Contra os Libertários Que Desejam Capturar o Estado Para Diminuí-lo

Alex Aragona. Título original: Against Libertarians Who Want to Shrink the State by Capturing It, 28 de outubro 2020. Traduzido por Gabriel Serpa.

Existe um sentimento, entre muitos autointitulados libertários, com o qual eu simpatizo até certo ponto, mas que vejo como errôneo e, no final das contas, contraproducente. Ele é mais ou menos assim:

“Se for para termos um estado, o mal menor seria conceder apenas a certos grupos o direito de votar”.

Aqueles pagadores de impostos que contribuem com mais do que efetivamente usufrem dos serviços públicos (em inglês, net-taxpayers) são um exemplo popularmente citado. Neste caso, todo aquele que aufere seus ganhos na iniciativa privada e paga seus impostos, na renda e de outras formas, mas que ostenta uma infinidade de benefícios recebidos do governo, superando a quantia que paga aos cofres públicos, seria destituído do direito de votar.

Embora muitos cheguem a esta conclusão pela simples antipatia ou aversão às pessoas que possam viver à custa do estado, outros apresentam justificativas mais elaboradas para que tomem esta posição. A principal linha argumentativa nos aponta que tal medida serviria, em última análise, para enxugar (e quem sabe até extinguir) o estado. Quanto menos gente participando e se envolvendo nos meandros estatais, melhor. E mesmo que não o extinguíssemos de imediato, estaríamos na direção correta.

Frequentemente, apontam-se prováveis reduções com gastos espúrios e concessões, além do freio na expansão governamental, como um dos prós deste modelo em que apenas os net-taxpayers exerceriam o voto, já que estas matérias passariam a ser decididas por pessoas mais autossuficientes, responsáveis e menos afeitas ao próprio governo.

Tudo isso pode parecer bacana para alguns, em uma análise mais superficial, especialmente em tuítes ou publicações de Facebook, naquele vai-e-vem gostoso sobre reduzir o estado. Mas abordando com mais seriedade este tipo de prescrição, eu e tantos outros devemos discordar de praticamente todos aqueles que se colocam favoráveis a este tipo de política.

Para começo de conversa, vamos voltar rapidamente a um posicionamento comum entre os libertários. * Me sinto seguro em afirmar que muitos libertários acreditam que o estado — seja por sua mera existência ou por métodos pelos quais opera — não pode ser justificado. É (corretamente) apontado que o estado não apenas emprega a violência ou viola meus direitos quando ele, literalmente, envia seus agentes até minha casa para abusarem de seu poder contra mim. Ao simplesmente reivindicar para si o monopólio da força e se aproveitar dele para criar leis e impostos que eu não tenho como me recusar a acatar, o estado está violando meu consentimento e autonomia com sua estrutura primordial. Libertários, então, comumente acusam o estado, em sua essência, como violador de direitos e liberdades de todos aqueles que se encontram sob seu domínio.

Muitos libertários ainda corroboram a afirmação acima (de novo, corretamente) reiterando que as engrenagens do poder estão sempre propensas a se apropriar de certos grupos (por exemplo, uma elite política) que acabam possuindo mais poderes e influência do que o restante da população, e usam-nos em seu favor. Estes pontos nos trazem a ideia de que os governos de hoje são feitos de, por e para farsantes que agem, supostamente, a serviço do bem ou da vontade geral.

Por outro lado, os proponentes dos princípios democráticos retrucam que cada indivíduo possuir seu direito ao voto, ao menos, significa que há um poder igualmente disperso por sobre este arranjo — estando igualmente dispersos o poder e a influência por sobre os mecanismos injustos.

É claro que os libertários insistem nesta não se tratar da realidade: o que há são pessoas e grupos cujo verdadeiro poder e influência vão desde próximo a zero até chegar ao extremo, lá no topo — uns têm apenas uma cédula para votar; outros, os ouvidos do presidente, pagos à vista.

Neste caso, se torna intrigante como alguns libertários, simultaneamente, dizem entender as questões em torno de disparidades democráticas, enquanto pedem pela extinção de uma ferramenta que, ao menos, viabiliza algum poder de expressar vontade e influenciar as instituições — se não completamente, na prática; pelo menos formalmente como princípio.

