Por Crimethinc. Artigo original: Making Sense of the PKK’s Self-Dissolution, 19 de julho de 2025. Traduzido para o português por p1x0.
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O que isso significa para o Oriente Médio?
Em 12 de Maio de 2025, o Partido dos Trabalhadores Curdos (Partiya Karkerên Kurdistanê, PKK) anuniou sua dissolução após mais de quatro décadas de luta armada contra o governo turco. O fato se deu logo após um chamado do líder aprisionado do PKK, Abdullah Öcalan, pelo fim da organização. Em 11 de Julho, combatentes do PKK participaram de uma cerimônia simbolizando seu desarme. O que isso significa para os movimentos curdos por libertação e para o Oriente Médio como um todo?
Na análise que se segue, uma militante feminista curda se baseia em seus mais de dez anos de participação em pesquisas e participação em movimentos de libertação curda para explorar estas questões. Criada no Irã e vivendo na diáspora curda, a autora, Soma.r, tem estado em contato próximo com mulheres que participam e permenece ativamente conectada com o movimento.
Introdução
Um grupo de combatentes do PKK simbolicamente se desarmou em 11 de Julho de 2025, nas Cavernas de Jasna, localizada na região autônoma curda do Iraque. O local carrega uma profunda significância histórica e política: em 1923, ela serviu de refúgio e base de comando durante os ataques coloniais britânicos. Naquele mesmo ano, as Cavernas de Jasna se tornaram o local clandestino para a impressão do Bangî Haq (“Chamado da Verdade”), o primeiro jornal revolucionário curdo, fundado pelo jornalista Ahmad Khwaja. Reunindo assim resistência anticolonial, luta política, e jornalismo clandestino.
Um século depois, o ato de se desarmar aqui não significa rendição — é uma declaração política, ecoando através das camadas do tempo. Ele traça uma linha entre o passado e o presente, evocando a memória como estratégia. Ao escolher Jasna, os combatentes nos lembram: revoluções podem mudar de forma, mas nossas raízes são profundas. Onde um império uma vez buscou silenciamento, vozes curdas imprimiram a verdade. Onde hoje armas são depostas, novas lutas podem surgir — enraizadas no mesmo solo,mas moldadas por novos imaginários.

Este ato ganha ainda maior ressonância sob a luz de eventos recentes. Apenas dois dias antes, Abdullah Öcalan, o lendário líder do PKK, reapareceu em uma mensgem de vídeo — a primeira desde 1999 — chamando pelo fim da luta armada e clamando por uma mudança definitiva em direção a políticas democráticas. Este movimento não é um convite a mera comemoração, mas a interpretação: como um movimento de guerrilha, uma vez sinônimo de luta armada, performa transformação política através de atos simbólicos?
Para compreender a autodissolução do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), devemos considerar a amplitude de sua base social, que é de dezenas de milhões. Desde a prisão de Öcalan em 1999, o movimento curdo na Turquia cresceu para além de suas origens guerrilheiras para um projeto político complexo enraizado em participação diversa, urbana e rural, secular e religiosa. Curda e não-curda — apesar do proletariado continuar sendo central. Ele hoje opera através de uma estrutura híbrida combinando um braço armado em Qandil com uma ampla rede incluindo sindicatos, municípios, partidos formais, organizações de mulheres, mídia e plataformas de solidariedade transnacionais. Suas práticas políticas são ao mesmo tempo territoriais e transnacionais, legais e clandestinas, militarizadas e profundamente socias. Entre suas mudanças mais transformativas está a ascenção do Movimento de Libertação das Mulheres Curdas (KWLM), que reposicionou a emancipação de gênero tanto como um cerne simbólico quanto estratégico. Ao longo das cartas de Öcalan, o projeto de Rojava e o papel expandido do KWLM são consistentemente mantidos como uma das conquistas mais significativas do PKK.
Em um significativo desenvolvimento para a paisagem política do Curdistão, o PKK anunciou sua dissolução após seu décimo segundo congresso. Esta decisão foi moldada por uma série de diálogos inciados em Outubro de 2024, envolvendo Abdullah Öcalan (via seu sobrinho e a delegação do Povo por Igualdade e do Partido Democrático) e motivado pelas declarações de Devlet Bahçeli, líder do Partido do Movimento Nacionalista (Milliyetçi Hareket Partisi, MHP), um partido ultranacionalista de extrema-direta da Turquia. Öcalan enfatizou a necessidade da transição da questão curda da luta armada para as política democrática, declarando que ele teria a capacidade de liderar esta mudança se as condições permitissem.
Em resposta, o PKK iniciou consultas internas e expressou sua disponibilidade em compor um congresso guiado por Öcalan. Em 27 de Fevereiro de 2025, Öcalan oficialmente fez um “Chamado por Paz e por uma Sociedade Democrática”, clamando ao PKK que enecerrasse suas atividades armadas e tomasse responsabilidade em atingir uma resolução pacífica. Em resposta, o PKK declarou um cessar-fogo unilateral em primeiro de Março. Isto foi seguido pelo décimo segundo Congresso, onde a decisão de dissolver o PKK e pôr fim a sua campanha armada foi formalmente adotada pelas lideranças do PKK e do Partido das Mulheres Livres do Curdistão (PJAK).1
A visão estratégica de Öcalan foi melhor desenvolvida na edição de Maio de 2025 (No. 521) do Serxwebûn, a publicação mensal oficial do PKK. Essa edição final apresentou as 20 páginas do documento que Öcalan enviou ao Congresso, junto de uma carta com quatro argumentos direcionada aos delegados, expondo o modelo político para a transição para uma fase pacífica e democrática do movimento curdo. Anunciando o fim de uma história de 44 anos ininterruptos, a revista declarou: “Tudo está em seu lugar, para um novo e mais forte começo.”
Na sua carta de 27 de Abril, Abdullah Öcalan expõe sua visão para uma visão transformativa de uma era pós-PKK, centrada em nacionalismo democrático, economiais comunais e ecológicas, e, modernidade democrática como uma alternativa tanto para o estado-nação capitalista quanto para o socialismo real. Ele propõe uma sociedade democrática como o programa político de uma nova era — uma que não busca capturar o estado mas criar estruturas de base autônomas como comunas. Dentre deste modelo, conceitos como socialismo democrático, comunalismo, e confederacionismo regional se tornam centrais para a libertação curda e transformações regionais mais amplas. Öcalan se refere a isso como uma nova forma de internacionalismo e clama a todos os agentes a tomarem responsabilidade em materializá-lo, sugerindo que os sucessos no Curdistão poderiam reverberar através da Turquia, Síria, Iraque e Irã.2 Os textos desta edição — incluindo discursos, resoluções, e documentos do congresso —refletem uma tentativa de reconfigurar o horizonte estratégico do movimento.
O recente chamado de Öcalan pela dissolução não é sem precedentes, já que o PKK tem oscilado entre a luta armada e negociações. Entretanto, este momento demonstra uma mudança ideológica mais profunda: desde 2004, o movimento tem se reestruturado ao redor do ”confederalismo democrático” via a União das Comunidades Democráticas do Curdistão (KCK) — uma estrutura abrangente que inclui o PKK mas que nitidamente está de ausente do plano de dissolução.
O significado da “dissolução” permanece altamente ambíguo. Ele assinala o fim do PKK, um mera reformulação da marca, ou uma mudança tática dentro de um arco mais longo de adaptação política? Mais críticamente, o que o encerramento de uma estrutura que historicamente tem borrado os limites entre luta armada e mobilizações de base significam para as lutas antiestatais e anticoloniais da região?
Mesmo dentro do PKK, as interpretações variam. Zagro Hiwa, o porta-voz de Relações Internacionais do KCK, disse na Sterk TV que as ressoluções chamam pelo fim do conflito armado — não pelo desarmamento — quando questionado sobre sua praticidade, dada a proximidade de cem metros entre soldados turcos e as guerrilhas. Outros discordam. Amir Karimi, do PKK do Irã-Curdistão, afirmou, “Aqueles que mais lutaram e resistiram, têm maior direito de falar sobre paz.” Enquanto isso, o Porta-voz do Parlamento Turco, Numan Kurtulmuş, enquadrou o processo como parte de um esforço nacional para resistir a fragmentação imperialista:
“O Iraque e a Síria foram fragmentados, o Líbano se tornou ingovernável. A Líbia, o Sudão, e a Somália foram divididos. Estes países se tornaram campos de batalha alimentados por divisões religiosas, étnicas e tribais, e alguns foram desmantelados através de organizações terroristas. Poderíamos ter passivamente esperado passivamente a nossa vez de sermosdesmobilizados, como uma ‘vaca amarela’, ou turcos, curdos e todos os outros poderiam se unir para derrotar a agenda imperialista. Nós escolhemos a segunda opção, e estamos dispostos a seguirmos adiante, juntos.”
