Por Kevin Carson. Artigo original: On Captive Clienteles and Enshittification, de 13 de agosto de 2024. Traduzido para o português por Ruan L.
Há quatro anos atrás, em uma coluna, recontei a experiência de uma amiga no âmbito do Ensino Superior [no original: academia] com um “software de gestão do aprendizagem”, software este que sua instituição colocou como requisito para elaborar avaliações. Ela reclamou:
“que estava tentando criar uma avaliação no meio do período letivo e que o ‘blackboard é um lixo completo. Não havia nenhuma maneira intuitiva de separar as questões em seções, não era possível dar instruções para seções específicas, não tinha como colocar algumas perguntas como obrigatórias, por exemplo, se 10 das 15 questões que os estudantes fariam seriam facultativas’. Assim como suspeitei, quando questionada, ela respondeu que a escolha do software foi involuntária: ‘os três grandões são o Blackboard, o Canvas e o Moodle – ‘softwares de gestão da aprendizagem’. As instituições escolhem um, e, então, todos os têm de usá-lo. O Blackboard é o mais antigo, o mais desajeitado e, de longe, o pior.”
Neste mês, um artigo da Business Insider teve uma avaliação parecida com o software de gestão empresarial “Workday”:
“Desde 2006, a Workday, que provê o software que permite o payroll, a gestão de talentos e o processamento de gastos, vem fazendo uma bufunfa com a criação de uma miséria no lugar onde os processos menos dolorosos poderiam ser efetuados. Mais da metade das companhias da Fortune 500 usam Workday para pagar, contratar, treinar e administrar benefícios para os seus empregados …
O LinkedIn, o Reddit e o Blind encheram de pessoas em busca de emprego e de empregados compartilhando histórias do quão difícil é tirar folgas ou férias [no original: to book paid leave], o quão Kafkiano é arquivar um gasto e o quão aperriante é fechar um projeto. ‘Eu simplesmente odeio o Workday. Danem-se eles e aqueles que insistem em usá-lo para o recrutamento’, disse um usuário do Reddit. ‘Tudo é anti-intuitivo e até as tarefas mais fáceis me fazem, pois, coçar a barba’, escreveu outro. ‘Manter notas em index cards seria mais efetivo’. Todos os profissionais de RH e gestores de contratação com quem falei, aqueles os quais as vidas são supostamente facilitadas pelo Workday, descreveram o mesmo com chispas de impotência. ‘É como ser botsmackado pela burocracia encarnada’, disse um copy director em uma startup em São Francisco que teve a má sorte de ter de aceitar contratos através do Workday.”
Então, assim como o subtítulo do artigo pergunta: “ele cria montanhas de trabalho para todo mundo, mas por que a metade da Fortune 500 o utiliza?”
Na verdade, a resposta é bastante direta. Muito do lixo com o qual nós interagimos é como algo que sai do filme Brazil de Terry Gillam, ou dos Feds do Snow Crash. Isto se dá porque ele é projetado pela burocracia descontextualizada de R&D de uma corporação, tendo em vista a burocracia de procurement de outra, por causa de uma clientela cativa de terceiros sem poder (pessoas em busca de emprego, estudantes, prisioneiros, pagadores de impostos, etc.), onde ninguém está envolvido de qualquer maneira em um processo de tomada de decisão transparente sobre os softwares e hardwares inutilizáves infligidos sobre os mesmos.
Falando em hardware, um exemplo clássico é o das bolsas de gelo mecanizadas para pacientes ortopédicos operados na unidade de rehabilitação do hospital onde eu trabalhava. Quando comecei a trabalhar lá, tínhamos um estoque interno de dispositivos que eram muito bons. Eram fortes, com bombas duráveis e foram reusados incontáveis vezes por muitos anos sem nenhum problema sério. O melhor de tudo, a parte do peitoral tinha paredes grossamente isoladas, e nós só tínhamos de drenar e encher novamente uma vez perdida.
Isso não impediu o hospital de substituí-los. O novo modelo tinha paredes plásticas, transparentes e com pouca capacidade de isolamento; e nós tinhamos de encher a câmara de gelo novamente dentro de um certo número de horas. Além disso, os motores eram tão desengonçados que os pacientes reclamavam da cobrança pelo uso de múltiplas máquinas – umas centenas de dólares cada – durante uma estadia de poucas semanas no hospital.
Já que as hierarquias burocráticas distorceram o fluxo da informação de baixo para cima, aqueles no topo da pirâmide sem dúvida julgaram a mudança como um grande êxito. E, desde que aqueles que estão no topo das pirâmides burocráticas se comunicam melhor com outros que estão no topo de outras pirâmides do que com aqueles que estão abaixo na sua, as novas máquinas de gelo foram adotadas como uma “prática melhor” pelos outros hospitais. De qualquer maneira, do ponto de vista da gestão, realmente não é importante se máquinas funcionam. Eles, os gestores, não são aqueles que têm de usá-las. Além disso, desde que um punhado de grandes hospitais da área começou a compartilhar a mesma cultura organizacional, e provavelmente as mesmas máquinas, isso dificilmente é uma questão de competição.
Tudo isso mostra como as patologias da hierarquia e a disfunção resultam do poder opaco [unaccountable]. Aqueles que estão no poder fazem decisões baseadas em informações distorcidas tiradas de baixo, e externalizam os efeitos negativos de suas decisões sobre aqueles que estão em baixo.
O Estado burocrático e a corporação oligopolista gigante são exemplos exímios deste modelo organizacional, modelo este que se tornou hegemônico em nossa sociedade. Junto com as grandes universidades e outras organizações, eles constituem um ecosistema fechado de instituições burocráticas que são quase totalmente controladas pelas mesmas elites circulantes.
A única solução é abolir estas burocracias hierárquicas: descentralize-as ao menor nível viável, e coloque-as sob a gestão daqueles que ou estão de fato envolvidos na produção de seus bens e serviços, ou são afetados por suas ações, isto é, trabalhadores, consumidores e as comunidades locais onde elas operam. Apenas quando o conhecimento direto, a experiência das consequências e o poder de tomada de decisão estiverem nas mesmas mãos, o funcionamento racional será possível.