Protocolos dos Sábios de Sião, QAnon e o Culto ao Estatismo

Logan Marie Glitterbomb. Título original: Protocols of the Elders of Zion, QAnon, and the Cult of Statism, 10 de outubro 2020. Traduzido por Gabriel Serpa.

No início dos anos 1900, um livro anônimo popularmente conhecido como Os Protocolos dos Sábios de Sião começou a circular. Era uma publicação abertamente antissemita que afirmava, falsamente, ter sido escrita pelos próprios “sábios do Sião”, detalhando seus supostos planos para a dominação mundial, a despeito de não ter passado de um óbvio plágio de outras fontes históricas — sendo algumas destas sequer de origem antissemita. Mais notavelmente, Os Protocolos copiaram excertos inteiros de O Estado Judeu (no original, Der Judenstaat), originalmente entitulado Aos Rothschilds (traduzido livremente de Address to the Rothschilds), de Theodor Herzl; Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu (no original, Dialogue aux enfers entre Machiavel et Montesquieu), de Maurice Joly; e O Discurso do Rabino (no original, Biarritz), de Hermann Goedsche.

Maurice Joly foi um francês republicano que serviu como membro do baixo escalão da Comuna de Paris, evento que precipitou a separação entre marxistas e anarquistas. Seu romance Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu era uma sátira política que criticava as ambições políticas de Luís Bonaparte, também chamado Napoleão III, que era representado na obra por Nicolau Maquiavel tendo um diálogo no inferno com Charles Montesquieu. A substituição de Napoleão III por Maquiavel no romance se deveu à ilegalidade de se criticar o regime, à época, sem que isto, no entanto, tenha impedido que Joly cumprisse quinze anos de prisão por seus “crimes”. Não obstante nenhuma das personagens retratadas ser judia, o livro serve como crítica velada ao desejo de Luís Bonaparte de dominar o mundo.

Em 1868, quatro anos após a publicação do livro de Joly, Hermann Goedsche plagiou profundamente a obra em seu romance O Discurso do Rabino, tendo adicionado um capítulo chamado “No cemitério de Praga” no qual descrevia um encontro centenário, à meia-noite, de uma sociedade secreta de rabinos, conhecida como o Conselho de Representantes das Doze Tribos de Israel, no qual discorriam sobre o progresso de seus planos de dominação mundial, por meio da infiltração de órgãos políticos e de imprensa, pela aquisição de terras, industrialização e por aí vai. Este capítulo, por sua vez, também plagiou outra obra, esta de Alexandre Dumas, entitulada Joseph Balsamo, que tratava de um relato ficcional de um suposto encontro entre Joseph Balsamo, também conhecido como Alessandro Cagliostro, e outros indivíduos para conspirarem sobre o Caso do colar de diamantes, envolvendo a rainha Maria Antonieta, que viria a ser uma das causas para a Revolução Francesa. Sob qualquer aspecto, nenhum dos romances que Goedsche plagiou de forma escancarada eram antissemitas, mas ele próprio o era notadamente e, assim sendo, resolveu retratar em sua ficção um complô de judeus que visavam dominar o mundo. Devemos apontar que Goedsche não apenas escreveu uma ficção, como também ignorava o fato de que apenas duas das dozes tribos de Israel originárias existiam durante o período em que ele escrevia seu romance, tornando-o completamente impreciso mesmo para uma peça pausível de ficcão histórica.

Theodor Herzl originalmente escreveu Aos Rothschilds, em 1891, como um discurso a ser transmitido à família Rothschild advogando a criação de um estado judaico, plano este que foi rejeitado por Baron Edmond de Rothschild, que o viu como uma ameaça à diáspora judaica e ao assentamento que ele mesmo queria estabelecer. Mais tarde, este discurso foi renomeado para publicação como O Estado Judeu e, desde então, se tornou uma das obras profícuas do movimento sionista, tendo popularizado o próprio termo Sionismo. Esta obra também era conhecida por outro nome, em suas edições originais do francês e russo: Protocolos Sionistas.
 