Evidentemente, este chamado gerou divisão, incerteza e uma ampla gama de respostas entre ativistas curdos. Aqui, iremos analisar estas questões observando a evolução histórica do PKK em relação aos processsos de paz, e explorar as implicações mais amplas de sua dissolução para os movimentos decoloniais, antiestatais e anticapitalistas contemporâneos.
Começaremos com uma breve observação sobre como a violência revolucionária surgiu através da luta armada no movimento curdo, e como essa trajetória se envolveu com uma série de inciativas de paz fracassadas que geralmente reproduziram novos ciclos de guerra. Então, poderemos nos voltar a questão principal: por que o PKK buscou um desarmamento unilateral? Examinaremos sua decisão em relação a dinâmicas em mudança nos níveis regionais, nacionais e globais. Por fim, iremos refletir sobre as consequências, incertezas, e cálculos estratégicos que permeiam este movimento, concluindo com uma leitura de gênero que destaca o papel dos movimentos de libertação das mulheres curdas em dar forma aos limites e possibilidades deste processo.

A Provação Curda da Violência Estatal e Não-Estatal
Conforme declarado pelo PKK, em 12 de Maio, 2025:
“O PKK nasceu como um movimento de libertação contra as políticas de negação ao povo curdo, consolidadas no Tratado de Lausanne e na Constituição Turca de 1924.”
De uma “nação” imperial reconhecida, os curdos se tornaram “minorias étnicas” em estados que os reprimiram, assimilaram, e os apagaram. Apesar de serem 40 milhões —20% da população da Turquia — Curdos permanecem como o maior povo sem um estado, excluídos de reconhecimento político e cultural.
A repressão estatal frequentemente tem tomado formas genocidas: A campanha Anfal no Iraque (1987–1988) assassinou 180,000 curdos; as políticas de desnacionalização curda na Síria dos anos 1960 deixou dezenas de milhões sem um estado; o Irã enquadra ataques a regiões curdas como jihad; e a Turquia há muito baniu as palavras “curdo” e “Curdistão”, rotulando curdos como “turcos das montanhas”. A guerra entre o PKK e os militares turcos sozinha, já ceifou mais de 40.000 vidas, em um contexto mais amplo conflitos curdos mataram mais de 250.000 desde os anos 60.
A República da Turquia foi construída sobre o genocídio de armênios e a negação da identidade curda, ambos surgindo para impor um projeto nacionalista homogenizante. O PKK emergiu nos anos 1970 em uma resposta direta a seu regime excludente. Sua oposição não foi apenas militar, mas cultural e política, como simbolizado pela declaração da parlamentar Leyla Zana em 1991 (“Eu faço este voto pela fraternidade das pessoas turcas e curdas”) — em curdo — pelo qual ela cumpriu dez anos de prisão.
Hoje, o imperialismo turco combina colonialismo interno com expansão neo-colonial. Desde 2016, Ankara empregou milícias islamistas por procuração — como o “Exército Nacionail Sírio” (SNA) — ao longo do norte da Síria (Afrin, al-Bab, Azaz, Jarablus, Idlib). Estas milícias permitem que a Turquia terceirize atos de guerra enquanto avançam a agenda neo-Ottomana de arabização forçada, islamização, e engenharia demográfica. Promessas de mais de $2500 atraem a juventude sobrevivendo em míseras dezenas de dólares, transformando a guerra em empregos precários.
Desde 2015, a Turquia tem lançado sucessivas operações — Euphrates Shield, Olive Branch, Peace Spring — ocupando áreas curdas, deslocando populações, e facilitando saques, violência em massa, e engenharia etno-política. Ataques aéreos no Iraque em Qandil e Sinjar têm se intensificado, com poucas respostas globais. Este modelo de guerra — privatizada, precária, e transnacional — se extendeu até a Líbia (2019-2020), Azerbaijão (2020), Yemen, Nigéria, e Paquistão. Redes paramilitares ligadas a inteligência turca, como a Sultan Murad Brigade, operam de vilarejos curdos como Sinara, próximo de Afrin.
O alcance da Turquia também é extraterriotorial: na Europa, ativistas curdos são vigiados, extraditados ou mortos. O assassinato de figuras chave do movimento feminista como Sakine Cansız (Paris), Hevrîn Xelef (Síria), e Nagihan Akarsel (Iraque) refletem uma estratégia de gênero de decaptar lideranças revolucionárias e barrar a articulação feminista transnacional. O imperialismo turco funde militarização turca, economias transnacionais de guerra, e soberanias fragmentadas, produzindo uma violência desregulada em que lógicas de mercado sobrepõem interesses estatais.
Essa violência extraterritorial não é uma extensão isolada do poder estatal, mas um mecanismo central de uma agenda geopolítica mais ampla. Essa projeção agressiva de força não é meramente oportunista; ela é parte de um projeto neo-otomano, neo-colonial mais amplo que busca retomar a influência turca em seus antigos territórios. A integração da geografia e recursos curdos é central para essa visão de arquitetura emergente do comércio global — especialmente através do Corredor do Meio, discustido abaixo.
Entretanto, essa violência gerou uma resistência igualmente transnacional. O PKK tem politizado a questão curda, transformando uma população sem estado em um sujeito político organizado. Liderado em grande parte pelas mulheres, esse projeto permanece uma das poucas visões revolucionários contemporâneas centrada em justiça social, pluralismo, e críticas radicais ao poder. Contra estatistas, campistas, ou esquerdismos nacionalistas, que são predominantemente moldados pelo militarismo vertical, e paradigmas masculinistas, o movimento curdo — especialmente sua dimensão feminista — muda os paradigmas centrados no estado para formas corporificadas, localizadas e solidárias. Seu slogan, Jin, Jiyan, Azadî (“Mulher, Vida, Liberdade”), forjado em décadas de lutas subalternas, se tornaram um grito global durante o levante iraniano de 2022.
Mas a resistência se tornou possível através da luta armada. E isso nos trás a questão principal: o que será do horizonte revolucionário curdo com o anúncio da dissolução do PKK?

Paz como Máscara para a Guerra: A Recorrente Traição do Movimento Curdo
O repetido colapso dos processos de paz no Curdistão revela não uma falta de comprometimento curdo mas a arraigada recusa de estados regionais de reconhecer os direitos curdos. No Irã, os diálogos de Viena de 1989 se encerraram com o assassinato do líder curdo Abdul Rahman Ghassemlou e seus colegas — um ato replicado no assassinado de seu sucessor, Sadegh Sharafkandi, em Berlin em 1992. No Iraque, o rompimento do Acordo de Autonomia de Bagdad nos anos 1970 levou a campanha genocida de Anfal.
A Turquia seguiiu uma trajetória similar. Enquanto o movimento curdo consistentemente buscou diálogo, a política estatal turca oscila entre breves gestos de paz e repressão sistemática. No começo dos anos 1990, a iniciativa do presidente Özal morreu com ele, e a década que se seguiu viu uma massiva repressão estatal, incluindo tortura, deslocamentos forçados, e apagamento cultural. A captura de Abdullah Öcalan em 1999, marcou uma mudança: ele chamou por um cessar-fogo e a dissolução do PKK. Entretanto a resposta punitiva do estado somente aprofundou a desconfiança curda.
