Neste sábado (24/05), é a data oficial da Marcha das Vadias no Brasil. O evento acontecerá em várias cidades ao redor do país, e, segundo a organização da Marcha em São Paulo, em sua página no facebook, trata de chamar atenção da sociedade para que esta “entenda que as mulheres não são responsáveis pela violência que sofrem. A sobrevivente nunca é culpada. Culpado é o agressor.”
Deve-se recordar que, na origem da Marcha, está o slut-shaming, uma forma de controle do comportamento feminino baseada em humilhação e intimidação sistemáticas de mulheres que se desviam de determinados parâmetros de conduta sexual. O efeito disso é regular a sexualidade feminina de modo mais rigoroso e repressor do que a masculina, normalizando a desigualdade de gênero.
Associado a isso, há a “cultura de estupro”: elementos culturais que, mesmo da perspectiva da cultura “respeitável” (isto é, não criminosa) da sociedade, normalizam ou relativizam certas formas de estupro e assédio sobre o corpo (geralmente) feminino. O efeito disso é a utilização da possibilidade do estupro e do assédio sobre o corpo (e, indissociavelmente, o psicológico e o emocional) como uma forma de intimidação e, no limite, de punição e correção da sexualidade feminina.
É quando se vê desde essa perspectiva mais abrangente que se pode ver a ligação entre os fenômenos: o slut-shaming pode servir de trampolim para justificar o assédio e o estupro. Um exemplo seria rotular determinadas mulheres como “vadias”, para, então, desculpar ou ser condescendente com a violação da intimidade e da dignidade sexual delas porque elas estariam “provocando” e seriam de algum modo culpáveis por isso. (Para uma instância mais sutil, veja este texto onde critico misturar probabilidade estatística com moralização da vítima.)
O caráter profundamente anti-libertário desse tipo de prática cultural é manifesto: trata-se de um desrespeito à liberdade sexual e aos arranjos consentidos entre adultos autônomos que dela derivam, no limite chegando mesmo a negar às mulheres o seu direito de negar consentimento à investida masculina caso elas de alguma forma tenham se desviado de certos padrões.
A cultura brasileira historicamente foi marcada pelo sexismo. Em 1927, a anarquista individualista Maria Lacerda de Moura, uma das pioneiras do feminismo no Brasil e envolvida com o movimento operário à época, escreveu o texto “Seduzidas e Desonradas” no jornal O Combate onde denunciava o duplo padrão de moralidade e o slut-shaming, focado na virgindade feminina e sua guarda para o casamento, com severas penalidades às desviantes:
“E ai daquela que se esquece do protocolo.
“Se, hoje, não é lapidada, se não é enterrada viva como as vestais, se não é apedrejada até a morte, se não sofre os suplícios do poviléu fanático de outros tempos, inventou-se o suicídio: é obrigada a desertar da vida por si mesma, porque a literatura, a imprensa, toda gente aponta-a com o dedo, vociferando o “desgraçada”, “perdida”, “desonrada”, “desonesta”, abrindo-lhe, no caso contrario, as portas da prostituição barata das calçadas, com todo o seu cortejo de misérias, de sífilis, de bordeis, de humilhações, do hospital e da vala comum.”
“Miserável moral de coronéis, de covardes e cretinos!”
No Brasil de Maria Lacerda de Moura, os tabus ligados à virgindade pré-marital catalisavam as atitudes sexistas. No Brasil da Marcha das Vadias de 2014, temos a divulgação de fotos e vídeos íntimos de garotas, nuas ou mantendo relação sexual, por meio do WhatsApp, possibilitando assim a rápida viralização e subsequente exposição pública. É o revenge porn, a vingança de um ex-parceiro sexual, que vaza fotos e vídeos privados como se fosse pornografia, com o objetivo de expor sua ex-parceira.
Como nos dias de Maria Lacerda de Moura, as garotas vítimas dessa divulgação imoral e criminosa (pois que fere o preceito do consentimento voluntário livre) são humilhadas, intimidadas, perseguidas, assediadas, desencadeando todo um ciclo de slut-shaming , culpabilização da vítima e pretexto para assédio em seu círculo de convivência ou no mundo virtual que, a depender de sua intensidade e do próprio perfil emocional da vítima, pode mesmo levar a vítima ao suicídio, como no caso da Julia Rebeca. Os tempos mudaram, mas muita daquela “miserável moral de coronéis, de covardes e cretinos” ainda persiste na mentalidade de muitos.
E como mudar isso? Na tradição feminista, uma importante ferramenta é a ação direta, buscando promover mudança social descentralizada a partir da “base”, sem apelar para estruturas coercitivas como o Estado. Charles Johnson refere-se às formas de solidariedade e resistência que muitas feministas empregaram historicamente para mudar as atitudes sociais e prover ajuda para mulheres que dela necessitassem, como “grupos, reuniōes, culture jamming, redes de mulheres agredidas, centros de combate ao estupro e outros espaços feministas” originalmente sem conexão com o governo.
Dentro desta admirável e libertária tradição de ação direta feminista, atualizada para tempos onde a tecnologia propiciou novas formas de slut-shaming, temos um grupo de seis meninas feministas de 16 anos de idade que criaram um protótipo de aplicativo de celular, o For You.
A ideia, conforme já divulgado, é apoiar meninas adolescentes que tiveram suas fotos vazadas na internet, criando um espaço seguro onde possam conhecer outras vítimas, discutir os temas que circundam a revenge porn (por meio de abas educativas sobre legislação, manifestos sobre como isto não é sua culpa, depoimentos de vítimas, etc.) e inclusive embaixadoras locais para montarem grupos presenciais que combatam a intimidação que as vítimas possam vir a sofrer. Em vídeo, elas explicam como querem usar a tecnologia para distribuir informação sobre abuso online, empoderando as vítimas.
“Se eles usam apps para nos humilhar, nós revidamos usando apps para nos empoderar e organizar!”, é o mote do grupo formado por Camila Ziron, Estela Machado, Hadassa Mussi, Larissa Rodrigues e Letícia Santos. Elas estão participando do concurso Technovation Challenge, cujo grupo vencedor receberá 10.000 dólares de financiamento e suporte para desenvolvimento.
A emancipação feminina está sendo e será obtida por meio da ampliação e do esclarecimento das redes de cooperação social voluntária. Isso nos leva a uma perspectiva de mudança social feminista mais sociológica, evolucionária, microeconômica. Mas também é dessa maneira que a liberdade humana em relação às estruturas coercitivas do Estado será alcançada. Coincidência? De modo algum, pois a emancipação feminina é uma instância do progresso em direção a uma sociedade livre.