Consideremos uma sociedade hipotética na qual o Estado tenha desaparecido, as fronteiras foram abolidas e as comunidades são criadas com base na liberdade de associação. Se eu, uma pessoa não-binária, me vir ameaçado por um contingente cada vez maior de transfóbicos na minha vizinhança mais imediata, e não esteja disposto ou não tenha os meios para me mudar, devia conseguir utilizar os meus recursos e conhecimentos para criar uma rede de apoio para me defender de qualquer ameaça. Também funcionaria a meu favor utilizar quaisquer meios que tenha ao meu dispor para fazer com que o ambiente social onde me encontro seja seguro para mim; se tal envolver pressionar as pessoas que não respeitam os pronomes das outras pessoas ou defendem que “o género é determinado pela biologia”, tal é plenamente consistente com o anarquismo. Hensley tem uma perspectiva muito diferente da minha: “o anarquismo tem a ver com a construção de uma sociedade na qual ninguém force as suas crenças sobre terceiros. Desde que respeitemos os pontos de vista e as vidas dos outros, as nossas opiniões pessoais são irrelevantes.”
…Não, não são. Dependendo da definição específica de “forçar as suas crenças sobre terceiros”, há muitas maneiras de conseguir incluir “forçar as suas crenças sobre terceiros” num anarquismo consistente, de princípios. Se alguém me acusar de estar a forçar a minha crença de que uma mulher trans é uma mulher a terceiros, não vejo como tal seja anti-anarquista a não ser que sugira uma legislação sobre crimes de ódio que coloque os transfóbicos na cadeia. Em qualquer espaço seguro ideal, existem incentivos para manter ao longe intervenientes negativos e encorajar comportamentos positivos. É debatível se estamos a utilizar da “força” quando expulsamos alguém de um espaço por utilizar termos pejorativos ou quando fazemos pouco dos apoiantes de Trump, contudo não espero que existam muitos anarquistas que sejam contra tais acções.
Contudo, há uma interpretação mais benigna. No contexto do resto do artigo, “respeitar os pontos de vista e as vidas dos outros” inclui a validação das identidades de género das pessoas, os pronomes que preferem, e não utilizar determinadas palavras ou termos pejorativos, nesse caso concordaria com a segunda parte da frase de Hensley. A minha preocupação é que certas pessoas tentem retratar tais pedidos como sendo uma imposição à sua liberdade de expressão, uma táctica comum utilizada pelos reaccionários libertarianos e conservadores auto-descritos como defensores de um “Estado mínimo”.
O vocabulário do Estado mínimo e da soberania individual pode com toda a certeza ser utilizado para radicalizar pessoas do libertarianismo de direita para o anarquismo, mas vale a pena reconhecer as enormes inconsistências da noção generalizada de “Estado mínimo” do conservadorismo. A retórica normal não é implicitamente de natureza abolicionista, é antes uma resistência ao “socialismo” (expansão do apoio médico, aumento do ordenado mínimo, mais força sindical, etc.) alimentada por décadas de propaganda sobre a ameaça vermelha e pelo crescimento dos think-tanks financiados pelos Koch. Assim sendo, a maior parte dos conservadores é muito mais favorável ao “Estado gigante” do que a sua retórica poderá indicar.
Apesar desta tendência generalizada, Hensley envereda pela nobre tentativa de aceitar a palavra dos conservadores no que ao anti-estatismo e ao individualismo diz respeito, realçando o potencial de organização no seio das comunidades nas Apalaches.
Embora estes pontos de vida sejam incomuns entre anarquistas, não são incomuns entre as pessoas das Apalaches onde o distributismo anarquista iria prosperar numa zona que se orgulha do seu individualismo mas que retém também um forte senso de comunidade. Combinado com um ardente conservadorismo social o anarquismo explodiria aqui. Muitos esquecem que os apalaches não votam. A abstenção aqui é bastante alta. Mesmo que, como eu, não sejam socialmente conservadores, podemos alterar a nossa mensagem e centrarmos-nos nos aspectos do anarquismo que sejam apelativos aos conservadores sociais.