Os autores de Protocolos dos Sábios de Sião, ainda desconhecidos, roubaram este título e plagiaram Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu enquanto ainda se inspiravam na subversão antissemita de Goedsche, citando diretamente o discurso do rabino no encontro fictício entre o Conselho de Representantes das Doze Tribos de Israel e combinando-o a extrapolações dos objetivos do Sionismo. A despeito de beber descaradamente de fontes fictícias, este livro foi alardeado como sendo um relato verdadeiro do encontro dos membros do Conselho, que detalhariam o tal complô para dominar o mundo. Além do suposto plano já mencionado, o livro “revelaria” a participação dos membros em uma cerimônia, conhecida como libelo de sangue, na qual eles sequestrariam e sacrificariam crianças cristãs para utilizarem seu sangue em rituais; ou ainda misturá-lo na massa de matzá (pão feito de farinha branca e água) para serem consumidos durante feriados religiosos (por exemplo, na Páscoa judaica).

Em 30 de outubro de 2016, uma conta do Twitter que se dizia sob controle de um advogado de Nova York conhecido por compartilhar conteúdo supremacista, afirmou que o Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) teria descoberto um esquema de tráfico sexual de crianças, operado pelo Partido Democrata, por meio de e-mails vazados de Anthony Weiner sem, no entanto, apresentar uma única prova que corroborasse as alegações. O NYPD negou as acusações, mas isto não impediu que os conspiracionistas seguissem acreditando nesta infundada teoria; tanto quanto provar que os Protocolos dos Sábios de Sião era um plágio de outras ficções não deteve que teóricos da conspiração acreditassem em Hitler quando ele se valeu destas afirmações em seu livro, dando assim continuidade a seu plano, e afirmando que seu objetivo era salvar crianças cristãs da Alemanha dos libelos de sangue judaicos.

Ao longo de outubro e novembro daquele ano, o Wikileaks divulgou e-mails de John Podesta, os quais muitos dos conspiracionistas afirmaram tratar do tal esquema de tráfico sexual de crianças operado por Democratas, já que havia palavras-código típicas de círculos de pornografia infantil, como pizza, junto a outras, como por exemplo hot dogs, que historicamente não são utilizadas nestes meios. Devemos observar que na maioria dos casos em que a palavra pizza foi empregada, constava em relatórios de prestação de contas dos funcionários de campanha; e as quantias gastas são condizentes com o valor que se gastaria com pizzas, e não com o preço de escravos sexuais infantis que custariam consideravelmente mais. Também devemos apontar que pizza é tipicamente um código para pornografia infantil e não para o comércio de escravos sexuais infantis, como afirmam estes teóricos da conspiração, embora não seja exagerado considerar que eles estariam utilizando este código de uma forma um pouco diferente do que ele normalmente é. Não ajudou muito o fato de que uma das pizzarias citadas nos e-mails, a Comet Ping Pong, apresentava um logotipo de uma fatia de pizza que remetia muito ao símbolo de “amante de menino” (traduzido livremente de boy lover) usado ambos por MAPs (sigla em inglês para pessoas atraídas por menores, um termo amplo que abrange pedofilia, hebefilia e efebofilia) e por molestadores de crianças de fato (a diferença é que enquanto MAPs lutam contra a atração por crianças, a maioria deles não é atraída por elas; e a maioria de molestadores não são MAPs de fato, mas estupradores que procuram vítimas fáceis; não significa, no entanto, que MAPs não possam ser molestadores). Houve ainda acusações de canibalismo em rituais satânicos e abusos, refletindo os ataques que foram feitos contra povos judeus nos Protocolos dos Sábios de Sião.

Mesmo havendo pouquíssima evidência de que o Partido Democrata estivesse por trás do já mencionado esquema com a Comet Ping Pong e outras pizzarias, isto não foi o suficiente para impedir que um destes teóricos da conspiração, chamado Edgar Maddison Welch, entrasse no restaurante, no dia 7 de dezembro daquele ano, abrindo fogo contra clientes e exigindo que fosse levado ao porão, onde supostamente seria o calabouço sexual (traduzido livremente de sex dungeon); porão este que, ao que tudo indica, sequer existia de acordo com a planta do edfício e com as investigações do Departamento da Polícia Metropolitana do Distrito de Columbia.

