Jason Lee Byas. Título original: Against the Criminal Justice System, Pt. II: The Criminality of Criminal Law. Traduzido para o português por Gabriel Serpa.
Na primeira parte desta série, apresentei razões para os libertários rejeitarem as práticas punitivistas. Como alternativa, sugeri que o papel adequado do Direito é a busca pela resolução de conflitos, e que a violência advinda dele só pode ser direcionada à defesa do ofendido ou para restitui-lo. Com efeito, elimina-se assim o direito penal, deixando em seu lugar o direito civil.
Na sequência, tentarei dar mais estofo a essa conclusão, demonstrando brevemente por quais motivos os libertários devem se opor à lei penal, para além da ilegitimidade das punições.
Visões Jurídicas: Centradas Na Vítima x Centradas Na Soberania
Os libertários gastam muito tempo (acertadamente) discutindo a injustiça em torno de crimes sem vítimas. Mesmo assim, se aceitarmos a ideia da lei penal, não fica claro por quê — já que pelo seu enquadramento, crimes não diriam respeito às verdadeiras vítimas para começo de conversa.
Em vez disso, quando uma pessoa comete um homicídio, a lei penal nos diz que o verdadeiro crime foi cometido contra a sociedade. É por isso que existem promotores de justiça, os quais podem levar adiante denúncias — mesmo que contra a vontade da vítima em questão—, e a essas denúncias dá-se nomes como “O Povo do Estado da Califórnia em face de José das Couves”, e não simplesmente “José das Couves em face de João Ninguém”.
Historicamente, essa ideia advém dos tempos em que todos os crimes eram interpretados como ataques diretos ao rei, e as punições eram penas imputadas a criminosos por desafiarem a autoridade do monarca. Como nos explica o filósofo Gary Chartier:
A categoria legal dos crimes contemporâneos se encontra no âmbito daquilo que comumente é enquadrado como ataque ao “público” … ou ao “estado”. Em um sistema supostamente democrático, o estado será identificado — retórica e erroneamente — como o todo da população. Mas é claro que categorizar o estado como a vítima de crimes se popularizou nos tempos da monarquia — com a identificação do estado como soberania popular.
O crime era compreendido como um ato que atentava contra o rei por inúmeros motivos: por violar a legislação real e contestar sua autoridade; pelo medo que o monarca tinha dos efeitos colaterais advindos de violações legais; pelos crimes demandarem o uso das cortes judiciais do rei; e pelo fato dos atos criminosos potencialmente diminuírem a arrecadação de tributos. Além disso, algumas transgressões só existiam dada a existência do próprio monarca: insultos ao rei, ataques à igreja do reino, certamente as tentativas de deposição — [a criação de] uma categoria à parte foi necessária para estas, em parte por serem inconcebíveis sem a presença de um rei (e não estariam presentes em um sistema voltado para a resolução de conflitos entre partes juridicamente iguais), e em parte porque havia todos os incentivos para que o monarca ratificasse a sua importância.
Em outras palavras, desde seu início, a lei penal esteve atrelada a uma noção abertamente autoritária de soberania. Para os libertários, que entendem que a soberania não subjaz a um monarca ou a um povo, mas ao indivíduo de carne e osso, isto faz do direito penal algo inadmissível.
Mens Rea É Crime De Pensamento
Uma das consequências deste formato do direito penal centrado em soberania é que ele se preocupa não apenas com o actus reus (o ato culposo), mas também com a mens rea (a mente [ou intenção] culposa). O criminoso deve ser responsabilizado e moralmente culpado. Assim, as punições também variam de acordo com o quão moralmente culpados eles são — pune-se mais o assassino que planejou meticulosamente seus atos do que aquele que o faz em um rompante de ira.
Isso pode parecer inquestionável até que percebamos o que realmente significa: sob o direito penal, todo crime envolve o crime de pensamento.
Para que uma conduta passe de mera contravenção a um crime — e para que a resposta a ela passe da restituição à punição — é preciso que haja o instituto de mens rea. E para justificar um maior uso de violência [na punição], os defensores do direito penal precisam sustentar que ideias transgressoras são, por si só, uma justificativa à parte para se valerem desta mesma violência. Do contrário, ir da restituição para a punição não está dentro do princípio da proporcionalidade.
É difícil imaginar um conceito mais repugnante para libertários do que crime de pensamento, o que nos dá razões suficientes para que deixemos de lado qualquer apego que tenhamos e dispensemos o direito penal.
O Direito Penal É Dado A Violações De Direitos
Para além destas duas características inerentemente iliberais — o foco (equivocado) em soberania e a mens rea —, há mais um motivo para que libertários tenham um pé atrás com o direito penal. Notadamente, ele abre mais espaço para o autoritarismo no campo do Direito.
Como mencionado antes, a lei penal, em sua essência, não está preocupada com a vítima, mas com danos abstratos causados, de forma muito genérica, à sociedade. Torna-se muito fácil advogar pela penalização de erros morais, pela prevenção paternalista de doenças sociais, ou o que quer possa ser visto e atacado como um perigo iminente para a sociedade como um todo.
Historicamente, isso se demonstra com o direito penal sendo imposto pelos estados às sociedades, em vez de se desenvolver espontaneamente de instituições livres e voluntariamente constituídas. Já aqueles sistemas legais que foram mais libertários em seus formatos — menos voltados ao estado e mais descentralizados — sempre tenderam mais ao direito civil e ao sistema de restituição do que ao direito penal e ao punitivismo. É o caso da Islândia medieval, da Irlanda e Inglaterra pré-conquistas e do sistema jurídico policêntrico da Somália (chamado Xeer).
Sob tais sistemas, o Direito não é imposto por meio de legislação, mas emerge naturalmente de decisões reais, envolvendo pessoas e conflitos de verdade. Por isso, prescindem de um código penal à parte, concentrando-se em indenizar o que pode ser indenizado às vítimas, e não em agredir o agressor.
Conferindo Uma Função Específica Ao Direito
Uma grande vantagem de mudar para um sistema baseado na restituição e no direito civil é que ele edifica uma função bem determinada para o Direito. Sob estes moldes, ele não se dedica a solucionar problemas sociais (nem mesmo o crime!), tampouco faz prescrições morais em nome de uma coletividade. Ele, especificamente, apazigua disputas entre particulares e indeniza vítimas em conflitos.
Em parte, isso resulta em implicações libertárias mais profundas e abrangentes do que a princípio pode parecer, politicamente falando. Um texto futuro desta série dedicar-se-á à exposição de tais implicações. Entretanto, no próximo, responderemos a algumas críticas que frequentemente são feitas às teorias jurídicas puramente voltadas à restituição.