo de dinheiro a juros, e envolve a reunião de recursos próprios dos membros desses bancos para a concessão de crédito uns aos outros, com base na confiança e na capacidade de crédito. Como escreve Kevin Carson: “Em um genuíno mercado bancário livre, todo e qualquer grupo voluntário de indivíduos poderia formar um banco cooperativo e emitir notas bancárias sobre o lastro que desejassem estabelecer, com a aceitação dessas notas como meio de pagamento sendo a condição de associação.” E mais do que apenas proporcionar um modelo mais flexível de financiamento, Carson aponta que “caso a propriedade pertencente à classe trabalhadora fosse livre para a mobilização como capital por esses meios, e os produtores permitidos organizar seu crédito sem entraves, os recursos disponíveis seriam enormes,” e esse “crédito barato abundante dramaticamente alteraria o balanço de poder entre capital e trabalho, e retornos por trabalho substituiriam retornos por capital como a forma dominante de atividade econômica.” Gary Elkin mantém que:
pelo fato da proposta de Tucker de elevar o poder de barganha dos trabalhadores por meio do acesso ao crédito mútuo, seu assim chamado anarquismo Individualista não é apenas compatível com o controle dos trabalhadores, de fato, o promove. Pois se o acesso ao crédito mútuo elevasse o poder de barganha dos trabalhadores ao ponto que Tucker declara, eles poderiam (1) demandar e receber democracia no local de trabalho e (2) reunir seus créditos para comprar e possuir empresas coletivamente. Isso eliminaria a estrutura top-down da firma e a habilidade dos proprietários de pagarem a si mesmos salários injustamente altos.
Infelizmente, nos Estados Unidos contemporâneo (como na maior parte do mundo) não temos um sistema bancário livre e, graças à regulação existente, somos muito limitados em nossa habilidade de estabelecer um esquema substancial de crédito mútuo. Então, além de prosseguirmos defendendo um sistema financeiro aberto, devemos também ver o que atualmente existe como meios para estabelecer proxies mais imediatos.
Um bom lugar para começar são as cooperativas de crédito; sem fins lucrativos, as cooperativas financeiras são propriedade de seus membros, provendo-lhes serviços. Elas oferecem uma variedade de serviços de crédito como um banco tradicional; contas corrente ou poupança, cartões de crédito e débito, bem como empréstimos e financiamentos. Contudo, uma diferença vital é que os ‘lucros’ provenientes dos serviços retornam aos membros por meio de dividendos e menores taxas internas. A maioria das cooperativas de crédito possuem critérios de elegibilidade, como habitar certa área geográfica, trabalhar em uma profissão específica ou pertencer a uma organização comum fora da cooperativa. Caso um indivíduo cumpra os requisitos para se tornar um membro, não apenas terá acesso aos serviços bancários tradicionais, mas poderá também participar da governança e dos processos de decisão. Graças a ambos os fatores cooperativos e comunitários, as cooperativas geralmente focam não apenas em gerar retornos para os membros, mas no desenvolvimento comunitário e na responsabilidade social. E mesmo que as cooperativas de crédito atuais estejam envoltas na estrutura regulatória do capitalismo de estado e monopólio da moeda, há algumas estratégias que elas podem utilizar (e às vezes utilizam) que poderiam servir de alternativas imediatas ao sistema bancário mútuo.
De fato, as cooperativas de crédito já aproveitam o crédito mútuo em alguns dos seus serviços. Algumas oferecem poupança compartilhada e programas de empréstimo, pelos quais os membros podem conceder crédito entre si sem as restrições usuais de uma instituição de empréstimo. Outras possuem fundos de desenvolvimento comunitário e/ou fundos de empréstimos rotativos para pequenas empresas e empresas comunitárias sem histórico de crédito ou acesso a fontes tradicionais de financiamento. Para exemplos do mundo real, veja a Vancouver City Savings Credit Union (Vancity) e a Self-Help Credit Union (servindo ambas as Carolinas e a Flórida). A primeira possui um programa de Sucesso Compartilhado, no qual os membros podem reunir suas poupanças para lastrear um empréstimo requerido por um projeto comunitário ou outro propósito coletivo. A segunda possui uma variedade de programas baseados no crédito mútuo, como os Empréstimos garantidos por ações—por meio do qual os membros podem utilizar suas contas de poupança cooperativa como garantia. Outra interessante estratégia implementada pela Alternatives Credit Union, em Ithaca, Nova York—juntamente aos Empréstimos garantidos por ações— é a ligação com sistemas de moeda comunitária, como os bancos de tempo. Em um sistema bancário temporal, como o Ithaca HOURS local, os membros trocam serviços com base na igualdade de tempo (x horas de trabalho por x horas de trabalho). Em Mutual Life, Limited, o antropólogo Bill Maurer conta como a Alternatives Credit Union aceitava depósitos em HORAS e permitia HORAS “para taxas de associação, empréstimos, devolução de cheques e transferência automática, bem como em troca de um pacote de ‘Investimento Socialmente Responsável'”. Portanto, além de as cooperativas de crédito expandirem seus serviços de crédito mútuo, elas também poderiam seguir o exemplo do esquema Ithaca HOURS e integrar o sistema temporal aos seus serviços bancários tradicionais, de modo que os membros pudessem ter acesso a uma ampla variedade de serviços financeiros, enquanto promovem a comunidade e a ajuda mútua.