Apesar da repressão, o movimento curdo se transformou. Em 2004, surgiu o confederalismo democrático, rejeitando nacionalismo em favor de um pluralismo popular. A resistência armada continuou junto de estratégias políticas-legais, culminando nas vitórias eleitoriais do Partido Democrático Popular (Halkların Demokratik Partisi, HDP). Mas esforços pela paz, como os diálogos de Oslo (2008–2011)3 e os Processos de Imrali (2013–2015), foram sabotados pelo estado. Primeiro o vazamento das negociações incitou um escândalo nacionalista em 2009; depois, em 2015, o presidente turco Recep Tayyip Erdoğan abandonou o Memorando de Dolmabahçe em resposta aos avanços curdos na Síria, especialmente a vitória do YPG e do YPJ (as Unidades de Defesas Populares e as Unidades de Proteção das Mulheres) em Kobanê. O colapso do processo de paz gerou uma repressão brutal que desalojou mais de 350.000 pessoas e resultou na morte de cerca de 1700 indivíduos. Em Agosto de 2016, Erdoğan negava que quaisquer negociações houvessem acontecido. Desta perspectiva, os gestos do governo turco em direção a negociações de paz tem geralmemente apontado para sua preferência por operações militares, seja via guerra ou golpe.
Para muitos curdos, a luta armada se tornou uma necessidade existencial contra o que eles veem como a dominação colonial precisamente como resultado deste conflito assimétrico, que alguns descrevem como uma “guerra contra a paz”. Inspirados por Fanz Fanon, o PKK enquadra a violência como autodefesa estratégica. Enquanto críticas internas questionam a guerra urbana e a militância prolongada, persiste um amplo apoio curdo, enraizado no trauma histórico e no fracasso de vias políticas. A persistente caracterização do estado da identidade curda como uma ameaça reforça o impasse.
Em 2025, este horizonte parece mais ilusório do que nunca. Mas “tudo que é sólido desvanece no ar”. Como destacado pelo acadêmico curdo Adnan Çelik e outras vozes dentro do movimento, a mensagem de Öcalan durante o décimo segundo congresso do PKK, por mais que inesperada, aponta para uma ruptura: em contraste com seu chamado de 2015 para uma “abertura democrática”, a declaração de 2015 suprimiu a riqueza ideológica de apelos anteriores, omitindo críticas aos Estado-nação, capitalismo neoliberal, colonialismo interno e patriarcado. Enquanto a declaração inicial pinta o PKK como uma relíquia da Guerra Fria desprovida de estratégia ou legitimidade ideológica — chamando por seu desarmamento sem concessõe políticas ou o reconhecimento das históricas reivindicações curdas — essa posição é parcialmente revisada na carta de 27 de Abril, que dedica grande atenção para a história da repressão curda por estados regionais e o legado de resistência do PKK.
Amplamente percebido como uma capitulação unilateral, a mudança de Öcalan provocou choque dentro do movimento — com muitos a interpretando como uma forma de humilhação implícita e de apagamento de sacrifícios do passado, de acordo com Çelik. Ainda assim, invés de gerar um colapso, ela gerou respotas organizacionais imediatas — como a proposição da dissolução do congresso — e um intenso esforço de preservar legados críticos. Este momento assinala uma grande reconfiguração estratégica, mudando o foco da busca por um projeto sociopolítico para a administração de uma herança militante, memória, e resiliência política em meio a uma paisagem geopolítica transformada.
Hoje, a questão curda permanece estruturalmente não resolvida. A reconciliação é impossível enquanto o estado turco oscilar entre ofertas de paz vazias e repressão brutal. Enquanto o estado se agarra a paradigmas nacionalistas, o movimento curdo continua a se adaptar — entre insurgência e imaginação, memória e resiliêcia.
Essa tensão entre negacionismo estatal e resistência curda vem aos holofotes no discurso de 12 de Julho de Erdoğan, no marco do pós-desarmanto, onde ele oficialmente reconheceu que o estado turco cometeu assassinatos em massa de curdos, os negou direitos, e iniciou esta violência em locais como a prisão de Diyarbakır. Ele admitiu o incêndio de vilarejos e a criminalização de indivíduos não identificados, o banimento da linguagem curda, e a proibição de que mães curdas falassem no idioma com suas crianças. Realizado logo após o desarmamento simbólico do PKK, o discurso, insistindo na unidade de turcos, curdos, e árabes, marca a mudança da insurgência para a reconciliação, servindo como um espetáculo orquestrado pelo estado no qual o estado turco reafirma sua soberania ao controlar a narrativa tanto da violência do passado quanto a ordem futura, se posicionando como o único árbitro da memória, verdade, e legitimidade histórica. Enquadrado como um ato de conclusão, este momento na verdade consolida a autoridade do estado. A dissolução da luta armada curda não é recebida com genuína transformação política, mas com uma contenção simbólica. O que se parece com paz é, na realidade, uma reformulação da dominação, preparando o palco para novas formas de controle sobre o disfarce da reconciliação.

Por que a Dissolução?
Em uma carta datada de 25 de Abril de 2025, Abdullah Öcalan articulou a racionalização por trás da proposta de dissolução do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), a enquadrando não como uma derrota, mas como uma mudança de paradigma deliberada. Ele destacou que este processo, longe de ser um desarmamento imediato exigido pelo estado turco, exige uma profunda crítica ideológica, autorreflexão, e um prolongado debate para reformular tanto a personalidade quanto a mentalidade. O PKK, fundado para elevar a consciência nacional curda e expor a opressão sistêmica, agora enfrenta uma fase na qual o próximo passo em direção a liberdade deve ser construído por instituições democráticas, renovação cultural, e comunalismo 4 — transformações que o PKK como uma organização hierarquica armada não pode mais representar. É dentro desta trajetória que a dissolução deve ser compreendida: como a culminação de um rompimento teórico do modelo do estado-nação do século 20 e seu militarismo, definido pela violência sistêmica que agora “perde sua razão de ser (raison d’être)”. A visão do confederalismo democrático de Öcalan, baseado em autonomia local, igualdade de gênero, e economia ecológica, assinala um rompimento decisivo com os modelos estatistas, militarizados do passado e se move em direção a um projeto social pós-estado.
Essa evolução ideológica, entretanto, não é repentina ou pouco controversa. Desde os anos 1990, o PKK passou por importantes transformações internas, confrontando o colapso do socialismo e as tendências autoritárias inerentes a paradigmas estatístas. A sobrevivência do movimento tem dependido da adaptabilidade e engajamento crítico, culminando na decisão do Décimo Segundo Congresso de adotar a dissolução como uma reorientação radical mais do que uma capitulação. A carta enfatiza que a falha de duas décadas em integrar totalmente princípios democráticos, ecológicos e feministas nas estruturas organizacionais precipitou este momento de mudança decisiva.
Estrategicamente, a presença política curda tem ganho proeminência por toda Turquia e no Oriente Medio como um todo, especialmente através das inciativas de libertação das mulheres e avanços políticos em todas as quatro regiões curdas. Este progresso desafia a perspectiva turca de que o PKK é meramente uma entidade terrorista. O conselheiro da presidência, Mehmet Uçum, declarou recentemente que “Curdos são um componente essencial da nação turca”, apontando para uma recalibração ideolíógica no nível estatal.
Nesta situação, a dissolução do PKK pode ser vista como um movimento tático para remover obstáculos ao reconhecimento internacional, especialmente de estruturas curdas em Rojava, onde o rótulo de “terrorista” tem servido para justificar incursões militares turcas. O desarmamento busca proteger Rojava como um projeto político autônomo, garantindo sua sobrevivência e legitimidade no campo regional e internacional. Relatos sugerem que um encontro entre Abdullah Öcalan e Masoud Barzani (líder de loga data do Partido Democrático do Curdistão no Curdisstão Iraquiano) pode acontecer em breve — um acontecimento que, acima de tudo, fortalece a hipótese do surgimento de uma aliança com objetivo de reforçar a estabilidade de Rojava no contexto geopolítico atual.
Apesar das vitórias diplomáticas vindas do papel que as forças curdas exerceram na luta contra o ISIS, apoio internacional tem sido inconsistente. O chamado de Öcalan pela dissolução poderia ser uma estratégia preemptiva para evitar uma derrota total em meio ao crescente isolamento militar. Desde o colapso do processo de paz de 2015, intensificada pressão militar turca — operações extra-fronteiras, ataques com drones, e vigilância — tem confinado as operações do PKK principalmente a Qandil, erodindo sua capacidade dentro da Turquia. Mesmo o décimo segundo congresso do PKK, realizado recentemente, aconteceu 12 anos após o décimo primeiro Congresso, primariamente dado a falta de segurança e a pressão militar da Turquia. O PKK acessou este problema em uma carta lançada em 4 de Maio, endereçada as pessoas e ativistas do movimento.
