The following article is translated into Portuguese from the English original, written by Kevin Carson.
Michael Lind, em Salon (“Por que os libertários se desculpam pela autocracia,” 30 de agosto,) acusa os libertários de afinidade com regimes autoritários quando se trate de implementar “reforma de livre mercado.”
Obviamente ele faz a citação obrigatória de Mises a respeito de Mussolini ter “salvo a civilização europeia,” juntamente com as historietas padrão dos Rapazes de Chicago de Hayek e de Pinochet. Enfatiza, em especial, o Secretário do Trabalho e Previdência Social de Pinochet — agora associado do Cato — Jose Piñera, que privatizou o sistema de aposentadoria do estado e “delineou as leis do trabalho que trouxeram flexibilidade ao mercado de trabalho chileno…”
Nem tratarei da questão da cumplicidade de Hayek em políticas específicas, porque esse é tópico para uma monografia inteira. Basta dizer que sou cético acerca da extensão na qual ele possa ser responsabilizado por endossar quaisquer medidas específicas.
Mais importante é que as assim chamadas “reformas de livre mercado” de Pinochet em sua maioria não conseguem passar por um teste de cheiro(*) libertário, e guardam pouca semelhança com qualquer coisa tal como genuína reforma de livre mercado. Há bastantes de nós libertários de esquerda de livre mercado, no Centro por uma Sociedade sem Estado e na Aliança da Esquerda Libertária, que só sentimos indignação e desprezo por Pinochet. (* Teste de vazamento num cano de escoamento; é introduzido no cano material com forte cheiro e os vazamentos são detectados mediante rastreamento do cheiro até sua origem. Ver http://www.answers.com/topic/smell-test)
Alguns “libertários” de direita, que mais cuidam de defender os interesses das grandes empresas do que princípios de livre mercado enquanto tais, gostam de dizer que Pinochet era “economicamente libertário mas politicamente autoritário.” Bobagem!
As políticas econômicas de Pinochet foram mais capitalistas de estado do que libertárias.
Não duvido nem um pouco de que as novas leis do trabalho de Pinochet “trouxeram flexibilidade ao mercado de trabalho chileno.” Todo aquele pessoal pendurado em ganchos, e diversas outras formas de imposição de desconforto, seguramente tornariam aqueles trabalhadores arrogantes tão dóceis quanto alguém pudesse desejar. É bom não esquecer, até o mais ortodoxo dos economistas marginalistas considera o trabalho como “fator de produção” em nível de igualdade. No Chile, os donos desse “fator de produção” específico que tentaram organizar-se e negociar melhor índice para seus serviços frequentemente vieram parar em fossos com a cara retalhada. Gerentes de fábricas conduziam membros da polícia até o chão de fábrica para apontar para organizadores do trabalho e agitadores, para eles serem subsequentemente “desaparecidos,” torturados e assassinados — com as barrigas, como Lind destaca, rasgadas abertas antes de eles serem lançados ao oceano a partir de helicópteros. Acham vocês que se um ditador de esquerda tivesse tomado medidas semelhantes contra os donos do capital, para reduzir-lhes o poder de barganha, isso seria descrito como “politicamente autoritário mas economicamente libertário”?
Libertários genuínos opõem-se à concessão de títulos artificiais de terra não ocupada e não melhorada, por meio dos quais a aristocracia rural consegue manter a propriedade de terra sem uso ou cobrar tributo daqueles que nela se instalem ou a cultivem. Segundo esse padrão libertário, todo o sistema quase-feudal de hacienda que prevalece na América Latina é completamente ilegítimo. Até oitenta por cento da terra de uma hacienda são não desenvolvidos, enquanto pobres camponeses vizinhos trabalham como trabalhadores agrícolas na propriedade do dono — terra que seus ancestrais provavelmente partilhavam para cultivo. Por qualquer princípio legítimo de libertarismo de livre mercado, essa terra pertenceria aos camponeses. A revogação parcial da reforma agrária de Allende por Pinochet foi furto, pelos padrões libertários, tanto quanto os Cercados [Enclosures] na Inglaterra ou a coletivização forçada na URSS.