Ao definir o conservadorismo com este exemplo, creio que Hensley defende de modo extremamente sólido o paralelismo genuíno entre os valores comunitários conservadores e a teoria anarquista. De modo geral tenho ouvido muitas coisas boas da parte de organizadores que conheço quanto à colaboração com conservadores e libertarianos para fazer com que projectos que de outro modo seriam pequenos obtenham muito sucesso, em alguns casos convertendo indivíduos da direita para a esquerda. Sou o exemplo vivo dessa conversão, uma vez que o anarquismo é um acrescento ao anti-autoritarismo que me atraiu para o libertarianismo comum. Se Hensley tivesse expandido esta secção e explorado os modos como as comunidades das Apalaches aplicam a autonomia individual e o apoio mútuo, os cépticos teriam que se bater com uma argumentação extremamente convincente sobre como o conservadorismo pode ser aplicado com propósitos muito radicais.
Infelizmente, Hensley não faz isto, pelo contrário tenta angariar simpatia pelos “conservadores sociais” como grupo já amplamente definido:
Muitos esquecem que os conservadores sociais não se incomodam com a abordagem “não me chateies e eu não te chateio” quanto a estas questões. Os meus leitores poderão pensar que estou a ser demasiado benévolo para com o conservador social comum. Devo recordar-vos que só 7% dos americanos utilizam o Twitter. Os conservadores no Twitter (tal como os liberais) são uma fracção bem, bem pequena. O conservador comum é muito mais parecido com a Dorothy Day. Têm pontos de vista conservadores em questões sociais, mas apoiam coisas que possam fortalecer o indivíduo e a comunidade e estariam receptivos ao anarquismo se este lhes fosse apresentado de modo agradável.
Além da perspectiva claramente bizarra acerca dos conservadores do Twitter serem de algum modo uma referência comum, é estranho que Hensley se sinta tão atraído pela ideia conservadora de “fortalecer o indivíduo”. Quem esteja familiarizado com a tradição do amplo individualismo por trás de Ayn Ran e da obra dos liberais clássicos reconhece imediatamente como o “individualismo” ocidental é de muitas maneiras contra-produtivo no fortalecimento dos indivíduos. Embora os conservadores realmente possam apoiar “a liberdade da tirania do governo”, frequentemente proclamam também lealdade à nação, do mesmo modo que defendem a Segunda Emenda só depois de defenderem polícias e soldados.
A reacção aos protestos de âmbito nacional e a popularidade do abolicionismo policial é o exemplo perfeito de como muitas pessoas de direita seriam uns terríveis aliados para os anarquistas. Os conservadores, libertarianos e anarco-capitalistas são normalmente os primeiros a oporem-se aos protestos pacíficos, a vilificar os activistas anti-fascistas e a apoiar a violência do Estado contra grupos que considerem como “ameaça à propriedade privada” ou apologistas do “Estado gigante”. Aparentemente Hensley exclui essas pessoas da sua definição de “conservadores”, mas cito este exemplo para demonstrar que “a abordagem do não me chateies e eu não te chateio” pode ser sempre usurpada pelos fascistas e não é sempre acessória ao anarquismo. Os nacional-anarquistas, os hoppeanos e o reduto entre libertarianos e direita alternativa – amplamente promovido pela insistência de Murray Rothbard em aliar-se a negacionistas do Holocausto e a paleoconservadores – são só mais alguns exemplos da apropriação reaccionária da retórica “anti-Estado”.
O truque para aqueles de entre nós que queiram abrir os braços é explorar essas contradições e dissuadir as pessoas dos aspectos autoritários dessa retórica sem validar as suas crenças como sendo consistentemente “individualistas”. Hensley aparenta aceitar que os conservadores já possuem uma compreensão válida do individualismo e que nós, como anarquistas, temos que os recompensar por tal.