“Um olhar retrospectivo às duas décadas passadas revela o seguinte: apesar do novo paradigma ter a intenção de facilitar uma integração mais profunda com a sociedade, na prática, foram os quadros internos que experienciaram uma maior desconexão com ele — mesmo quando o movimento como um todo se moveu em direção a descriminalização. Enquanto o objetivo seria cultilvar estruturas organizacionais mais fortes, o que emergiu foi a ascenção do individualismo e do materialismo. Isso é evidente em nosso engajamento com as massas, falhamos em oferecer uma educação adequada ou incentivar a organização de uma sociedade verdadeiramente democrática. No domínimo militar, nós fomos incapazes de desenvolver ou implementar treinamentos efetivos e organizações de autodefesa social. Nós permanecemos, nas montanhas, no nível das unidades de guerrilha desassociados da sociedade e completamente sitiados. Essa condição não somente levou ao aumento de casualidades mas também enfraqueceu o impacto político e de propaganda de nossa luta armada. Gradualmente, nossa capacidade de guerrear efetivamente acabou confinada a uma área geográfia bastante limitada.”
Avanços tecnológicos, notavelmente guerra algorítmica e vigilância em tempo real, acabaram por aprofundar este isolamento, conforme estados da OTAN priorizam relações com Ankara. Enquanto isso, a autonomia curda na Síria está sob ameaça da centraliação do regime, e a influência turca cresce no norte do Iraque com tácita aprovação local. Estas condições levaram o centro político do PKK da luta armada à busca por legitimidade civil e institucional ao longo das regiões curdas. A dissolução representa um desarmamento simbólico e uma reposicionamento estratégico, mudando a luta curda para arenas políticas e transnacionais, onde poder popular é redefinido fora do paradigma do confronto militar.
O declínio de recrutamentos do PKK e o fracasso em traduzir alianças anti-ISIS em apoio internacional duradouro destacou a necessidade dessa recalibração estratégica. A proposta de Öcalan é entendida por seus apoiadores não como uma rendiçãomas como uma adaptação lúcida a uma nova realidade militar e geopolítica, incluindo a possibilidade de um cessar-fogo temporário em Qandil e Rojava.
De acordo com vários analistas curdos, a posição de Öcalan reflete sua persistente oposição a Israel e sua relutaâcia em ver o movimento curdo forçado — por necessidade estratégica — a uma aliança tática ou pragmática com o país. Isto, eles argumentam, é o que guia sua busca por soluções políticas preemptivas, com o objetivo de evitar tais alinhamentos. Outros proponentes do movimento curdo consideram que a decisão de Öcalan e do PKK seria uma estratégia de prevenir que o Curdistão se torne a próxima Gaza do Oriente Medio. Eles argumentam que as limitações militares do PKK frente um aparato de guerra internacional e inter-estatal altamente tecnológico — junto da persistente campanha turca pela aniquilação do Curdistão e de Rojava — exige uma recalibração política. Esta mudança, eles sugerem, também é informada pelo enfraquecimento material e de poder simbólico da solidariedade global com a causa curda, que permanece significantemente mais fraca que as amplas mobilizações em apoio aos palestinos. Desta perspectiva, se a Turquia impusesse um cenário semelhante ao de Gaza contra os curdos, haveria pouca capacidade ou vontade internacional por intervenção. Com cada vez menos meios materiais de resistência e comparável ausência de mobilização regional ou internacional, atores curdos devem adotar estratégias alternativas para sobrevivência. Esta decisão portanto é vista não como um recuo, mas como uma tática calculada e pagmática para resistir dentro de um contexto geopolítico cada vez mais letal.
Esta mudança estratégica não pode ser entendida sem a compreensão do profundo custo humano do conflito. Guerrilhas curdas, núcleos do PKK, e especialmente civis estão exaustos; os custos cumulativos da guerra se tornaram insuportáveis. Milhares de vidas jovens foram perdidas, cidades inteiras destruídas, famílias sepradas, corpos estilhaçados, gerações moldadas pela prisão, exílio, precariedade e estigma. Esta acumulação de sofrimento de mais de quarenta anos dá a palavra “paz” uma nova ressonância: não como capitulação, mas como necessidade vital — um respiro há muito esperado após décadas de sufocamento.
Da perspectiva do estado turco, a dissolução se alinha com a estratégia política orquestrada por Recep Tayyip Erdoğan, que busca estender seu poder para além dos limites constitucionais de 2028. Ao se apresentar como o arquiteto de um novo processo de paz, Erdoğan tem a esperança de ganhar partes do eleitorado curdo enquanto fragmenta a oposição. Enquadrado como uma reconciliação, o chamado pelo fim dos conflitos armados é, na realidade, uma manobra para atrapalhar as alianças emergentes entre forças curdas e tendências progressistas da oposição. Em 2019, o apoio tático de eleitores curdos — especialmente via o HDP (o agora, Partido da Igualdade Popular, DEM) — foi crucial para a vitória da oposição em grandes cidades como Istanbul e Ankara. Esta estratégia tem como objetivo isolar facções nacionalistas-seculares dentro do Partido Popular Republicano (Cumhuriyet Halk Partisi,CHP) daqueles abertos ao diálogo com o movimento curdo enquanto mantém o discurso de securitização para o uso doméstico. Essa engenharia eleitoral se apoia em um cálculo duplo: enfraquecer a mobilização conjunta da oposição e deter as forças curdas de criticarem o regime de forma muito aberta, por medo de comprometerem a potencial paz.
Nesta configuração complexa, o movimento curdo se encontra em uma posição similar a dos protestos no Paruqe Gezi, em 2013. Então, qualquer abertura de diálogo com o estado paradoxalmente implica no reconhecimento de sua legitimidade, por mais que permaneça como principal objeto de contestação. Esta tensão exige que o movimento curdo adote uma postura de equilíbrio: participar de esforços de paz sem se dissolver nas políticas institucionais turcas ou alienar os movimentos sociais. O resultado é uma forma de isolamento estratégico, mas também pode ser uma oportunidade de construir um espaço político autônomo no qual a questão curda possa ser articulada sem armas, e ainda assim, sem desistência.
Enquanto isso, Erdoğan continua a explorar a retórica da securitização, criminalizando figuras políticas curdas e perpetuando o clichê do “inimigo interno” para consolidar sua base conservadora. O contraste entre a contínua repressão e a linguagem consiliatória de paz explicita a natureza cínica da iniciativa: não é um comprometimento genuíno à resolução mas um movimento tático disfarçado de diálogo.
Tanto Erdoğan e o estado turco como um todo buscam facilitar a integração do Curdistão e seus recursos aos mercados capitalistas contemporâneos através de seu desarmamento. Em um discurso sobre os novos processos de 2025, Erdoğan abertamente articulou os objetivos capitalistas que motivam esta iniciativa:
“Uma Turquia livre do terrorismo irá elevar a economia turca. Uma vez que alcemos este objetivo, a União Turca das Câmaras de Comércio de Commodities (TOBB) será a beneficiária primária. Deste ponto em diante, a Turquia irá competir em uma nova escala.”
Similarmente, o Ministro da Economia turca Mehmet Şimşek declarou que a Turquia gastou cerca de $1.8 trilhões na última década na “luta contra o terrorismo”, e encerrar o conflito poderia trazer benefícios economicos significativos ao país.
Esses imperativos econômicos, entretanto, não estão limitados somente a considerações domésticas. Elas estão entrelaçadas a todas as ambições geopolíticas da Turquia. O chamado processo de paz de 2025, entre Turquia e o PKK é menos um passo honesto em direção a reconciliação, e mais uma manobra geopolítica que busca neutralizar o poder militar e político dos curdos, como uma pré-condição para a integração da Turquia em um capitalismo neoliberal infraestrutural. Central para esta estratégia esta a realização do “Corredor do Meio”, uma rota de comércio trans-eurasiana conectando a China com a europa através da Ásia Central, o Cáucaso, e a Turquia. Este corredor posiciona a Turquia como um centro logístico na circulação capitalista global. Ele é curcial para a Iniciativa Cinturão e Rota da China (BRI, um projeto de váriõs trilhões de dólares ligando Europa, Africa, e o Oriente Médio através de rotas terrestres e marítimas) e o Corredor Índia-Oriente Médio-Europa (IMEC, um projeto de infraestrutura em competição, que busca assegurar o domínio comercial e geopolítico do Ocidente).
