Alfred Marshall, fundador da chamada escola neoclássica de economia, também foi o primeiro importante economista a tentar uma reconciliação das ideias de David Ricardo com os marginalistas. Seguidor da escola Senior-Longfield pela interpretação de Mill, Marshall tratava a “abstinência” do capital (ou “espera) como outra forma de desutilidade como a do trabalho. Assim, ele fundiu as duas em uma teoria subjetiva unificada do “custo real” como fator determinante do preço da oferta. Como afirmava Mill, os lucros eram a remuneração pela abstinência do capitalista, da mesma maneira que os salários remuneravam o trabalho. Essa síntese marshalliana adotava praticamente todo o aparato teórico do marginalismo, mas estava muito mais próxima das teorias sobre o custo de produção de Ricardo e Mill. [70]
Em relação ao lucro como “custo” do capital, Marshall o explicava em termos subjetivos: trata-se do retorno necessário para persuadir o capitalista a colocar seu capital no mercado: “Todos estão cientes de que não seria oferecido qualquer pagamento em troca do uso do capital a não ser que se esperasse algum lucro a partir desse uso. (…)” Em contraposição à teoria da mais-valia de Rodbertus e Marx, Marshall afirmava que o valor de troca resultava “do trabalho e da espera”. Marshall fazia uma distinção, nos mesmos termos que Böhm-Bawerk, entre o juro bruto e o juro líquido que resultava da espera em si. [71]
Desta ideia de lucro ou juro como recompensa pela “abstinência” ou “espera” (ou “preferência temporal”, como os austríacos preferem), nós teremos muito a dizer nos próximos dois capítulos [de Studies in Mutualist Political Economy]. É suficiente dizer por ora que o valor de mercado da abstinência, como a taxa austríaca de preferência temporal, varia bastante em relação a fatores como a distribuição de propriedades e as restrições legais impostas à competição no mercado de capitais.
Marshall reformulou os fatores gêmeos de determinação do preço de Ricardo, o trabalho e a escassez, como as duas lâminas de uma tesoura: “Seria tão razoável discutir se é a lâmina superior ou a inferior a responsável por cortar a folha de papel quanto discutir se o valor é governado pela utilidade ou pelo custo de produção”. [72]
Marshall acreditava que Ricardo havia errado em sua ênfase na importância do custo ou preço e não na demanda ou utilidade. Em relação à ignorância de Ricardo em relação à demanda, Marshall escreveu que ela recentemente recebia maior atenção devido:
[À] crença cada vez mais aceita de que foi prejudicial o hábito de Ricardo de enfatizar o lado do custo de produção na análise das causas determinantes do valor de troca. Pois embora ele e seus maiores seguidores estivessem cientes de que as condições da demanda tivessem importância tão grande quanto às da oferta na determinação do valor, eles não expressavam suas ideias com suficiente clareza e foram mal-compreendidos por todos exceto os mais cuidadosos leitores. [73]
Como a última frase sugere, Marshall acreditava que as falhas da economia ricardiana se deviam tanto às suas más interpretações quanto à própria teoria.
Porém, mais importante ainda, a afirmativa de Marshall de que a demanda desempenha um papel “tão importante quanto” a oferta é qualificada por seu entendimento do fator tempo. Para Marshall, quanto menor o período de tempo, mais era possível tratar a oferta como fixa momentaneamente; assim, a lâmina da escassez predominava em relação ao custo. O preço era determinado, a qualquer dado momento, por um equilíbrio entre demanda e oferta que existiam nesse momento. Com a entrada em jogo do fator tempo, fazendo com que a oferta fosse tratada como uma variável dinâmica, a lâmina do custo ganhava em importância até que, em um hipotético equilíbrio “puro”, o preço se aproximasse cada vez mais dos custos. Marshall concluía que, “de maneira geral, quanto menor o período que consideramos, maior deve ser a atenção dada à influência da demanda sobre o valor; quanto mais longo o período, mais importante será a influência do custo de produção sobre o valor”. [74]
Ao descrever o equilíbrio hipotético ao qual o mercado tendia, Marshall usava termos similares aos de Mises em relação à utilidade de “construções imaginárias”:
Nosso primeiro passo no estudo das influências exercidas pelo elemento tempo sobre as relações entre o custo de produção e o valor pode ser a consideração da famosa ficção do “estado estacionário” sobre o qual essas influências pouco seriam sentidas; e, a seguir, contrastar os resultados encontrados nesse estado com os verificados no mundo moderno. [75]
Numa incrível semelhança a Böhm-Bawerk, ele escrevia que os preços de curto prazo “são governados pela relação entre a demanda e os estoques de fato existentes no mercado” a qualquer dado momento. [76] Os estoques existentes de bens são tudo o que está disponível antes da passagem do tempo requerida para nova produção, a despeito da demanda. Os bens em excesso são “custos irrecuperáveis”, à despeito da queda da demanda:
Novamente, não há conexão entre o custo de reprodução e o preços no caso dos alimentos em uma cidade sitiada, dos medicamentos cujas ofertas se esvaíram em uma ilha atingida por uma doença, das pinturas de Rafael, de um livro que ninguém deseja ler, de um navio encouraçado obsoleto, do peixe quando seu mercado já está abastecido, do peixe quando o mercado está quase sem abastecimento, de um sino avariado, de um tecido que tenha saído de moda ou de uma casa em uma vila deserta. [77]
O custo de produção é uma influência sobre o preço apenas ao longo do tempo, de acordo com o ajuste da oferta em resposta à demanda efetiva, fazendo com que a oferta e a demanda se aproximem do equilíbrio.