A mesma linha de raciocínio é utilizada para contrapor um abrir de braços à esquerda, uma táctica da qual, estou ciente, Hensley discorda: “aqueles tankies [calão para estalinistas – NDT] dizem ser anti-capitalistas”, poderia dizer um anarco-comunista comum, “como tal partilhamos o mesmo objectivo e temos que lhes apresentar o anarquismo de modo agradável”. Hensley concordaria comigo em como existem falhas óbvias neste argumento: uma vez que o conceito anarquista de “capitalismo” difere de modo relevante do dos marxistas, provavelmente não será grande ideia apostar numa aliança tão instável, mesmo que utilizemos linguagens e estéticas políticas semelhantes, não nos referimos à mesma coisa, e mesmo que lhes apresentemos o anarquismo “de modo agradável”, essa campanha na prática irá reduzir-lhes o anarquismo a mero rival de esquerda.
Não creio que qualquer um destes posicionamentos – de abrirmos os braços à esquerda ou à direita – devam ser rejeitadas por completo. A minha intenção é ilustrar como esta perspectiva aparenta ser no contexto daquilo que o autor já afirmou; Hensley, ao defender que abramos os braços aos conservadores ao mesmo tempo que recusa que o façamos à esquerda, acaba por defender uma viragem à direita no delineamento geral da nossa estratégia de alianças. Este seria o pior cenário possível, claro está, mas vale a pena ponderar acerca do mesmo visto que a extrema-direita tem feito uso desta estratégia retórica, e não quero que o texto de Hensley seja um potencial ponto de entrada – mesmo que por mero acidente.
Resumindo a minha crítica inicial, Hensley deixa demasiadas coisas ao critério do leitor. Algumas pessoas lerão esse texto como sendo entrismo da direita alternativa, e outros verão no mesmo um belo alerta de que nem todos os conservadores são nazis (embora que com afirmações como “se ignorarmos os conservadores, iremos danar o anarquismo”, não seja difícil de compreender porque é que as pessoas queer, de cor, de esquerda e outros grupos marginalizados não recebam de braços abertos a mensagem de Hensley). Para mim a principal questão é Hensley falar de modo tão incrivelmente amplo que tal possa validar a perspectiva dos nacional-anarquistas alienando ao mesmo tempo os leitores que se sintam ameaçados pelo conservadorismo social, tornando a peça difícil de abordar não importa qual a perspectiva.
A primeira frase que citei, “o anarquismo tem a ver com a construção de uma sociedade na qual ninguém force as suas crenças sobre terceiros” é o exemplo perfeito do que quero dizer: para alguns, “ninguém force as suas crenças sobre terceiros” implica a libertação de sistemos que imponham papéis sociais estratificados quanto às mulheres e aos homens, respectivamente, para outros será uma codificação para se oporem ao “lobby gay” lhes esfregar na cara a marcha de orgulho queer quanto só se querem cingir a ver o jogo da bola. Não há como compreender o que Hensley quer extrapolar nas suas intenções além de comparar o seu mural no Twitter com a sua obra publicada, e tal é extremamente frustrante.
Não é propriamente segredo que os nossos esforços organizacionais possam incluir um maoista ou dois, alguns centristas e, de quando em vez, alguns conservadores. Contudo, ao trabalharmos com essas pessoas, não precisamos de defender a legitimidade do “anarquismo maoista”, do “anarquismo centrista” ou do “anarquismo conservador”. Os nossos aliados não têm todos que ser anarquistas, e tal não faz mal se conseguirmos trabalhar com eles de modo eficaz sem ameaçar as pessoas que tentamos ajudar. Sim, os “anarquistas conservadores” podem existir, mas não estamos “danados” se alguns de nós preferirem manter uma distância de segurança entre nós e os conservadores. Se alguém optar por utilizar os seus privilégios e “recrutar” à direita, não é uma prerrogativa nossa. Contudo, para alguns de nós os conservadores podem ser perigosos. Abrir os braços a potenciais aliados é um esforço nobre, mas se perdermos mais tempo a aproximar-nos da direita do que a defender as pessoas da opressão, aí certamente iremos, como diz Hensley, “danar o anarquismo.”