Ilustração 4: O “Corredor do Meio.”
Mais recentemente, essa visão foi reforçada pela Iniciativa da “Rota do Desenvolvimento” — um projeto de 17 bilhões, liderado pelo Iraque, Turquia,e os estados do Golfo, que ligam o Golfo Persa (via o Porto de Grand Gaw, no Iraque) com a Europa através do território turco. A rota proposta corta diretamente o sudeste turco, território majoritariamente curdo, amplificando as tensões da contenção curda. Após o 7 de Outubro e o desenrolar do genocídio de palestinos cometido por Israel, os alinhamentos geopolíticcos regionais se tornaram ainda mais desestabilizados — produzindo uma nova onda de políticas de corredor na qual a logística e a centralidade diplomática turca se intensificou. Em meio ao colapso das correlações de forças tradicionais no Levante e no Golfo, o controle Turco sobre essas rotas de infraestrutura — especialmente aquelas que contornam a influência iraniana e síria — se tornou ainda mais indispensável tanto para o Ocidente quanto para blocos não-ocidentais.
Mas para a Turquia consolidar seu controle sobre estas rotas, ela deve apagar todos os agentes subalternos e não-estatais, especialmente forças curdas. O desarmamento do PKK deveria, portanto, ser lido não como uma desmilitarização mas como o encerramento da luta armada curda sob um novo regime de sucuritização infarestrutural. Como o “corredor xiita” (no eixo Teerã-Damasco-Beirute) neutralizado, a derrubada de Assad, e o eixo do PKK e das Forças Democráticas Sírias (SDF) rompidos diante da pressão dos EUA e de Israel, agentes curdos foram estruturalmente removidos das negociações de poderes regionais. Com apoio tácito da OTAN, a Turquia deu cabo de operações militares e reengenharia demográfica para consolidar o controle sobre regiões curdas. Neste contexto, “paz” se torna um eufemismo para pacificação capitalista, com a reconciliação política substituída por contenção militar e espacial para permitir um fluxo ininterrupto de capital, bens, e influência geopolítica por corredores imperiais de extração e controle.
O endosso de Erdogan ao chamado pelo desarmamento do PKK deveria ser entendido no contexto amplo de mudanças geopolíticas no Oriente Médio e da evolução no balanço de poder na região. Isso também se reflete no uso estratégico turco das dinâmicas curdas para combater rivais como Israel e Irã. Um jogo complexo de cálculos políticos domésticos e regionais tem levado a Turquia a adotar esta tática. Isso é bem articulado em uma carta do comitê central do PKK, datada de 4 de Maio:
“A escalada da Terceira Guerra Mundial no Oriente Médio, os resultados dos conflitos em Gaza que começaram no 7 de Outubro de 2023, os significantes ataques do Hamas e do Hezbollah contra os assalttos de Israel, e o colapso do regime Ba’ath na Síria — assim, extendendo a transformação regional para o Irã e Turquia — todos têm um papel importante para nos trazerem a este momento. O medo e a ansiedade existencial engrendrado dentro do estado Turco e do governo AKP-MHP, combinado com pressões por mudanças democráticas impostas internamente pelo nosso movimento e pelo povo turco, e exrternamente pelo sistema capitalista transnacional, constituem nos principais fatores motivando a administração [Devlet] Bahçeli e sua bem conhecida retórica e chamados à ação. Consequentemente, nós alcançamos o estágio atual como resultado dos desenvolvimentos militares e políticos já mencionados.”
O paradoxo é profundo: um movimento possuíndo considerável força territorial e organizacional é forçado a reinventar a si mesmo precisamente pois este poder o torna suscetível a uma aniquilação algoriítmica. Finalmente, a proposta de Öcalan convida a completa reimaginação da luta revolucionária em uma era definida por drones, metadados e vigilância total. Ela desafia o movimento curdo a reimaginar uma forma de resistência que transcenda o conflito armado, buscando encontrar poder no silêncio e não nos tiroteios.
Ilustração 5: Armas queimadas durante a cerimônia reprsentando o desarmamento simbólico do PKK em 11 de Julho de 2025.
Da Guerrilha a Transição Política: Tensões, Esperanças e Horizontes
O anúncio do potêncial desarmamento do PKK em Fevereiro de 2025 levanta questões profundas sobre as condições sobre uma luta de guerrilha prolongada poder se transformar em um processo político, especialmente em um contexto marcado pelo recrudescimento do autoritarismo, da repressão, e becos ideológicos sem saída. Enquanto alguns interpretam este movimento como um sinal de reconfiguração estratégica e ideológica, ele permanece profundamente ambíguo. O governo turco, caracterizando o momento não como um “processo de paz” mas como um “processo de erradicação ao terrorismo” (“Terörden arındırma süreci”), aponta para posições punitivas e se afasta da linguagem consiliatória de 2015, levantando dúvidas sobre a possibilidade de uma resolução justa e abrangente.
Isso nos apresenta inúmeras perguntas urgentes. Pode a democratização na Turquia ser definida como meros gestos simbólicos — como a libertação condicional de Abdullah Öcalan (e levá-lo ao parlamento para chamar os curdos a recuarem de Qandil e abraçarem um caminho político pacífico) ou concessões culturais limitadas — ou ela deve compreender reformas constitucionais de longo prazo, a libertação massiva de prisioneiros políticos, e o reconhecimento formal dos direitos coletivos dos curdos, incluindo autonomia regional e o direito a educação no idioma curdo? A reinstalação de mandatos municipais que foram anulados, o retorno de exilados, e uma anistia geral seriam o suficiente para convencer o PKK que esté é um caminho político viável? Muitos temem que Erdoğan possa recuar em seus compromissos uma vez que tenha assegurado a vantagem política que busca, repetindo a traição do processo de 2015 e arriscando o retorno do conflito com o movimento curdo em uma posição de fragmentação e enfraquecimento de sua legitimidade.
Diferente de outros processos de paz — como os que envolveram o Exército Republicano Irlandês na Irlanda do Norte, as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC) na Colombia, ou a Euskadi ta Askatasuna (ETA) na Espanha — o estado Turco se recusou a interagir com a verdade e a reconciliação, reestruturação constitucional, ou reconhecimento político genuíno. Na Colômbia, por exemplo, o desarmamento foi acompanhado por iniciativas de justiva reparativa, geralmente lideradas por mulheres e sobreviventes da violência estatal. Há um potencial similar no movimento das mulheres curdas, entretanto o caso curdo permanece exepcional na sua sistemática criminalização e negacionismo da existência de um problema. Ao mesmo tempo, o que distingue o caso do PKK de muitos outros exemplos é que ele possui o apoio de movimentos políticos e bases civis influentes e poderosas. A luta não foi confinada somente a esfera militar, mas também se enraizou profundamente em arenas civis e políticas.
A decisão do PKK de engajar no desarmamento expõe contradições internas. Apesar de estar aprisionado desde 1999, Öcalan permanece a autoridade máxima do movimento, a centralizando as tomadas de decisão em uma estrutura vertical que suprime pluralismos internos. Sua declaração mais recente —“Eu posso dizer que os oponentes do processo não têm valor. E eles falharão.” — é a síntese de um modelo no qual autoridade carismática supera as deliberações coletivas, gerando uma crise de legitimidade na qual é esperado que combatentes e ativistas sigam diretrizes vindas de cima, sem mecanismo para participação em tomadas de decisão. Essa centralização reproduz uma base militantes despolitizada e enrigece a democratização interna necessária para uma transformação genuína.

Na paisagem em transformação, alguns analistas destacam dois desenvolvimentos que poderiam marcar os passos preliminares em direção ao desarmamento e a transição para uma ordem democrática. Primeiro, em um gesto simbólico, um grupo de guerrilheiros, alguns que previamente exerciam posições de liderança, publicamente depuseram suas armas na presença da mída, acompannhado da seguinte declaração:
Nós estamos prontos para participar da política democrática.
Segundo, o Parlamento Turco logo estabelecerá um comitê provisoriamente chamado de “Comissão para Paz Social e Transição Democrática”, com o objetivo de formular um modelo legal e institucional para apoiar o desarmamento e reformas democráticas mais amplas.
