Estranhamente, um samba editorial (“Crise força o fim do injusto ensino superior gratuito”, O Globo, 24 de julho; Rogério Galindo, “Chegou o dia: acabam de propor o fim da universidade pública”, Gazeta do Povo, 25 de julho) voltou a levantar a discussão sobre o ensino superior público no país. Mais estranho ainda é que aqueles em favor do ensino público estatal se atém mais à noção ideal de um ensino superior público do que à real situação financeira e estrutural das instituições. Privar o povo do famigerado ensino “público, gratuito e de qualidade” seria de um conservadorismo atroz, que preza pelos ricos enquanto exclui os pobres do acesso à educação – pretensamente moralizante e libertadora.
Para a esquerda brasileira, o debate das ideias é sempre mais presente e palpável que o debate das ações. O certo é o certo, e deve sempre ser posto em prática — os custos não importam, tampouco quem arca com eles. Mas a realidade mundana é muito diferente da bolha ideal em que vivem os articulistas de jornais e os comentaristas de universidade.
A denúncia é a do desmonte do estado de bem-estar social brasileiro, que teria sido “construído a duras penas”. A realidade é que esse bem-estar jamais existiu. E não vai existir porque a realidade é que vivemos em um país pobre. A título de matemática básica, se dividirmos toda a riqueza gerada no país em 2015, o resultado seria 11.100 dólares por pessoa. Dados de 2011 mostram que o custo médio de um aluno no ensino superior público brasileiro é de também 11.000 dólares — número defasado pelo decrescimento econômico do período e corroído pela inflação, sendo provavelmente muito maior depois de 5 anos.
A captação pública de recursos, no entanto, não se dá sobre 100% da riqueza gerada, mas sobre cerca de 35%. Teoricamente, o governo federal, se pudesse maximizar a utilidade dos recursos financeiros e reduzir os custos de operação da máquina pública ao máximo, teria 3.800 dólares para gastar com cada brasileiro. Por ano. Já que o custo médio de um aluno é praticamente três vezes esse valor, para cada ano que um estudante passa nas universidades angariando conhecimento e construindo um Brasil melhor, outras duas pessoas são usurpadas dos esforços de seu trabalho e da própria riqueza que geram, legadas à própria sorte por um governo que não dispõe de mais recursos hábeis para investir nelas.
Mas isso não é um problema. Afinal, as universidades brasileiras estão repletas do povo. Cheias de alunos pobres, verdadeiras ferramentas de transformação social. A universidade pública brilha em sua forma e missão de tirar o pobre de sua miséria. A realidade, mais uma vez, não poderia estar mais distante da verdade. Às custas de 6 milhões de brasileiros, 2 milhões usufruem do ensino “público, gratuito e de qualidade”. Quase metade deles pertencente às classes mais altas.
Os fatos se tornam cada vez mais alarmantes quando encaramos outras realidades. A primeira delas é que o acesso é facilitado para quem dispõe de mais recursos, algo que pode até parecer óbvio e tenta ser solucionado por políticas públicas de inclusão social. Embora os efeitos das políticas amenizem o problema, ele persiste como é: no Brasil os pobres pagam a universidade dos ricos.
As universidades mal conseguem se aguentar de pé. Gastam além do que têm apenas para pagar o quadro de funcionários, em uma dívida que é crescente. Angariar fundos é termo proibido. Influências financeiras externas só mudarão o “real propósito” da universidade e desvirtuarão o foco das pesquisas e do ensino. Falar em cobranças para quem pode pagar é assinar um termo de morte no ambiente universitário, já que contraria toda a lógica do ideal vigente.
O inimigo aos olhos dos articulistas não é o estado. Mas o ganancioso empresário, que infiltra sua rede de influências dentro da máquina pública para garantir seus próprios interesses. A verdade é que essa ação gananciosa só é possível mediante a atuação de um estado potente. Sem o auxílio de uma máquina controladora, há pouco subsídio para que as leis sejam revistas em favor de poucos. A regulação é a palavra de ordem. A educação tem de vir do estado, severamente institucionalizada, para evitar desvios. Muito embora haja experiências que mostrem que é possível, sim, prover educação privada com gastos bem inferiores ao do nosso governo — 1 dólar por semana, ou 52 dólares por ano.
Os fatos não importam. O que importa é que o estado deve prover. Prover ensino, prover saúde, prover transporte. Não importa o quanto isso custe. Aliás, não importa o quanto isso custe para os mais pobres. É o argumento econômico que é frágil diante da imponência estatal e da ideia de que este, como uma mãe, deve nutrir a pátria. O argumento econômico que é pouco humanitário, desigual e mesquinho, não o estado em sua missão usurpadora dos esforços do povo. Se o estado não serve para prover o básico para a população, não serve para muita coisa. A universidade pública ainda há de brilhar nos olhos do povo. Isso vai acontecer quando pegar fogo.