Mas, como sempre, o contexto é essencial. Da mesma forma que o verdadeiro sistema bancário mútuo exige um mercado bancário e de produção de moeda não regulamentado, cooperativas de crédito nos moldes atuais fortemente dependem das mesmas (ou similares) estruturas regulatórias que os bancos tradicionais; sem dúvidas, o mesmo controle monopolístico que levou a uma situação político-econômica na qual não está claro se o sistema bancário livre poderia ser a panaceia que foi originalmente apresentada pelos anarquistas individualistas do século XIX. Laurance Labadie—o “herdeiro de Warren, Spooner e Tucker” de acordo com Herbert C. Roseman—escreve como, no fim da vida, Tucker se tornou cada vez mais convencido de que as concentrações de propriedade e riqueza “haviam chegado a um ponto tal que, mesmo que pudesse ser instituído, o sistema bancário livre por si mesmo não seria suficiente para quebrar o poder monopolista do capital.” Labadie expressaria um sentimento similar nas últimas décadas de sua vida, ajudando na articulação do grande desafio pessimista atualmente enfrentado pelos anarquistas de mercado: “o que podemos fazer no lugar do sistema bancário livre?” Talvez a resposta seja repensar nosso foco na socialização do acesso ao capital para o ganho mais imediato de controle sobre os meios de produção. Tucker escreve como “Proudhon e Warren se viram incapazes de aprovar qualquer plano como o confisco de capital pela sociedade. Contudo, apesar de se oporem à socialização da propriedade do capital, eles almejavam socializar seus efeitos, tornando seu uso algo benéfico a todos, em vez de meios para empobrecer muitos e enriquecer poucos.” Talvez seja a hora de começarmos a pensar como sindicalistas e autonomistas [1]; nos posicionando não apenas como anarquistas de mercado, mas explicitamente como anarquistas de mercado pela luta de classes (não diferente de Dyer Lum e Joseph Labadie no século XIX, ou Carson e Logan Glitterbomb atualmente), que almejam formas imediatas e cotidianas de resistência como meios de impulsionar o controle pelos trabalhadores (no sentido mais amplo possível, i.e. incluindo donas de casa, estudantes, o “exército de mão de obra” dos desempregados, etc.) sobre os espaços de produção, a fim de estabelecer autonomia econômica às comunidades e poder dual, em oposição à economia do capitalismo de estado [2]. Adicionalmente às tentativas de radicalizar as cooperativas de crédito, precisamos de um esforço conjunto para o desenvolvimento cooperativo, sindicalização radical e um maior poder dos trabalhadores em geral. Precisamos ajudar no estabelecimento de “livres associações de produtores”, que podem transacionar entre si sem intervenção centralizada, e oferecer meios contraeconômicos para formar algo como a ágora proposta por Samuel Edward Konkin III—um espaço de trocas não violentas mantido seguro da coerção do estatal—as condições perfeitas para se estabelecer os verdadeiros Bancos Populares (como Proudhon chamou o conceito) baseados no crédito mútuo [3].
Notas
1. Para uma boa visão geral acerca dessas tendências, ver a introdução de Immanuel Ness para a antologia New Forms of Worker Organization: The Syndicalist and Autonomist Restoration of Class Struggle Unionism.
2. Realizei uma breve defesa das reivindicações dos trabalhadores em vários espaços de produção em “Toward a Cooperative Agorism”, mas geralmente indico libertários e anarquistas de mercado ao “Confiscation and the Homestead Principle”, de Murray Rothbard.
3. Isso não é dissimilar à visão Bakunista de empresas de propriedade coletiva, federações regionais e “Bancos de Câmbio” (ver “Ideas on Social Organization”, de James Guillaume), mas eu rejeito a excessiva dependência até mesmo do planejamento econômico descentralizado em favor de uma economia de mercado de cooperativas, propriedade de usufruto e liberdade (econômica) individual.