O programa de “privatização” de Pinochet, como a maioria dos outros exemplos de tais políticas implementados em todo o mundo sob o Consenso de Washington, foi na realidade pilhagem corporativa. O ciclo típico de “privatização” é o seguinte: tecnocratas do Banco Mundial, em conluio com seus similares nativos na burocracia do estado, persuadem um regime completamente acima de qualquer prestação de contas a seu povo a ir fundo no endividamente para financiar infraestrutura pública — principalmente serviços públicos e infraestrutura rodoviária, para subsidiar investimento de capital estrangeiro e torná-lo mais lucrativo. Uma vez o regime tornado devedor, o Banco Mundial e o FMI agem como uma “loja da empresa(*)” para extorquir comportamentos desejados do regime. Além de ratificarem o protecionismo da “propriedade intelectual,” tais medidas usualmente implicam em políticas de “ajuste estrutural” tais como “privatização” da infraestrutura, amiúde com venda dela, para começo de conversa aos mesmos investidores globais para subsídio aos quais ela havia sido construída, a preços de liquidação para fechamento da loja. A venda é amiúde precedida de enorme montante de gastos do governo para tornar os ativos atraentes o suficiente para ser vendidos. A primeira ordem do dia do novo proprietário, naturalmente, é vender os ativos individualmente, ganhando geralmente muito mais do que o preço de compra. E os recentemente privatizados serviços do estado continuam a funcionar dentro de uma teia de proteções corporatistas feitas cumprir pelo estado, de tal maneira que os serviços estatais “privados” não tenham de competir num livre mercado. (* Parte do chamado truck system, no qual os trabalhadores eram pagos em mercadorias ou em alguma moeda interna à empresa, sendo assim forçados a fazer suas compras na loja da empresa, onde os preços eram mantidos artificialmente altos. Verhttp://en.wikipedia.org/wiki/Truck_system)
A maioria dos “Acordos de Livre Comércio” são em realidade medidas protecionistas corporativas que têm tanto a ver com livre comércio quanto o Ministério da Verdade tinha a ver com a verdade. O mesmo pode ser dito da extensão na qual a maior parte das “reformas de livre mercado” têm que ver com reforma de livre mercado.
A crítica de Lind incorre em dose extra de ironia quando consideramos o papel de Franklin Delano Roosevelt e Truman na criação do Império Estadunidense global pós-guerra, e o papel dos liberais da Guerra Fria na elevação ao poder de ditadores reacionários quando “comunistas” como Arbenz ameaçaram a santidade moral das bananas da United Fruit. Sukarno e Diem foram derrubados como parte da política de contrainsurgência de “arcar com qualquer ônus, pagar qualquer preço” de Santo Kennedy, a qual foi levada a efeito por liberais idealistas de Harvard e Georgetown.
Os cleptocratas de Boris Yeltsin levaram a efeito, na Rússia, políticas muito similares às da “reforma de livre mercado” de Pinochet no Chile. E Jeffrey Sachs — vocês sabem, o mesmo sujeito progressista que confraterniza hoje em dia com Bono e Warren Buffet — foi pelo menos tão merecedor de reprovação no processo quanto Friedman jamais foi.
Lind cita extensamente de uma carta de 1857 de Macaulay:
Está bastante claro que o Governo de vocês nunca conseguirá conter uma maioria desiludida e descontente. Pois com vocês a maioria está o Governo, que tem os ricos, que são sempre minoria, absolutamente à sua mercê. Dia virá quando, no Estado de New-York, uma multidão de pessoas, nenhuma das quais terá comido mais do que meio café da manhã, nem terá esperança de ter algum dia mais de meio jantar, escolherá um Legislativo. Será possível ter dúvida quanto ao tipo de Legislativo que será escolhido? De um lado haverá um estadista pregando paciência, respeito pelos direitos adquirdos, estrito respeito à confiança do público. Do outro lado estará um demagogo verberando contra a tirania dos capitalistas e usurários, e perguntando por que se deveria permitir a alguém beber champagne e andar de carruagem enquanto milhares de pessoas honestas não têm o necessário básico. Qual dos dois candidatos será provavelmente preferido por um trabalhador que ouve seus filhos chorarem pedindo mais pão?
O problema de Lind é ele ter uma visão de imagem no espelho de todos os “simpatizantes da autocracia” que critica: as intervenções “progressistas” do estado resultam do poder da maioria sobre a minoria. Ele ignora a possibilidade de o motivo pelo qual todas essas pessoas tinham apenas meio café da manhã era o estado estar intervindo ativamente para promover os interesses da minoria contra os da maioria, e não haver muito de libertário nos “direitos adquiridos” de Macaulay.