Apesar destas iniciativas inicialmente poderem se dar em uma escala limitada e simbólica, seus proponentes as enxergam como indicadores de uma vontade mútua para o avanço dos processos de paz. Ainda assim, experiências passadas, como o deslocamento de três grupos de guerrilhas para o estado turco entre 2000 e 2007, ressaltam a persistente vulnerabilidade de tais esforços para estados policais repessivos e uma resistente desconfiança estrutural que continua a prejudicar resoluções duradouras. Nem guerrilheiros, nem a liderança do PKK parece ser ingênua quanto aos riscos envolvidos. Eles parecem estar se aproximando do processo com um cuidado estratégico e previsão política, deliberadamente preservando a opção de retomar o conflito armado se necessário. Como Hozat,5 Copresidente do Conselho Executivo do KCK, declarou em uma entrevista após o desarmamento simbólico de 30 guerrilheiros no Curdistão iraquiano em Julho:
Se acatássemos incondicionalmente cada demanda feita pelo estado, o resultado seria o seguinte: seria esperado que outros grupos fizessem o mesmo — destruir suas armas, retorno a Turquia, e rendição. Se esse comportamento for a norma, o destino esperando por nós e nossos camaradas seria a prisão ou a morte. Mas não aceitamos esse futuro. O estado turco precisa entender isso.
Ainda assim, alguns dentro do movimento veem isso como uma oportunidade de transcender seu legado leninista militarista. Uma mudança em direção a uma participação civil mais abrangente e uma renovação interna poderiam reposicionar o PKK em um modelo democrático mais amplo. A emergência do Partido DEM como um agente relevante sugere a possibilidade de transformar uma formação nacionalista curda em uma força pluralística capaz de unir o eleitorado democrático turco. Entretanto, o risco do abandono — pelo estado turco e seus apoiadores internacionais — pairam no ar, trazendo a promessa de novos contingentes em reformas estruturais, não acomodações retóricas.
Um modelo de justiça transicional é crucial. Sem o reconhecimento das atrocidades do passado — especialmente durante os anos 90 e o brutal período de 2015–2016 — qualquer cessar-fogo continuará frágil. Verdade, reparação, e a decolinização de narrativas nacionais são pré-requisitos para uma paz significativa, a memória coletiva curda continuará carregando traumas que poderiam a reascender o conflito.
O contexto regional torna o desarmamento precário. A Síria permanece instável, e o frágil cessar-fogo entre forças curdas e Hayat Tahrir al-Sham (HTS), seguindo a mais recente Conferência da Unidade Curda, parece cada vez mais incerta. As atuais campanhas militares turcas contra as posições curdas no Iraque e Síria, incluindo mais de 500 ataques aéreos em zonas controladas pelo PKK no Curdistão iraquiano somente em Maio de 2025, limitam a praticalidade da transição de paz. Simultaneamente, rumores de ofertas de Ankara — do reconhecimento da autonomia curda na Síria em troca da dissolução do PKK — permanece vaga e pouco confiável. Uma ofensiva direta à Rojava ameaçaria o colapso da arquitetura civil e militar do projeto curdo.
Com essa configuração transnacional, o PKK não é uma força guerrilheira isolada mas parte de uma rede mais ampla estabelecida desde 2002 por todas as comunidades da União das Comunidades Curdas (KCK), que inclui o PYD na Síria (2003), PJAK no Irã (2004), e o PÇDK no Iraque (2002).Essas organizações irmãs, nominalmente autônomas, estão ideologicamente alinhadas com a visão de Öcalan de um confederalismo democrático e estão profundamente entrelaçadas a suas respectivas sociedades, especialmente através de iniciativas lideradas por mulheres. A ambiguidade do chamado ao desarmento de Öcalan — seja por focar exclusivamente na ala turca do PKK ou se estende a estas entidades aliadas — aumenta a incertaza. Alguns analistas sugerem que quadros internos poderiam ser realocados para outras frentes, como PJAK ou Rojava, invés de se desmobilizarem completamente, criando a possibilidade de uma dissolução mais tática que estratégica, Então, o destino das guerrilhas nas montanhas de Qandil continua incerto, conforme os sinais de Ankara são ambíguos e frequentemente contraditórios, borrando as fronteiras entre boato e realidade. Por exemplo, Şamil Tayyar quadro do AKP declarou que aproximadamente 300 quadros históricos do PKK seriam realocados para países terceiros como África do Sul e Noruega, enquanto aproximadamente 400 combatentes seriam gradualmente recebidos na fronteira. Mas, além destes comentários não-oficiais, que passos concretos — além de gestos retóricos— o estado turco de fato irá realizar?
Domesticamente, a supressão Erdoğan ao CHP — que historicamente tem sido um partido nacionalista secular cúmplice em políticas anti-curdas — revelam os paradoxos dentro da oposição turca. Para muitos curdos, o CHP segue parte do problema e não é uma alternativa, complicando a formação de uma coalizão democrática inclusiva. Enquanto isso, tensões internas dentro do movimento curdo, combinadas com a consolidação autocrática de Erdoğan, continua a fragmentar o campo político, tornando um realinhamento político pluralista incerto.
Apesar destes desafios, o movimento curdo demonstra uma incrível resiliência e adaptabilidade estratégica. Ele continua a articular uma visão política que resiste a militarização enquanto afirma o direito a autodefesa — se alinhando com lutas decoloniais globais. Em Rojava, por exemplo, a Administração Autônoma mantém uma formidável infraestrutura de segurança, incluindo as Forças Democráticas Sírias (SDF), YPG-YPJ, e forças Asayish, com estimativa de mais de 80.000 quadros. Em Rojhilat, o PJAK continua a organizar a oposição ao regime do Irã. Essas formações refletem um movimento transfronteiriço profundamente enraizado que não pode ser reduzido a um mero fenômeno de guerrilha.
Essa infraestrutura material sugere que mesmo que o processo atual fracasse, o PKK e seus aliados poderiam recomeçar, uma nova fase de resistência, talvez mais fragmentada e prologada. Décadas de guerra assimétrica, consolidação ideológica e integração social deram ao movimento uma capacidade de sobrevivência incomparável com muitos agentes revolucionários. Sua legitimidade vem não somente de sua capacidade militar, mas de seu cultivo de consciência política, libertação de gênero, e autonomia popular.
No cerne dessa esperança há uma questão ética mais profunda. Não seria profundamente injusto — talvez até cínico — projetar nossa visão de democracia radical, anticapitalismo, feminismo internacionalista, e antifascismo não-estatal em pessoas que já estão sobrecarregadas pela marginalização, repressão, pobreza estrututral, e incansável criminalização? Nós podemos, de boa fé, pedir que um povo geopoliticamente vulnerável e sob cerco carreguem sozinhos o peso de nossas utopiais revolucionárias? Como pode uma força revolucionária marginal — isolada política e militarmente, sem apoio internacional ou estatal — sobreviver não somente como uma organização, mas como representante de uma visão política e prática emancipatória? Como ele pode preservar seus ideais em um ambiente dominado por estados poderosos e agentes imperiais dispostos a o aniquilar com massacres, limpezas étnicas, e violência sexual sistemática? Este momento crítico nos obriga a reconsiderar os próprios termos da nossa solidariedade. Como nós podemos manter uma posição política radical em uma ordem global cada vez mais dominada pela militarização e autoritarismo, sem caírmos em abstrações românticas ou resignação política?
O que continua em jogo não é somente o destino de um grupo armado, mas a viabilidade do projeto político que redefiniu os parâmetros da luta no Oriente Médio. Conforme o espectro de uma nova guerra paira sobre promessas não cumpridas e escalada militar, o movimento curdo continua a levantar um questionamento universal: como pode uma força revolucionária, desprovida de um estado e enfrentando repressão brutal, preservar sua práxis emancipatória sem sucumbir a acordos comprometedores ou o apagamento ?

