Em 2010, Newt Gingrich explicava que o presidente americano Barack Obama é “impossível de se entender” a não ser que usemos sua orientação ideológica “queniana e anti-colonial” para compreender suas bizarras ações. Porém, Obama tem sido incrivelmente bem sucedido em esconder seu profundo ódio ao colonialismo — ao ponto de elogiar a Europa, em discurso feito no último dia 26, por dar ao mundo direitos humanos e democracia:
[…] foi aqui na Europa, através de séculos de luta […] que alguns ideais começaram a surgir: a crença de que, através da consciência e do livre arbítrio, cada um de nós tem o direito de viver como desejar. A crença de que o poder é derivado do consentimento dos governados […].
David Graeber, antropólogo e pensador anarquista associado ao movimento Occupy Wall Street desde o princípio, tem muito a dizer sobre a ideia de que o auto-governo seja uma abstração tão grande que a raça humana sofria em sua ignorância até que alguns caras bem inteligentes em Atenas, Paris ou Filadélfia pensassem nela.
Em Fragmentos de uma Antropologia Anarquista, David Graeber argumenta que o auto-governo é algo praticado praticamente em todo lugar em grupos pequenos de pessoas comuns, porque, quando não há policiais ou exércitos para oprimir ninguém, ouvir as outras pessoas e estabelecer consensos é coisa mais sensata a se fazer. Esse tipo de tomada de decisões por consenso foi praticada em conselhos de vilarejos em todo o mundo durante toda a história e também por instituições populares que controlam recursos comuns, como estudou Elinor Ostrom. Essas instituições populares resistiram por muito tempo depois de o estado ter sido sobreposto à sociedade — instituições de vilas como o Mir russo e sociedades de trabalhadores e associações mútuas, por exemplo. Quanto à ideia de que as pessoas devem ter igual voz nas decisões que as afetam, isso é intuitivo para quase todos.
Os acadêmicos ocidentais da história do pensamento político normalmente não consideram que coisas como “um conselho de um vilarejo sulawesi ou talensi” estejam “no mesmo nível de Péricles”. Talvez, como afirma Graeber, decisões majoritárias e votações “não sejam ideias tão incrivelmente sofisticadas que não teriam ocorrido a ninguém até que um gênio antigo as ‘inventasse'”. Talvez o modelo ocidental de democracia majoritária não tenha sido amplamente utilizado em sociedades igualitárias porque, sem a estrutura concentrada e coercitiva para forçar as decisões da maioria sobre a minoria, era mais sensato tomar decisões por consenso e evitar a polarização da comunidade em facções.
A democracia majoritária emergiu somente quando duas condições existiam: 1) a maioria das pessoas passou a achar que era uma boa ideia que tivessem voz em decisões que as afetassem; e 2) surgiu de um “aparato coercitivo capaz de executar essas decisões”. É, na realidade, bastante incomum que as duas condições existam ao mesmo tempo, porque em sociedades com valores geralmente igualitários, a própria existência da coerção sistemática é considerada errada. E onde quer que ela tenha existido, a coerção teve origem no fato de que um grupo de pessoas deliberadamente utilizavam a força para perseguir seus interesses às custas daqueles afetados por suas decisões. O estado surgiu como meio para privilegiar as classes que o controlavam e extrair rendimentos da maioria que era subjugada.
A democracia, enquanto ideologia moderna, surgiu em sociedades que já eram dominadas por estados coercitivos que privilegiavam os interesses da classe dominante. Sentimentos democráticos e igualitários geralmente foram cooptados por facções dissidentes dentro das classes dominantes ou por classes desejosas do poder para conseguir o apoio das classes mais baixas para derrubar o regime existente — e para que, depois, as novas classes dominantes instaurem uma democracia de fachada tendo elas próprias como guardiãs para governar a maioria de acordo com seus interesses.
É esse tipo de “democracia” que é defendida por Obama. Noam Chomsky a chama de “democracia de espectadores”: escolher entre candidatos que representam alas de disputa dentro da mesma classe dominante, escolhidos por essa mesma classe dentro de suas fileiras, e sentar e calar a boca depois do fim da eleição, quando as novas lideranças vão obedecer às ordens do Banco Mundial, do FMI e assinar o próximo tratado de “livre comércio” escrito por corporações transnacionais (seguindo os mesmos passos das lideranças anteriores). Se, por algum desastre, o governo de um país de fato passar a refletir algum tipo de democracia genuína que ameace os interesses do capital transnacional, Washington o declara um “estado terrorista” ou “estado falido” e manda seus funcionários da CIA, da National Endowment for Democracy e da Fundação Soros para miná-lo, ou estimula militares com laços com os EUA a derrubá-lo.
A verdadeira democracia existia muito antes do surgimento dos estados, já que os seres humanos viviam inicialmente em comunidades. E ela continuará a existir muito depois de o governo sumir.
Traduzido do inglês para o português por Erick Vasconcelos.