Apesar da falta de provas em torno dos detalhes da conspiração “Pizzagate”, como mais tarde foi apelidada, é compreensível que as pessoas desconfiassem tanto da Snopes quanto da polícia, ao afirmarem que a conspiração havia sido completamente desbaratada, considerando tanto o histórico da Snopes como agência de checagem não-confiável, e por sabidamente passar pano para (no original, shilling for) o Partido Democrata, quanto pela quantidade de policiais em inúmeros departamentos flagrados consumindo pornografia infantil e envolvidos com o tráfico sexual. O fato dos e-mails de Podesta envolverem Hillary Clinton — cujo marido, Bill, é um estuprador reincidente, associado a Jeffrey Epstein que posteriormente foi pego operando um esquema real de tráfico sexual de crianças que implicou um grande número de figuras políticas, celebridades e líderes empresariais — de nenhuma maneira ajudou a afastar as suspeitas.

Quase um ano depois, em 28 de outubro de 2017, “Q Clearance Patriot”, mais conhecido como QAnon, surgiu postando uma thread no 4chan entitulada “Calmaria Antes da Tempestade”. Ele insinuou que seria um agente do governo com acesso a informações ultrassecretas e que sabia de um complô armado por Trump para investigar supostos círculos de tráfico sexual infantil operados pelo Partido Democrata, que culminaria na tal “Tempestade”, levando a detenções, prisões em massa e execuções de milhares de envolvidos neste suposto esquema. Q continuou a postar desde então, às vezes fazendo previsões diretas, em outras oferecendo supostas mensagens codificadas no 4chan e, mais tarde, no 8chan após afirmar que o 4chan teria sido infiltrado, entretanto sem oferecer explicações de como. Estas mensagens foram interpretadas de inúmeras formas por seus vários seguidores, que desculpam previsões fracassadas alegando que uma suposta conspiração do estado profundo (no original, deep state) interfere nos planos de Trump.

Estes rumores parecem ser parte do longo histórico do 4chan de trolls que postam material para conspirações infundadas, sobretudo visando apenas a zoeira, que como afirmou a Fox em “revelações” hilárias e mal pesquisadas: “é uma corrupção do lol, que significa rir alto (em inglês, laugh out loud). 4chan e chans relacionados são conhecidos por elaborarem trolagens, como quando se passaram por feministas no Twitter, propondo uma campanha falsa para que acabassem com o dia dos pais (#EndFathersDay). Apesar da fama de espalharem informações falsas e trolarem crédulos inocentes, é como se algumas pessoas não conseguissem evitar de cair nessas pegadinhas de tempos em tempos. Ainda não ajuda o fato de que o 4chan e o 8chan, por meio de seu senso de humor errático, também tenham se tornado um abrigo para neonazistas e fanáticos do tipo, que verdadeiramente parecem acreditar em inúmeras teorias da conspiração, incluindo aquelas presentes nos Protocolos dos Sábios de Sião.
 
Como qualquer boa teoria da conspiração, há sempre pequenos fragmentos de verdade presentes. Embora as acusações de abusos, em rituais satânicos, provavelmente tenham origem nas mesmas conspirações antissemitas dos libelos de sangue dos Protocolos dos Sábios de Sião, o movimento #MeToo expôs incontáveis escândalos de abuso sexual em Hollywood, na política e outros lugares; e a prisão do notório traficante de crianças e abusador sexual, Jeffrey Epstein, expôs ainda mais pessoas da alta classe que participaram dos abusos de menores, incluindo o príncipe Andrew, Bill Clinton e o próprio Trump.

Isto não é novidade para muitos que já vinham prestando atenção. Trump havia, anteriormente, feito menção ao amor de Epstein por garotinhas jovens, enquanto o exaltava como grande amigo e afirmando que ambos gostavam de mulheres mais jovens. Trump também foi acusado de estuprar uma garota de treze anos de idade, em uma das famosas orgias de Epstein. Isto se encaixa bem com as afirmações feitas por garotas menores de idade, participantes de concursos de beleza organizados por Trump, que reclamavam dele entrando constantemente em seus camarins enquanto elas se trocavam, algo que ele mesmo se gabou de haver feito. Também se alinha com o longo padrão de acusações de abusos sexuais feitas contra Trump e seu colega, Bill Clinton, ao longo dos anos. Ainda assim, os seguidores do QAnon acreditam que sua amizade com Epstein e os Clinton foi uma encenação sob disfarce, desde os anos 90, e que as acusações de abuso são mais uma conspiração do deep state. Quanto às próprias palavras de Trump? Oras, eles parecem apenas ignorá-las, quase que por completo.