Mais uma vez, muitos insistem que seu objetivo é reduzir cada vez mais o número de pessoas que detém o poder de influenciar o estado — quanto menos poder estatal por aí, melhor. Entretanto, para se alcançar objetivos é preciso escolher qual caminho seguir, e está claro que este trajeto nos levaria à absoluta exclusão de alguns dos processos democráticos, e de concentração de poder e influência para outros, que colheriam todos os benefícios deste arranjo. Nesta fantasia em que o estado tenderia a desaparecer pela cassação do sufrágio e diminuição do engajamento popular na política, haveria um número crescente de pessoas com cada vez menos poder; em contraste a outros que aumentariam cada vez mais o seu. É uma “solução” que agrava a situação que pretende combater — as injustiças e desequilíbrios no uso do poder estatal.

É interessante observar tantos autointitulados libertários, atraídos por esta estratégia em um primeiro momento, e logo em seguida vê-los propagar como sendo inaceitável, por princípio, que certos grupos (quando não são eles) tenham alguma influência desproporcional sobre suas vidas, por meio de políticas públicas. Evidentemente, libertários americanos propondo, orgulhosamente, um caminho mágico para moldar o sistema democrático, como se fossem nos levar ao melhor desfecho possível (quando, na verdade, estarão apenas privilegiando seus grupos preferidos), não é nenhuma novidade. Tampouco esta é uma exclusividade deles. É apenas outra forma daquilo com que a política, historicamente, está infestada — de teorias que tentam justificar porque um grupo específico deveria influenciar mais as atividades e estruturas que afetam a todos. Mas é claro que quando o “nosso” lado estiver no comando, estará a serviço do que é melhor para todos!

Aqueles que se mostram mais interessados em limitar o sufrágio, em favor deste ou daquele séquito (ou reorganizar, arbitrariamente, privilégios governamentais), não parecem fazer parte do grupo que ficará do lado mais prejudicado da equação. Se um destes autointitulados libertários acredita que é legítimo que alguns grupos de interesse tenham voz na hora de definir políticas e estabelecer pilares, que afetam os direitos e liberdades de todos, enquanto outros indivíduos não deveriam dispor do mesmo privilégio — permanente ou provisoriamente —, fica parecendo que aquela discussão que a princípio se apresenta como meramente estratégica, tratando de como enxugar ou limitar o estado, precisa de um pouco mais de atenção.

A essa altura, o debate deveria retroceder à estaca zero; e nós averiguarmos se os envolvidos na proposição destes esquemas vêm de uma tradição de princípios liberais e de convicções de que a liberdade é para todos. Aquele que prescreve maneiras de limitar o estado, em favor de certos grupos de interesse, precisa reavaliar se esta proposição se destina a solucionar o problema que afirmam existir, ou se apenas buscam justificativas para que os grupos que eles preferem, ou dos quais fazem parte, obtenham mais poder enquanto outros perdem.


* Neste artigo, não abordo dois pontos de suma importância que poderiam, essencialmente, descreditar o chamado “fardo dos contribuintes” (net-taxpayers), e a suposta mamata (easy ride no original) de que desfrutam os que recebem proventos advindos do estado: 1) A maioria das grandes rendas privadas são destinadas a beneficiários que se valem de sua influência política e econômica para extraírem benefícios indevidos (como, por exemplo, retornos sobre propriedade intelectual, subsídios, políticas protecionistas, etc.); 2) A maior parte daqueles considerados como “parasitários” do estado estão essencialmente recebendo, de um jeito ou de outro, uma parte ínfima do que este jogo de cartas marcadas, que favorece as grandes rendas privadas, tem custado para eles.

Aceito de olhos fechados neste artigo o argumento apresentado por alguns e, deixados de lado os pontos supramencionados, destaco um ponto crucial acerca da dinâmica do poder e das suscetibilidades democráticas, para que não digam que os pontos aqui abordados não são importantes.

Anarchy and Democracy
Fighting Fascism
Markets Not Capitalism
The Anatomy of Escape
Organization Theory