Um leitor anônimo do Tumblr do Centro por uma Sociedade Sem Estado recentemente perguntou:
“Duas perguntas: 1) Como exatamente a teoria e a prática propostas pelos anticapitalistas de livre mercado desafia a lógica cultural do capitalismo? 2) Não é verdade que todas as instituições de mercado — desde as grandes corporações até os pequenos comércios — desejam o estado como parte do processo de reprodução?”
A escala absurda e o crescimento do nexo monetário em comparação a modos alternativos de organização da vida social carrega muitos imperativos ruins consigo. Porém, a escala do nexo monetário dentro do capitalismo corporativo não é resultado da existência em si das trocas no mercado. Há muitos motivos para acreditar que a eliminação das barreiras ao autoemprego, à microprodução e à subsistência confortável causariam um encolhimento radical do nexo monetário. Essa eliminação também resultaria na mudança na maneira como atendemos a grande parte de nossas necessidades, adotando trocas em pequena escala com outros pequenos produtores em redes comerciais que se formam em paralelo às relações sociais em nossas comunidades (como artesãos em uma vila pré-capitalista) ou produção social não-monetizada dentro de casas de famílias estendidas e unidades sociais multifamiliares.
Embora problemas de cálculo econômico provavelmente tornam a precificação necessária para a coordenação da produção de larga escala de bens de distribuição ampla ou para a extração e a distribuição de matérias primas como minerais, a proliferação de ferramentas de micromanufatura baratas e a produtividade superior de horticulturas de pequena escala significa que a produção de grande escala e a distribuição de longa distância devem rapidamente diminuir em representatividade econômica. Uma das poucas formas de produção em larga escala absolutamente necessárias é a da indústria de microprocessadores. Esta e outras coisas ainda devem requerer a coordenação de preços por toda a economia para alocá-los em regiões muito grandes.
A produção de motores pesados de combustão interna, motores de aeronaves a jato, carcaças de carros que requerem estampagem em três níveis, entre outros produtos, são também coisas que requerem grandes estruturas e grandes mercados. Mas essas coisas são “necessárias” em primeiro lugar para atender a necessidades artificiais impostas à sociedade pela estrutura de poder atual. Como o Model T mostrou, um veículo de combustão interna leve poderia funcionar com um motor que pudesse ser produzido em oficinas locais atuais — sem contar os motores elétricos fabricados por manufaturas de pequena escala. Sem o papel do complexo militar-industrial na viabilização de aviões civis jumbo, viagens e fretes de longas distâncias provavelmente poderiam ser feitos por naves mais leves que o ar. E as carcaças moldadas, em vez de designs de carros com painéis planos produzidos em uma mesa de corte, são simplesmente produtos estéticos das montadoras de Detroit.
Em uma economia sem o desperdício subsidiado ou a obsolescência planejada, sem os subsídios e estímulos à cultura do carro, provavelmente 80% das necessidades de consumo poderiam ser produzidas dentro de uma casa ou de uma unidade de várias casas, ou mesmo em troca de dinheiro a nível local. Ao invés de pensar com base nas premissas e na lógica das instituições extrativistas, eu partiria da premissa de uma sociedade em que as pessoas interagem umas com as outras, têm necessidades para serem satisfeitas e habilidades para oferecer e os arranjos que combinam entre si para atingir seus objetivos. A partir desse nível micro de cooperação e trocas individuais, é mais fácil ver como a remoção dos monopólios, das barreiras de entrada e dos pisos artificiais ao custo de subsistência teriam um efeito liberador sobre aqueles que buscam controlar seus sustentos e saírem do sistema salarial. Ao comentar sobre a pergunta do leitor, o companheiro de C4SS Charles Johnson afirmou:
“Todo mundo parece achar que falamos sobre açougues de empresários locais ou outros clientes do Sebrae. Eu falo sobre o cara que vende espetinhos na esquina, do conserto de carros sem registro em um terreno vazio, de bicos diários, de operar um táxi ilegal ou ocupar um espaço vazio de um terreno para fazer uma horta comunitária. Uma cooperativa de alimentos ou uma fazenda comercial local são grandes negócios no meu mundo, não pequenos. (Claro, às vezes grandes empresas são aceitáveis, claro, e eu gosto da agricultura local.) Minha preocupação principal são as bibliotecas de regulamentações que procuram estrangular a possibilidade de relações comerciais em escala nano, em formas que não sejam os ‘pequenos negócios’ dos empresários formais.”
Isso coloca em nova perspectiva os argumentos frequentes entre os céticos ou hostis ao mercado da esquerda: de que o mercado tem imperativos estruturais de auto-exploração e de imposição de disciplina trabalhista mesmo dentro de cooperativas e outras formas de produção controladas por trabalhadores, ou de que a existência de vencedores e perdedores dentro de um mercado não-capitalista faz com que os vencedores cresçam e absorvam os perdedores como assalariados — recriando assim o capitalismo e o sistema salarial. Uma boa formulação desse problema foi dada na lista de emails da P2P Foundation pelo teórico P2P marxista Christian Siefkes, que vê a produção cooperativa com base nos comuns como a formação basilar de uma sociedade pós-capitalista.