Porém, como o próprio Marshall observou, a oferta em si é uma variável dependente: “a oferta corrente se deve em parte à ação dos produtores no passado; e tal ação foi tomada como resultado da comparação dos preços esperados pelos bens com as despesas para produzi-los” [78] Ao longo do tempo, a oferta e demanda agem para levar à produção ao encontro da demanda efetiva ao custo de produção, igualando assim o preço ao custo de produção. O preço da demanda é sempre um sinalizador para os produtores reduzirem ou aumentarem a produção até que o preço da demanda se iguale ao preço da oferta.
O problema com esse modelo simples, continuava Marshall, é que a demanda e oferta poderiam se modificar, de forma que o ponto de equilíbrio ao qual o mercado tende está em contínuo movimento.
Na vida real, contudo, essas oscilações raramente são tão rítmicas quanto as de uma pedra pendurada livremente a uma corda; a comparação seria mais precisa se a corda estivesse posicionada sobre um córrego cujas correntes pudessem fluir livremente a um dado momento e fossem parcialmente cortadas no seguinte. (…) Pois, de fato, a demanda e a oferta não permanecem inertes por muito tempo juntas, mas estão em mudança constante e todas as suas mudanças alteram a quantidade de equilíbrio e o preço de equilíbrio, dando novas posições aos centros em torno dos quais a quantidade e o preço tendem a oscilar.
Tais considerações mostram a grande importância do elemento do tempo em relação à demanda e à oferta. [79]
Apesar de tais complicações, é verdadeiro a qualquer dado momento que o preço de mercado tende a um ponto de equilíbrio no qual o produtor é compensado por levar seus bens ao mercado.
Há uma tendência constante em direção a uma posição de equilíbrio normal, no qual a oferta de cada um desses agentes [i.e., fatores de produção] estará posicionada em relação à demanda por seus serviços de forma a prover o ofertante uma recompensa suficiente por seus esforços e sacrifícios. Se as condições econômicas do país permanecessem imóveis durante tempo suficiente, essa tendência se realizaria em um ajuste da oferta à demanda em que tanto máquinas quanto seres humanos seriam remunerados de acordo com o seu custo de manutenção e treinamento. (…) Na realidade, as condições econômicas do país estão em constante mudança e o ponto de ajuste da oferta e da demanda normais em relação ao trabalho é constantemente deslocado. [80]
Se Ricardo havia exagerado em sua ênfase em uma direção, Marshall acreditava que os expoentes da revolução marginalista haviam exgerado ainda mais na direção oposta. Marshall acreditava “os fundamentos da teoria legada por Ricardo permanecem intactos; muito lhes foi acrescentado e muito foram aperfeiçoados, mas pouco deles se enfraqueceu”. [81]
Em relação a Jevons, não apenas ele havia cometido excessos em sua doutrina, mas dependia também de más interpretações do trabalho de Ricardo e Mill:
Existem poucos autores em tempos modernos que tenham se aproximado da brilhante originalidade de Ricardo quanto Jevons. Ele parece, contudo, ter julgado Ricardo e Mill de forma excessivamente severa e ter a eles atribuído doutrinas mais restritas e menos científicas do que aquelas que de fato defenderam. Seu desejo de enfatizar um aspecto do valor ao qual aqueles haviam dado importância insuficiente provavelmente foi responsável por seu dito: “A reflexão repetida e a investigação me levam à opinião um tanto inovadora de que o valor depende inteiramente da utilidade (…)”. Essa afirmação não parece ser menos parcial e fragmentária, e muito mais enganosa, do que a observação a que Ricardo recorria frequentemente e descuidadamente de que o valor dependia do custo de produção; Ricardo, porém nunca a considerou nada mais além de uma parte de uma doutrina mais ampla que ele havia tentado explicar.