Repensando a Dissolução Através de uma Perspectiva de Gênero
Há muito na sombra do PKK, o movimento de mulheres curdas emergiu nos anos 1990 como um poderoso agente ideológico e organizacional — o que muitos descrevem como “uma revolução dentro da revolução”. Inicialmente marginalizadas dentro de uma estrutura militarizada e dominada por homens, as mulheres militantes curdas transformaram essa exclusão em uma oportunidade estratégica formando uma aliança dialética e recíproca com o líder do PKK, Abdullah Öcalan. Este relacionamento, longe da submissão patriarcal, permitiu que ambos partidos se tornassem recursos políticos mútuos: Öcalan instrumentalizou o movimento das mulheres para expandir e reformar o PKK, enquanto as mulheres usaram a autoridade simbólica dele para centrar a libertação de gênero dentro da luta curda.
O reconhecimento de Öcalan, das mulheres como “a força de vanguarda da revolução” foi vital para redefinir a liderança e legitimidade em um movimento há muito moldado pelo virilismo. Ele encorajou a criação de estruturas paralelas para as mulheres e apoiou a jineoloji, uma epistemologia feminista teorizada como central para sua visão de confederalismo democrático. Em troca, as mulheres curdas legitimizaram sua liderança ideológica. Elas reafirmaram, em especial, o chamado de Öcalan pela suspensão do conflito armado após sua captura em 1999 — um momento de profunda crise para o PKK marcado por deserções em massa entre 2002-2004 (aproximadamente 1500 combatentes deixaram o PKK durante a reorientação ideológica e disputas internas que culminaram em um retorno ao conflito armado no meio de 2004). A contínua lealdade das mulheres durante este período foi uma escolha estratégica com o objetivo de preservar a continuidade ideológica em meio a fragmentação e repressão.
Entretanto esta lealdade tem limites. Propostas por maior autonomia — como a criação de um Partido das Mulheres Tabalhadoras Curdas — foram bloqueadas pelo Comitê Central do PKK, revelando limitações estruturais persistentes. Ainda assim, a aliança se manteve, especialmente conforme a virada ideológica de Öcalan em 2005, em direção ao confederalismo democrático, colocou a igualdade de gênero no centro de um novo modelo político. Em 2012, Öcalan se recusou a receber uma delegação de paz sem representação do movimento das mulheres, ressaltando que seriam indispensáveis. Simbolicamente, em 2013, mulheres em Rojava anunciaram o YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres) no aniversário de Öcalan, reafirmando tanto a confiança em sua visão quanto sua declaração de militância autônoma.
Este paradoxo — construir a autonomia política das mulheres através de um líder homem — levanta tensões críticas. Enquanto o discurso de Öcalan promove a descentralização e desmilitarização, sua autoridade carismática permanece central. Assim, o horizonte do movimento feminista está entrelaçado a dependência estratégica. Os repetidos chamados de Öcalan pelo desarmamento do PKK, especialmente nos últimos anos, amplificam estas contradições: eles desafiam a masculinidade militarizada há muito interligada a luta revolucionária, entretanto, eles também provocam incerteza sobre a influência das mulheres dentro de um processo político de desarme.
Historicamente, a resistência armada permitiu as mulheres curdas ganhar visibilidade, liderança, e legitimidade. O combate destruiu tabús de gênero e criou capital simbólico, mesmo quando ele arriscou reproduzir o que alguns teóricos chamam de “masculidade adotada” — uma replicação de normas patriarcais sob o disfarce de igualdade revolucionária. A mudança atual em direção a desmilitarização, enquanto abre espaço para práticas feministas não-hierarquicas, baseadas em comunidade, também ameaça desmantelar as estruturas que protegeram e empoderaram mulheres que estavam sob condições de violência estatal. Esta tensão é central para debates sobre o futuro do movimento.
A potencial dissolução do PKK nos trás perguntas urgentes: O movimento de mulheres curdas vai aproveitar o momento para garantir sua total autonomia? Ele irá desenvolver uma posição feminista distinta nesta mudança estratégica? A dissolução enfraquece ou fortalece mulheres dentro da luta curda? O desarmamento poderia representar tanto um passo em direção a uma paz feminista ou uma vulnerabilidade estratégica. Algumas militantes advogam por uma cuidadosa desmilitarização condicional — contingente a consolidação constitucional, reconhecimento internacional, e garantias para os direitos das mulheresvisto que consolidou mentalidades de guerra masculinas, abrindo espaço para práticas feministas radicais, não hierárquicas, baseadas em comunidade. Historicamente baseada em ideias masculinistas — onde heroísmo, martírio, e valor militar definiam legitimidade — a violência revolucionária curda agora é desafiada pelo chamado de Öcalan pela desmilitarização, que busca mudar o movimento em direção a um horizonte feminista sem relação com a masculinidade militarizada. Mas outros alertam que a desmilitarização poderia expor as mulheres a novas violências patriarcais e estatais, especialmente se vitórias do YPJ ou YJA-Star (as Unidades das Mulheres Livres, Yekîneyên Jinên Azad ên Star), não forem politicamente garantidas.
Para além da luta armada, mulheres turcas e curdas há muito têm desempenhado papéis vitais em resistências civis e esforços de paz. As Mães da Paz (Dayikên Aşîtîyê) — mães curdas que perderam filhos no conflito entre o PKK e o estado — se tornaram símbolos de resistência não-violenta nos anos 1990 e 2000. Campanhas como “Não Toque na Minha Amiga” (1990) e “Muheres Caminham Juntas” mobilizaram redes de base para confrontar o nacionalismo, o racismo e a guerra 6. Em 2009, a Iniciativa Feminista pela Paz (BİKG) reuniu mulheres de várias linhas étnicas para exigir a desmilitarização, reconstrução social, e processos de paz inclusivos. Estes movimentos demonstraram como mulheres transformaram experiências de luto e marginalização em agência política.
Em uma carta datada de 30 de Maio, da Prisão de Imrali para a Acadademia de Jinealogia, Öcalan reafirmou que a libertação das mulheres é a real medida do socialismo, chamando-a de fundação de sua luta revolucionária. Ele descreve jinealojí como um projeto transformativo em andamento e as mulheres como potenciais líderes de paz e democracia no Oriente Médio. De fato, Öcalan confia nas mulheres para liderar sua transição, dando a elaspapéis de liderança em esforços de paz anteriores no Curdistão.
A escolha de Bese Hozat — uma histórica comandante e vice-presidente da União de Comunidades do Curdistão (KCK), camarada próxima de Sakine Cansız, a icônica líder feminista do PKK assassinada em Paris em 2013 — como figura central na cerimônia do desarmamento simbólico do PKK em 11 de Julho, demonstra a contínua centralidade das lideranças feministas no movimento curdo. Mesmo em um momento transicional, este gesto simbólico reafirma o comprometimento ideológico do movimento com a libertação de gênero e honra o legado do feminismo revolucionário curdo.
O desafio agora está em navegar as contradições da desmilitarização: balanceando éticas feministas com a necessidade de proteção, autonomia com alianças estratégicas, e a construção de paz com agência política.
Qualquer processo de paz futuro deve se centrar nas vivências e visões políticas de mulheres curdas. O papel delas não têm sido periférico mas fundamental — e é uma decisão estratégica delas, não apenas de Öcalan, que dará forma ao próximo capítulo do movimento curdo.
Ilustração 6: Bese Hozat liderando a cerimônia simbólica de desarmamento do PKK, em 11 de Julho de 2025.
Conclusão
Da perspectiva dos apoiadores do Partido de Trabalhadores do Curdistão (PKK), a potencial dissolução da organização não deveria ser interpretada como o fim da luta curda, mas sim como uma nova e ainda indefinida nova fase de resistência. Enquanto esta perspectiva representa um otimismo estratégico, ela também exige uma reflexão cuidadosa. Redefinir resistência dentro de um contexto tão complexo demanda um entendimento com nuance de suas inerentes limitações, contradições, e riscos. Em outras palavras, apesar dessa abordagem possivemente abrir novos caminhos para o movimento, ela não deveria ser aceita de forma acrítica como uma solução definitiva sem maiores análises. Mecanismos para integrar feedbacks críticos de membros do PKK e ativistas — especialmente as vozes das presas políticas — neste processo são necessárias para garantirem sua legitimidade.
O PKK enfrenta a concfluência de desafios complexos, incluindo a intensificação de pressões militares e tecnológicas assim como limitações políticas em níveis domésticos e regionais. Esses desafios limitam severamente a capacidade do movimento de manter a luta armada e alcançar mudanças estruturais. A mudança em direção a formas legais de organização representa uma aposta estratégica significativa. Enquanto essa transição levanta sérias considerações e experimentações, seu sucesso depende da realização de inúmeras condições críticas; na ausência delas, o fracasso e a marginalização continuam como um risco substancial. Além disso, a tensão entre as pressões imediatas do estado e a visão de longo prazo do PKK por um proceso político prolongado levante questões sobre a viabilidade e o momento desta mudança.
