De Kevin Carson. Artigo original: “Intellectual Property” Keeps Right On Killing. Traduzido para o português por Gabriel Serpa.
Os habituais apologistas das grandes empresas do agronegócio, como o colaborador da revista Reason, Ron Bailey, citam estudos que demonstram a improbabilidade de o glifosato, ingrediente ativo do herbicidaRoundup, causar câncer nas concentrações que aparecem em produtos de supermercado. Mas parece que o foco no glifosato pode realmente ter sido só uma distração. Há evidências (Novas Evidências Sobre os Perigos do Roundup da Monsanto, The Intercept, 17 de maio) de que o Roundup é realmente cancerígeno, especialmente nas concentrações às quais os trabalhadores agrícolas são expostos; entretanto, o principal culpado não é o glifosato, mas os ingredientes inertes (como os surfactantes). De fato, esses ingredientes inertes poderiam ser letais às células humanas, mesmo nas quantidades residuais às quais os consumidores estão expostos (Herbicida Se Prova Letal a Células Humanas, Scientific American, 23 de junho, 2009). Mas, legalmente, a Monsanto é obrigada a tornar público apenas o ingrediente ativo, o glifosato. Na verdade, os ingredientes inertes são todos segredos comerciais, protegidos legalmente pela chamada propriedade intelectual.
Mesmo que fosse verdade que o Roundup é seguro se usado de acordo com as especificações da empresa, como a Monsanto afirma, desde quando ele é tão usado assim? Dados os obscenos desequilíbrios de poder na indústria do agronegócio, ninguém vai responsabilizar os grandes fazendeiros quando se trata da exposição de seus funcionários a produtos químicos tóxicos. Nos anos 80, testemunhei o uso em grande escala de Roundup,com o propósito de erradicação de ervas daninhas, no gramado do prédio da Universidade do Arkansas. Na realidade, ele erradicou a grama e também matou alguns carvalhos. E mesmo que os trabalhadores aplicassem o Roundup vestindo roupas que pareciam trajes espaciais, grupos de estudantes que vestiam calções e regatas passeavam, casualmente, entre as nuvens deste produto tóxico.
Também posso acrescentar como é ultrajante que o Roundup receba perdões com base em sua periculosidade, ou não, somente para os consumidores. Os efeitos deste produto sobre os trabalhadores agrícolas — e o sistema de monocultura de larga escala é parte disso — e ao ecossistema também são importantes.
Sem dúvida, os libertários de direita se oporão fortemente às exigências de rotulagem dos produtos, incluindo os ingredientes ativos. Mas eles também tendem a favorecer uma vigorosa lei de direitos civis — ou deveriam, se não forem hipócritas — como um substituto para o estado regulador. E faz parte deste sistema legal a capacidade de levantar e expor provas relevantes acerca de um suposto dano. Em uma ordem jurídica libertária (estipulando por um momento a improvável possibilidade de que nada semelhante a corporações do agronegócio pudesse ter surgido, em primeiro lugar, em um mercado liberto), dada a prevalência de tumores, como o linfoma, entre os trabalhadores agrícolas expostos ao Roundup, já haveria há muito tempo processos judiciais forçando a Monsanto a divulgar a lista completa dos ingredientes do seu produto químico. E, em qualquer caso, os segredos comerciais garantidos por lei, ou impostos por qualquer meio que não seja o devido sigilo pela própria empresa e por acordos que não vinculem terceiros, não existiriam de forma alguma.
Assim, a existência de segredos comerciais legalmente protegidos é uma arma contra a saúde e o bem-estar, que priva a população de qualquer conhecimento sobre a natureza dos produtos tóxicos aos quais ela pode estar exposta.
Isto não é novidade. Já vimos o mesmo em relação aos ingredientes que são utilizados nas práticas de fraturamento hidráulico, também mantidos em segredo do público potencialmente afetado, sob o pretexto da tal propriedade intelectual.
E, além dos mortos vitimados pela propriedade intelectual, o Estado não se importa, sempre que necessário, de causar mortes em grande escala para protegê-la, como indicam cartas vazadas da embaixada colombiana (Vazamentos Mostram que o Assessor do Senador Ameaçou a Colômbia por Causa de Medicamento Barato Contra o Câncer, The Intercept, 14 de maio). A Colômbia tem feito esforços para aprovar uma fórmula genérica, mais barata, do remédio Imatinib, que custa US$ 15.000 por ano. Um assessor do senador Orrin Hatch, um grande amigo da indústria farmacêutica e um cachorro grande quando o assunto é propriedade intelectual, expressou preocupação aos diplomatas colombianos, dizendo que se os direitos de propriedade privada da Novartis fossem violados, a indústria farmacêutica poderia fazer ouvir sua voz e interferir em outros interesses que a Colômbia possa ter nos Estados Unidos. Em particular, este caso poderia comprometer a aprovação de financiamento para a nova iniciativa ‘Peace Colombia’. A Peace Colombia é uma tentativa de intermediar um acordo de paz entre o governo e um grupo guerrilheiro, que inclui financiamento para a desminagem de explosivos terrestres.
Portanto, basicamente, os mercenários do Congresso à serviço da gigantesca indústria farmacêutica estão dispostos não apenas a causar mortes, mas também a negar medicamentos acessíveis e que salvam vidas. Eles também estão dispostos a obstruir (que baita acordo de paz vocês têm!) uma saída para uma guerra civil que já matou milhares, incluindo a desativação de minas terrestres, no país com o segundo maior índice de mortes por este tipo de explosivos do mundo.
A propriedade intelectual não é apenas roubo. É terrorismo.