A polarização de classes na Inglaterra de Macaulay foi a culminância de uma série de eventos que incluíram os Cercados dos Tudor e do Parlamento, a nulificação da posse por enfiteuse, a Lei Antissindicatos/Antinegociações Trabalhistas e as Leis do Assentamento. Na Inglaterra, nas palavras de J.L. e Barbara Hammond, o governo desmontou a sociedade e a montou de novo de modo muito parecido com aquele pelo qual um ocupador estrangeiro a montaria num país conquistado. A revolução industrial, do modo como aconteceu, foi um golpe de estado contra a sociedade, por meio do qual a maioria da população trabalhadora teve roubada sua propriedade da terra, foi transformada pela força num proletariado sem propriedades, restringida quanto à livre associação e constrangida em seus movimentos por um sistema de passaporte interno. A principal função do estado, em outras palavras, era capacitar uma classe privilegiada a viver dos rendimentos de direitos artificiais de propriedade e de escassez artificial.
Embora os direitistas gostem de apresentar a questão como dizendo respeito a impedimento de o estado redistribuir a riqueza para baixo, a real questão diz respeito a conter a redistribuição da riqueza para cima pelo estado.
Como os pretensos amigos da autocracia que Lind critica, o próprio Lind parece acreditar que uma aparente “democracia representativa” possa funcionar como governo genuinamente popular, e represente ameaça real ao privilégio arraigado. Um século do que Noam Chomsky chama de “democracia formal” ou “democracia de espectador,” contudo, já mostrou os experimentos em governo representativo serem governados pela Lei Férrea da Oligarquia de Robert Michels: “É organização que dá origem ao domínio dos eleitos sobre os eleitores, dos mandatários sobre os mandantes, dos delegados sobre os delegantes.”
O anarquista P. J. Proudhon comparou a democracia representativa com a monarquia constitucional: “Em vez de dizer, como o fez M. Thiers, o Rei reina e não governa, a democracia diz o Povo reina e não governa, o que é negar a Revolução…”
As assim chamadas políticas “progressistas” do estado assistencialista-regulamentador do século 20, quando examinadas mais de perto, revelam-se ser medidas adotadas pelo estado como “comissão executiva da classe dominante (corporativa).” Sua finalidade precípua foi a de estabilizar a economia corporativa e garantir taxa previsível de lucro mediante restrição à competição, garantindo demanda agregada suficiente para utilização plena da capacidade industrial, e para impedir níveis desestabilizadores de destituição. Como mostrado por Gabriel Kolko em O Triunfo do Conservadorismo, os atores principais por trás do regime regulamentador da Era Progressista eram as indústrias regulamentadas, que buscavam cartelizar seus respectivos mercados por meio do estado. G. William Domhoff já mostrou, numa série de estudos de política maciçamente documentados, que as políticas econômicas do Novo Pacto de Franklin Delano Roosevelt refletiam os interesses de apenas uma ala do capital organizado. Quaisquer benefícios incidentais que essas políticas tenham acarretado para a pessoa média não foram precipuamente resultado de pressão democrática vinda de baixo, e sim um efeito secundário da promoção, pela classe dominante corporativa, de seu interesse próprio.
Em outras palavars, o estímulo político por trás do programa de Vales Alimentação teve muito mais a ver com os interesses do agronegócio do eleitorado de Bob Dole do que com o imensamente poderoso bloco votante das mães solteiras desempregadas.
Roderick Long, numa postagem de Libertários de Coração Dilacerado (“Libertários Calçando Botas de Cano Alto?” 30 de agosto), questiona a “generosa assunção”
de que as democracias existentes sejam realmente majoritárias. Como muitos libertários já argumentaram, a lógica do governo monopolista e da captura dos interesses especiais explica por que as “democracias” da vida real tendem a ser oligarquias plutocráticas com aspecto exterior democrático.
Por cima de tudo Lind repete a tolice de Lawrence O’Donnell acerca do alegado silêncio dos libertários acerca de “abusos da política e da instituição militar.” Ele seriamente nunca ouviu falar de Radley Balko? Liberais do The Nation em verdade têm tratado as críticas libertárias acerca do regime da Administração da Segurança do Transporte – TSA de “seus documentos, por favor” como conspiração insincera da direita para desacreditar o governo. Se Lind honestamente não está ciente de o quanto são realmente disseminadas as críticas dos libertários ao estado policial e ao estado de segurança nacional, isso provavelmente diz algo acerca do valor da opinião dele.
Artigo original afixado por Kevin Carson em 10 de setembro de 2011.
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.