Jevons continua: “tentamos traçar cuidadosamente quais leis naturais da variação de utilidade em relação à quantidade de uma mercadoria em nossa posse, chegando a uma teoria satisfatória das trocas à qual as leis da oferta e da demanda são consequência necessária. (…) Verifica-se que o trabalho frequentemente determina o valor, mas apenas de maneira indireta, através da variação do grau de utilidade de uma mercadoria através de um aumento ou de uma limitação da oferta”. Como veremos, a segunda dessas duas afirmações havia sido feita anteriormente quase da mesma maneira, embora de forma um tanto vaga e imprecisa, por Ricardo e Mill; estes, no entanto, não aceitariam o primeiro enunciado. Pois, embora considerassem as leis naturais da variação da utilidade como demasiado óbvias para requererem explicação detalhada, e embora admitissem que o custo de produção não tivesse qualquer efeito sobre o valor de troca se não pudesse atuar sobre a quantidade levada ao mercado pelos produtores, suas doutrinas implicam que o que é válido para a oferta é verdadeiro, mutatis mutandis, para a demanda e que a utilidade de uma mercadoria não poderia ter qualquer efeito sobre seu valor de troca se não tivesse igualmente efeito sobre a quantidade que os compradores retiram do mercado. [82]
Em relação à afiramativa aparentemente absoluta de Jevons de que o preço é determinado pela utilidade, Marshall observava que “o valor de troca de um objeto é o mesmo em todo o mercado, mas os graus finais de utilidade aos quais ele corresponde não são iguais em quaisquer dois pontos”. Um comerciante “abre mão de coisas que representam igual poder de compra para todos os seus membros, mas utilidades muito diferentes”. [83] Marshall havia avançado o mesmo argumento mais cedo em seu livro, usando o exemplo de uma viagem de carruagem: embora a utilidade marginal de uma viagem de carruagem possa ser muito maior para um pobre do que para um rico, o preço, nos dois casos, é de dois centavos de libra. [84]
É verdade que o próprio Jevons estava ciente desse fato e que sua teoria pode ser levada à coerência dos fatos da vida por uma série de interpretações que, com efeito, substituem “preço de demanda” e “preço de oferta” por “utilidade” e “desutilidade”: porém, quando adaptada dessa maneira, ela perde grande parte de sua força contra as doutrinas mais antigas. Se ambas devem ser interpretadas de maneira estritamente literal, as formulações mais antigas, embora não perfeitamente precisas, parecem mais próximas da verdade do que aquilo que Jevons e alguns de seus seguidores pretendem colocar em seu lugar. [85]
Em defesa da sofisticação da doutrina de Ricardo, como ele a compreendia, Marshall citava uma passagem de uma carta de Ricardo a Malthus: “é a oferta que regula o valor e a oferta é controlada pelo custo de produção comparado”. Em sua carta seguinte, dizia: “não contesto a influência da demanda sobre o preço dos grãos ou de quaisuqer outras coisas, mas a oferta a segue perto de seus calcanhares e logo toma para as próprias mãos o poder de regular o preço, sendo nessa regulação determinada pelo custo de produção”. Da mesma forma, citava Mill, que dizia que “a lei da demanda e da oferta (…) é controlada, mas não suplantada pela lei do custo de produção, uma vez que o custo de produção não teria qualquer efeito sobre o valor se não pudesse ter sobre a oferta”. Assim, a doutrina “revolucionária” de Jevons, de que a influência do custo de produção era sentida através das leis da oferta e da demanda, era parte da doutrina de Ricardo e Mill. [86]
Em seu resumo do conflito entre Jevons e os economistas políticos clássicos, Marshall criticava os primeiros por negligenciar o elemento tempo da mesma maneira que Ricardo: “Tentam refutar as doutrinas a respeito das tendências últimas (…) das relações do custo de produção e do valor por meio de argumentos que se baseiam nas causas de mudanças temporárias e flutuações de valor de curto prazo”. [87]
Como veremos na seção seguinte, a ênfase exagerada de Jevons no curto prazo e seu tratamento dos estoques existentes ofertados como um fator estático a cada momento era quase integralmente reproduzido pelos austríacos posteriores em suas críticas ao princípio do custo.
Referências:
70. Dobb, Maurice. Theories of Value and Distribution. Cambridge: University of Cambridge, 1973, pp. 112-113; Meek, Ronald. Studies in the Labour Theory of Value. 1956, p. 123, pp. 245-246.
71. Marshall, Alfred. Principles of Economics: An Introductory Volume. 8ª ed. Nova York: The MacMillan Company, 1948, p. 580, pp. 587-588.
72. Idem, p. 348.
73. Idem, p. 84.
74. Idem, p. 349.
75. Idem, p. 366.
76. Idem, p. 372.
77. Idem, p. 402.
78. Idem, p. 372.
79. Idem, p. 346-347.
80. Idem, p. 577.
81. Idem, p. 503.
82. Idem, p. 817.
83. Idem, p. 818.
84. Idem, p. 95.
85. Idem, p. 818.
86. Idem, p. 819.
87. Idem, p. 821.
Traduzido por Erick Vasconcelos.