Original: An Anarchist Case for UBI, de Logan Marie Glitterbomb. Traduzido para o Português por Gabriel Serpa.
A Renda Básica Universal (RBU) tem ganhado os holofotes durante esta corrida eleitoral, graças a Andrew Yang e seus apoiadores. Desde que ele começou sua campanha em favor dela, outros candidatos têm sido questionados sobre a possibilidade de apoiarem esta ideia – e vários têm se mostrado simpáticos, ainda que com ressalvas. Lamentavelmente, alguns, como Bernie Sanders, se posicionaram de maneira cética quanto à RBU e preferiram anunciar medidas como o aumento do salário mínimo e programas federais de emprego. Tais propostas estão enraizadas em concepções econômicas retrógradas e só contribuem para nos acorrentar ao status quo capitalista. Um programa de RBU, por outro lado, nos ofereceria maior liberdade contra a opressão econômica e a burocracia estatal, ao mesmo tempo em que, possivelmente, nos direcionaria a uma situação muito mais vantajosa, economicamente, do que esta em que nos encontramos.
Em primeiro lugar, vamos começar por desconstruir as soluções mais comumente propostas antes de aprofundar nas críticas feitas à RBU. Tradicionalmente, a resposta que se tenta dar aos salários de fome são leis que estabelecem salários mínimos maiores. Eu já escrevi a respeito do lute por $15 (movimento social que reivindica o aumento do salário mínimo para U$15 a hora, nos EUA) e dos porquês de ser mal orientado; e de como estas legislações não passam de uma distração enquanto, efetivamente, são só um paliativo para os nossos problemas, na melhor das hipóteses. Essas leis que se estendem a todos servem apenas para beneficiar alguns trabalhadores – em detrimento de outros, que são jogados para fora do mercado por inúmeros motivos.
Certamente que um programa federal de empregos teria a capacidade de resolver todos esses problemas, não é? Um aumento do salário mínimo teria um efeito positivo caso ninguém fosse tirado do mercado, devido ao programa do governo que garantiria trabalho para todos. E obviamente existem muitas atividades a serem realizadas. A criação de empregos em torno de energia limpa, infraestrutura e setores do tipo proporcionaria mais oportunidades de trabalho, mas seria o suficiente para assegurar trabalho a todos, sem exceção? Com a prevalência dos empregos de fachada (em inglês, bullshit jobs) e a crescente automação, parece bastante improvável que haja emprego produtivo o bastante para que se promova uma garantia universal desta natureza. Assim, as únicas maneiras de se realizá-la seria pela produção em massa, gerando um inevitável excedente de resíduos, ou pela operação ineficiente da produção, exigindo trabalho extra e, consequentemente, produzindo uma pegada de carbono maior; sendo ambas as formas contraproducentes para com as metas ambientais de seus proponentes. Além do mais, ninguém se sente verdadeiramente satisfeito realizando atividades sem sentido – estando ciente disso.
Por que a RBU é uma alternativa melhor? Porque ela auxilia a todos, a despeito da situação de emprego – ou desemprego – de cada um, sem inferir que alguém vale estritamente aquilo que produz, ao mesmo tempo em que compensa aquelas atividades não-remuneradas, como cuidar de casa, criar os filhos e realizar trabalhos comunitários voluntariamente. Entretanto, não faltam detratores e sua miríade de críticas a esta proposta. Algumas são mais dignas de serem levadas em consideração do que outras, mas farei o melhor para rebatê-las com os mais diversos pontos de vista.
As críticas mais comuns à RBU giram em torno da sua estreita relação com o nosso atual modelo de assistência social. Os conservadores temem uma expansão demasiada do estado de bem-estar, amontoando mais este benefício sobre todos os outros, sem que haja cortes de gastos de qualquer sorte; ao passo que os progressistas temem o exato oposto: a RBU poderia ser usada como desculpa para se cortar outros benefícios sociais, sem ser ela própria suficiente para a satisfação de necessidades básicas pessoais – sendo assim uma troca desvantajosa. Ambos os temores são plausíveis: ninguém quer onerar o sistema até o ponto de um eventual colapso, tampouco deseja-se que o cidadão carente saia prejudicado em razão do corte de auxílios que recebe. No entanto, não há razão para nenhum destes temores. A maioria das propostas de RBU sugerem financiá-la ou por meio do estabelecimento de um novo imposto, ou pela realocação dos gastos já existentes em áreas menos relevantes (isto é, gastos militares, gastos com burocracia, etc), ou ainda, mais comumente, uma mistura de ambas as medidas. Portanto, a RBU não se misturaria aos benefícios que já existem, mas seria proposta como uma alternativa a eles.
Como alternativa ao nosso sistema atual de bem-estar, a RBU seria muito menos burocrática e onerosa para se administrar. Hoje, existem mais de setenta programas de assistencialismo. Isto inclui desde o auxílio a locatários, passando pelo vale-refeição, até a assistência médica. Mas estes programas apresentam inúmeros requisitos, exigindo que o candidato se enquadre em tais e quais critérios para que possa receber os benefícios. O problema deste modelo é que ele restringe oportunidades de crescimento individual. Para que alguém se encaixe perfeitamente nos requisitos é preciso que esta pessoa administre sua vida de tal forma que nunca aceite uma proposta para subir na carreira, ou que mantenha suas atividades profissionais totalmente por baixo dos panos, condição esta que também acaba limitando as chances de crescimento no trabalho. Para completar, os benefícios vêm com infinitas restrições. Uma pessoa que receba duzentos dólares mensais de vale-refeição não pode usar este dinehiro para investir em uma eventual oportunidade de negócio, que lhe renderia muito mais que apenas duzentos dólares em alimentação – poderia lhe garantir maior estabilidade dali em diante. Alguém que receba vale-refeição sequer pode usá-lo legalmente para comprar comidas prontas, o que não faz qualquer sentido se considerarmos os desabrigados que recebem este benefício.