Se o processo político mais uma vez for sabotado por by Erdoğan, o PKK está preparado para retomar a resistência armada, não por desespero, mas como uma continuação de sua contínua lógica política baseada em dignidade coletiva e autodeterminação. No entanto, tal ressurgimento provalvemente teria dificuldades consideráveis, que atingiriam principalmente a população curda.
Longe de ser um mero ator tático, o movimento de libertação curda representra uma projeto político amplo que suspende fundamentalmente noções postas de soberania e legitimidade ao longo da região. Qualquer mudança relevante na sua orientação estratégica exige compreender a relação entre limitações estruturais, riscos geopolíticos, e relações assimétricas de poder no nível local, regional, e internacional. Na melhor das hipóteses, a virada do movimento em direção a institucionalização poderia não apenas consolidar sua legitimidade política mas também abrir novos caminhos para reconciliação entre os próprios curdos, especialmente entre antigos rivais como o Partido Democrático do Curdistão (KDP). Esse realinhamento estratégico poderia potencialmente servir como planta baixa para uma arquitetura transnacional de políticas curdas — uma mais inteligível e aceita diplomaticamente por atores internacionais, especialmente potências ocidentais que historicamente marginalizaram as reivindicações curdas em favor de seu alinhamento estratégico com Ankara.
Essa contínua redefinição da resistência curda também confronta desafios internos relevantes, incluindo tensões entre facções e o imperativo por reconciliação política, que deve avançar junto da aceitação de agentes regionais e globais. Ainda assim este processo tem o potencial de cultivar estruturas políticas mais inclusivas e legítimas,
Finalmente, a transformações propostas na linguagem e modalidades de resistência —articuladas por Abdullah Öcalan e apoiadores do PKK — responde as realidades da guerra e da vigilância tecnológia atual. Isso desafia a resistência militante convencional, enfatizando adapatabilidade resiliência e rearticulação de poder de formas novas e menos visíveis.
Ilustração 1: Armas queimadas durante a cerimônia representando o desarmamento simbólico do PKK, em 11 de Julho de 2025
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Notas
1. “O processo que culminou em nosso 12º Congresso começou com uma reunião em 23 de outubro de 2024, entre o sobrinho do Líder Apo e nossa delegação. Essa reunião ocorreu em resposta às declarações e apelos feitos por Devlet Bahçeli, líder do Partido do Movimento Nacionalista (MHP), a partir do início de outubro. Durante a reunião, o Líder Apo declarou publicamente que ‘se as condições necessárias forem atendidas, ele tem a capacidade teórica e prática de mover a questão curda de um contexto de violência e conflito para um de política democrática e resolução legal’. Nos meses seguintes, uma série de reuniões foi realizada entre a delegação do Partido da Igualdade e Democracia dos Povos (DEM) e o Líder Apo na Ilha de İmralı. Esses encontros foram acompanhados por mensagens do Líder Apo que moldaram ainda mais o processo. Ele primeiro endereçou cartas à liderança dos partidos políticos na Turquia, seguidas por correspondências direcionadas a nós. Nessas cartas, ele articulou sua posição sobre a conclusão das atividades conduzidas sob o nome do PKK e o fim da luta armada, afirmando que sua missão histórica havia chegado ao fim. Em nossa resposta, expressamos nossa disposição de realizar o congresso proposto, enfatizando que tais decisões fundamentais só poderiam ser tomadas com o envolvimento direto e a liderança do Líder Apo durante o próprio congresso. Dando um passo adiante, o Líder Apo, por meio da delegação do Partido DEM, lançou o “Apelo à Paz e a uma Sociedade Democrática” em 27 de fevereiro. Nesse apelo, ele nos instou a convocar o congresso e tomar decisões para encerrar oficialmente as atividades sob o nome do PKK e encerrar a luta armada. Ele também declarou sua disposição de assumir total responsabilidade histórica pela iniciativa. Após esse apelo, em uma declaração pública divulgada em 1º de março, reafirmamos a posição anteriormente compartilhada em nossa carta ao Líder Apo. Para apoiar o processo, declaramos um cessar-fogo unilateral, que comunicamos ao público. Esses acontecimentos desencadearam intensos debates públicos tanto nacional quanto internacionalmente. Participamos ativamente dessas discussões, apresentando nossos pontos de vista e nos esforçando para oferecer avaliações escritas e verbais para ajudar nosso povo e aliados a obter uma compreensão clara e completa de o processo. Além disso, transmitimos tanto as atas das reuniões realizadas com o Líder Apo quanto as diretrizes preparadas em nome das lideranças do PKK e do PAJK (Partido das Mulheres Livres do Curdistão) relativas à organização do nosso partido. Todas essas ações foram realizadas com pleno conhecimento e consentimento da delegação do congresso. Para a declaração completa, consulte a [Declaração do Comitê Central do PKK datada de 4 de maio de 2025] (https://firatnews.com/kurdIstan/pkk-merkez-komitesi-nin-12-kongre-ye-sundugu-yazi-213569).
2. “Nossa visão para a nova era se baseia na reconstrução da sociedade com base na nacionalidade democrática, nos princípios ecoeconômicos e no comunalismo. Para estabelecer filosoficamente essa estrutura — suas dimensões ideológicas e sua materialização na sociedade mais ampla —, temos a responsabilidade de formular sua estrutura teórica e conceitual… Estamos no processo de moldar os componentes ideológicos, o programa prático e as dimensões tático-estratégicas do futuro. A sociedade democrática constitui o programa político desta era. Ela não tem o Estado como seu objetivo principal. A política de uma sociedade democrática é a política democrática… O socialismo democrático, da mesma forma, significa uma democracia socialmente fundamentada… A vida livre dos povos se torna possível por meio da comuna… Em um esforço para transcender a modernidade e o socialismo real que a serviu, buscamos desenvolver uma nova análise e uma teoria socialista alternativa. Chamamos essa estrutura de ‘Modernidade Democrática’. Nela, a nação democrática é proposta como uma alternativa ao Estado-nação; a comuna e o comunalismo substituem o capitalismo; e a economia-ecologia é proposta no lugar do industrialismo. Análises correspondentes foram desenvolvidas para articular e fundamentar essas mudanças conceituais… A vitória no Curdistão também terá impacto na Síria, no Irã e no Iraque. A República da Turquia terá a oportunidade de se renovar, abraçar a democracia e assumir um papel de liderança na região… Posso afirmar com segurança que os oponentes desse processo são desprovidos de valores significativos — e, em última análise, fracassarão. No entanto, concretizar essa visão impõe uma responsabilidade significativa a todas as partes envolvidas. O confederalismo regional se revela uma necessidade absoluta; ao mesmo tempo, esse caminho exige inevitavelmente o surgimento de uma nova forma de internacionalismo. Você pode ler a carta completa aqui.
3. O Partido da Justiça e Desenvolvimento (Adalet ve Kalkınma Partisi, AKP) respondeu com repressão intensificada. Em 2009, os “julgamentos KCK” levaram à prisão de quase 10.000 pessoas — políticos, defensores dos direitos humanos, sindicalistas e feministas — com acusações generalizadas de terrorismo.
4. O conceito de “comuna” torna-se central. Para Öcalan, ela representa o instrumento autêntico do povo, em oposição ao Estado-nação, que ele vê como a extensão armada do capitalismo. A construção de uma sociedade comunal por meio de municípios democráticos só é possível com uma luta anticapitalista coerente, apoiada por clareza política e determinação inabalável. Sem isso, o projeto fracassará.
5. A família de Bese Hozat foi vítima do massacre perpetrado pelo Estado turco durante a revolta de Dersim, em 1938. Ela afirmou que sua família foi vítima de genocídio, com seu pai e seu avô mortos. Seu irmão e sua irmã também foram assassinados pelo Estado turco. Sua avó, sobrevivente do massacre, conseguiu escapar após suportar severas dificuldades nas mãos de soldados turcos
6. Veja, por exemplo, este artigo de Soma Negahdarinia