Como qualquer outro paraense, gosto muito de açaí. Todo paraense, independente de condição socioeconômica, toma açaí. Este é um fato incontestável da vida no estado do Pará. Se você mora na capital, Belém, também é uma lembrança constante do fato de vivermos na Amazônia, ao lado de outras, como garças em uma praça em pleno centro da cidade.
O açaí, na sua produção tradicional, é tão querido no Pará, que até foi inventada uma música com o seguinte trecho: “Quem foi ao Pará parou. Tomou açaí ficou.”
E o açaí do Pará não é o mesmo que é vendido como energético em outras regiões do país. O seu verdadeiro paladar encontra-se no puro tomado aqui, não no diluído e misturado vendido alhures.
Mas quem poderia ser uma ameaça ao açaí tradicional, se há demanda entre os paraenses para este açaí? Se seu palpite era o estado brasileiro, você acertou.
Em 2010, foi apresentado por um senador um projeto de lei, que, em suas próprias palavras, “Dispõe sobre a obrigatoriedade da pasteurização da polpa do açaí.”
Seu artigo 1º dispunha:
“Art. 1º A polpa oriunda da desintegração do fruto do açaizeiro (Euterpe oleracea) deve ser submetida à pasteurização, conforme regulamentação própria, com fins de prevenção do contágio de doenças transmissíveis aos seres humanos.”
Ainda se previam punições a quem comercializasse o açaí não pasteurizado (leia-se: tradicional): R$ 2.000 na primeira incidência, R$ 5.000 mais prestação de serviços comunitários na segunda incidência, interdição do estabelecimento, na terceira incidência.
A justificativa do projeto era a prevenção da contaminação pela doença de Chagas. O autor do projeto defendia que referida lei era necessária para evitar que as contaminações por ingestão do açaí não-pasteurizado, que ocorrem principalmente na Amazônia, “venham a se tornar um problema de saúde pública de maiores proporções, [por isso] julgamos importante a obrigatoriedade da pasteurização imediata do produto resultante da desintegração do fruto do açaizeiro”. Mas, como bem apontou Lúcio Flávio Pinto, “tanto tempo depois que o açaí faz parte da mesa do paraense”, a proibição não faz nem sentido. Além disso, cuidados de higiene e normas de qualidade foram “providências que os próprios vendedores passaram a adotar.”
O projeto era tão absurdo que sua aprovação tornaria ilegais “os tradicionais pontos de venda de açaí espalhados pelo Pará. Os pequenos pontos, reconhecidos pela famosa placa cor de vinho com o escrito “açaí”, somam cerca de quatro mil apenas na Região Metropolitana de Belém. Segundo estimativa do Sindicato das Indústrias de Frutas e Derivados do Estado (Sindfrutas), a atividade envolve hoje 100 mil famílias, apenas na RMB”.
A presidente do Sindfrutas à época, Solange Motas, destacou o desemprego que seria ocasionado pela medida: “O senador Tião Viana não tem noção do desemprego que essa medida vai ocasionar na região. Só aos arredores de Belém são mais de quatro mil batedores de açaí catalogados, em todo o Estado devem ser mais de dez mil, que ficarão sem condições de sobreviver. É um projeto que quebra diretamente esses produtores. É um projeto totalmente falho, que mostra a falta de conhecimento até no texto”.
Portanto, de todos os ângulos, seja da alteração drástica do gosto de um alimento tradicional, seja do grave prejuízo econômico que representaria para milhares de pequenos vendedores, seria uma lei injusta e alheia à realidade local. Felizmente, o projeto foi rejeitado.
Mas isso não deveria nos deixar satisfeitos. O ponto é que é incrível que um senador federal tenha o poder de apresentar uma lei que pudesse fazer tal alteração nesta tradição regional. É incrível que um Congresso legislativo, instalado em Brasília, tenha o poder de aprovar uma lei que pudesse tão dramaticamente alterar a vida dos paraenses, tanto em uma forma típica de nutrição como em uma opção de trabalho de alta demanda. É incrível que se suponha que os paraenses, consumidores de longa data do açaí não pasteurizado, precisariam de Brasília para não morrerem todos de doença de Chagas.
Contaminações podem ocorrer, e medidas de higienização preventivas são valiosas, mas não há nada que justifique o banimento do açaí não pasteurizado, não há nada que justifique tirar o poder de escolher tomar este tipo de açaí de seu legítimo e verdadeiro dono: o indivíduo, neste caso, geralmente paraense.
Então, está na hora de tomarmos de volta do governo federal o poder de decisão sobre que açaí tomar, que é nosso por direito. Banir, assim, a própria possibilidade de um projeto de lei dessa natureza ser apresentado, a própria possibilidade do estado interferir dessa maneira no cotidiano da Amazônia. Por uma nova cláusula pétrea: o direito inalienável de tomar o açaí que queremos tomar e o direito inalienável de vender esse açaí. O direito ao açaí amazônico sem o paladar azedo do estado.