Portanto, aglutinar todos esses programas de assistência em apenas um, para o qual todos os cidadãos se qualificam, independentemente de sua renda ou de qualquer outro critério, não apenas permitiria maior mobilidade econômica, mas também lhes ofereceria liberdade na hora de gastar o dinheiro. É certo que isto prejudicaria aqueles que hoje recebem mais em benefícios do que a RBU lhes proporcionaria, no entanto já foi proposta uma solução para este problema. Andrew Yang sugeriu que ao invés de substituirmos completamente um sistema pelo outro, déssemos a opção às pessoas de aderir a um ou a outro sistema. Desta forma, eles não seriam empilhados, uns em cima dos outros, custando uma fortuna para os cofres públicos. Em vez disso, poderiam escolher entre os já conhecidos benefícios, cheios de restrições, ou dinheiro vivo sem quaisquer amarras. Contanto que a RBU fosse estabelecida em um patamar digno, a maioria das pessoas, muito provavelmente, optariam por ela, enquanto o sistema de benefícios cairia em desuso. Conciliar a renda básica universal a outras medidas nas áreas de saúde e educação também pode ser uma boa saída para assegurar que ninguém seja excluído.
Outra grande crítica vinda da esquerda é a de que deveríamos fortalecer nosso poder de negociação, enquanto a RBU serviria mais ao propósito de transformar os cidadãos em meros consumidores passivos. Tal crítica funda-se em um modo de produção cada vez mais ultrapassado. Embora sempre haja trabalho a ser feito, os programas de treinamento e reciclagem de profissionais já se provaram extremamente ineficazes em preparar trabalhadores manuais, sejam eles qualificados ou não, para assumirem cargos que envolvam alta tecnologia, como codificação. Considerando a taxa atual de automação, a ideia de haver propriedades coletivas de trabalhadores dentro do sistema econômico atual parece favorecer que um punhado de capitalistas detenham fábricas totalmente automatizadas, enquanto o restante de nós ficamos desempregados e famintos. É evidente que não são todos os setores industriais que podem ser automatizados assim, mas com a ameaça da automação destituindo trabalhadores de seus postos, focar apenas no poder de negociação serve só aos empregados ainda não familiarizados com a automação. Para todos os outros, restaria torcer para que o poder de negociação daqueles trabalhadores fosse usado em benefício de toda a classe operária (incluindo os desempregados), e não apenas deles próprios e de seus colegas.
Mas a noção de que a RBU não oferece um incremento na capacidade de negociar do trabalhador é de todo falsa. A principal razão para que muitas pessoas optem por não se sindicalizarem é o medo de perderem seus empregos, como forma de retaliação. Este medo poderia ser atenuado pela renda básica universal, que permitiria às pessoas atenderem a suas necessidades mais imediatas. Isto significaria maior liberdade para a classe trabalhadora do que ela jamais teve. E para aqueles que não desejassem se submeter a um patrão, seria possível que juntassem suas RBUs e se organizassem em cooperativas, propriedades coletivas e parcerias colaborativas. Com um movimento trabalhista recém-alforriado e uma nova base de capital, os trabalhadores estariam menos sujeitos aos desmandos de seus patrões e mais livres para seguir seus desejos – como jamais conseguirão sob o nosso modelo econômico atual.
Por fim, a RBU tem sido criticada por retirar o incentivo das pessoas de trabalhar. Enquanto ela atenua os aspectos coercitivos do trabalho – já que permite que você atenda a suas necessidades básicas e não se veja em um dilema entre trabalhar ou morrer –, isto não pode ser visto como algo ruim. Tal coerção é totalmente dispensável. Implementar uma RBU facilitaria a tarefa de livrar o mercado dos empregos de mentira e na busca por atividades mais significantes. As pessoas seguirão trabalhando na solução de problemas em suas comunidades, por sermos seres gregários e por isso gerar melhorias em nossas vidas; as pessoas farão tudo que for necessário para garantir sua própria sobrevivência e de seus entes queridos e, na condição de seres comunitários, sabemos que é menos custoso sobreviver coletivamente. Na realidade, havendo menos pessoas que dediquem seu tempo a empregos de faz de conta, teremos mais gente concentrando esforços naquilo que realmente importa. Mais pessoas se sentirão inspiradas para criar novas tecnologias, como comprovam as iniciativas adeptas do código aberto. Estas coisas não acontecem pela coerção, mas pelo interesse que temos nelas e pelo prazer que extraímos disso. E certamente testemunharemos uma grande mudança em toda produção de massa; em vez de bens sem sentido, o foco estará em itens de primeira necessidade, no conforto e no luxo, e na produção artística. Livres do dilema coercitivo entre trabalhar e morrer de fome, os bens e serviços que valoramos influenciarão na oferta e na demanda, de modo que o mercado há de corresponder naturalmente a isso. Em outras palavras, um mercado livre de coerção tenderá a uma leitura mais precisa das conjunturas e funcionará melhor. Afinal, quanto mais livre é o mercado, mais livre é o povo.
Assim sendo, a RBU nos oferece os meios para encolher o estado de bem-estar social (possivelmente o orçamento militar e outros setores inchados também), concede aos trabalhadores maior autonomia e poder de negociação e ainda nos aproxima mais de um mercado livre. Este pode não ser o seu objetivo final, mas é uma ferramenta útil de transição da qual dispomos aqui e agora. É uma proposta que não deve gerar desconforto em nenhum anarquista que venha a defendê-la.