“Sim, as pessoas fariam trocas, mas inicialmente essas trocas não seriam capitalistas, uma vez que o trabalho não estaria disponível para a contratação. Presumindo que as trocas e o comércio fossem a forma principal de organização da produção, o capitalismo eventualmente surgiria, já que alguns dos produtores iriam à falência e perderiam o acesso direto aos meios de produção, sendo forçados a vender sua força de trabalho. Se nenhum dos outros produtores for rico o bastante para contratá-los, eles estariam sem sorte e passariam fome (ou teriam que adotar outras formas de sobrevivência, como roubos, furtos e prostituição — que é o que vimos como fenômeno de grande escala com a emergência do capitalismo e que ainda vemos nos países chamados em desenvolvimento, onde não há capital o bastante para contratar todos ou a maioria da força de trabalho disponível). Mas, se houvesse outros produtores, as pessoas os contratariam e a semente do capitalismo e sua divisão entre capitalistas e trabalhadores estaria plantada.”
Mas em uma economia de pessoas autoempregadas ou de pessoas que produzem cooperativamente para o atendimento direto de suas necessidades dentro da economia social, não há motivos para haverem perdedores permanentes. Os requisitos de capital seriam tão baixos que seria possível suportar um período ruim de forma indefinida sem a necessidade de uma fonte de renda permanente para pagar dívidas. E quando as máquinas básicas para a produção forem amplamente disponíveis e facilmente deslocáveis para novos produtos, não existe “falência”. Quanto mais baixo o nível de capitalização para entrar no mercado e mais baixos os custos a serem suportados em períodos de baixa, mais o mercado de trabalho assume um caráter de rede, orientado a projetos — como por exemplo na produção cooperativa de softwares. No software livre e em qualquer outra indústria em que o produtor médio possui um conjunto completo de ferramentas e centros de produção para projetos próprios, a situação não seria caracterizada tanto pela entrada e pela saída de “firmas” discretas, mas por uma mudança constante do equilíbrio entre projetos, com fusões, separações e agentes flutuando constantemente de um ponto para outro — ou simplesmente atendendo suas necessidades independentemente com várias ferramentas baratas e gerais.
Em uma sociedade em que a maioria das pessoas é dona do teto que cobre suas cabeças e pode se sustentar com produção caseira, os trabalhadores que são donos das ferramentas de seu trabalho podem suportar períodos ruins para seus negócios e ainda serem seletivos na hora de escolher os projetos mais adequados a suas preferências. É muito provável que os trabalhos assalariados que ainda existissem em uma economia livre seriam parte muito menor do total, que o trabalho assalariado seria mais difícil de encontrar e que atraí-lo requereria salários consideravelmente mais altos; assim, o autoemprego e a propriedade cooperativa seriam muito mais prevalentes e o trabalho assalariado muito mais marginal. O trabalho assalariado que continuasse a existir provavelmente seria a província de uma classe de trabalhadores itinerantes que assumisse esse tipo de trabalho quando precisassem de alguns rendimentos suplementares ou quando precisassem de alguma poupança, rapidamente deixando essas responsabilidades e voltando para suas vidas confortáveis em casa. Esse padrão — a vida nos comuns e a aceitação do trabalho assalariado só quando conveniente — era precisamente o que os cercamentos na Inglaterra tentaram destruir.
Em firmas cooperativas que operam dentro do nexo monetário local, com baixos custos e ferramentas baratas, e uma força de trabalho com baixos custos caseiros e baixas necessidades de renda, os trabalhadores provavelmente prefeririam trabalhar em regimes compartilhados em vez de ser demitidos e simplesmente produzir na escala em que há demanda sem a necessidade da “falência”. Uma economia de distritos econômicos locais e pequenas manufaturas cooperativas em rede, ou uma economia baseada em projetos como as associações de construção ou os antigos galpões de contratação de estivadores, presume uma rede solidária de apoio profissional e não oficinas ou locais individuais como unidade econômica primária. Assim, deslocamentos advindos de declínios econômicos são muito menos severos.
Além disso, é provável que os próprios declínios deixassem de ser severos se existissem quando a maior parte do dinheiro circula localmente em mercados locais de pequenos produtores em que a produção está intimamente ligada à demanda imediata. Então argumentos de que os mercados têm alguma lógica estrutural em favor do capitalismo ou de que levariam inevitavelmente ao capitalismo implicitamente presumem várias características do capitalismo corporativo como “normais”.
Traduzido para o português por Erick Vasconcelos.