Sabemos que há operações de tráfico sexual de crianças, abusos encobertos, “quartos vermelhos” online e similares, nos quais crianças são mortas para satisfazer o prazer de pessoas realmente perturbadas, mas isso não está atrelado apenas a um partido político ou a um grupo de políticos. Trump fez parte dos mesmos círculos de Hollywood a que pertenciam abusadores como Harvey Weinstein e Kevin Spacey, por décadas, antes de se tornar político. Ele visitou a ilha de Epstein e o convidou inúmeras vezes para Mar-a-Lago (resort do qual é proprietário), e só rompeu com ele após alguns fracassos em negociações e, posteriormente, afirmando que se deveu ao comportamento sexualmente abusivo de Epstein. Trump não está tentando derrubar estas pessoas, ele é um deles. Tampouco está tentando drenar o pântano. Ele é parte do pântano.

Mas o culto ao estatismo é forte para alguns e este tipo específico, nos chamados Estados Unidos, gera um hiperpartidarismo que leva as pessoas a enxergarem o seu lado como os heróis e o outro como inimigos, não importando o quanto as evidências atestem o contrário. Esqueça o fato de que foi o movimento, majoritariamente esquerdista, #MeToo que expôs muitas das pessoas que os seguidores do QAnon usam como “prova” de que a empreitada de Trump para denunciar abusadores está funcionando, o #MeToo ainda é rejeitado como sendo uma terrível propaganda feminista e é Trump quem recebe todo o crédito. Não importa que as previsões do Q caiam por terra ou sejam refutadas, assim como quase toda pegadinha do Anonymous, o deep state é que está interferindo nos planos de Trump e desta vez o Anonymous está falando a verdade, ao contrário de todas as outras. Essas pessoas fazem papel de trouxa e carecem completamente de autoconsciência para se darem conta disso. 4channers e 8channers sempre pregaram esse tipo de peça e isto é mais do mesmo, só que desta vez encontraram um público mais ingênuo do que de costume. E o pior é que agora eles estão promovendo protestos para “salvar as crianças” (#SaveTheChildren), que mais estão ofuscando a verdadeira causa de combate ao tráfico sexual de crianças, por estarem misturando-a com um monte de bobagens.

Sim, temos de exigir justiça em nome das vítimas de políticos, celebridades e elites comerciais. Sim, precisamos investigar mais a fundo as relações de Epstein e punir os envolvidos. Sim, temos que responsabilizar a Netflix pelo escândalo “Cuties”. Sim, devemos abolir os serviços de proteção às crianças, cujo programa de adoção é responsável por, pelo menos, 88% das vítimas de tráfico sexual infantil desaparecidas. Sim, precisamos fazer todas estas coisas, mas misturá-las às afirmações antissemitas de que há uma seita satânica de elites bebendo o sangue de bebês para preservar sua própria juventude apenas serve para descreditar qualquer verdade proveniente daquele movimento; e dizer que Trump está tentando desmantelar esta escória só serve para fortalece-lo e conservar o status quo ao mesmo tempo em que reproduz a exploração feita por Hitler de teorias da conspiração semelhantes que lhe garantiram a manutenção do poder.

Apesar da enorme quantidade de agentes policiais denunciados por abuso sexual de menores e acusações de que estão envolvidos em tráfico sexual de crianças, Trump está dando todo seu apoio aos policiais, ao mesmo tempo em que tenta enfraquecer o movimento, para dar sequência aos abusos. Apesar de agentes alfandegários e de imigração (da sigla ICE, que significa Immigration and Customs Enforcement) serem flagrados abusando sexualmente de crianças e de um grande número de menores imigrantes desaparecidos, Trump segue proferindo ataques xenofóbicos infundados e oferecendo apoio ao ICE, enquanto abafa os pedidos pela completa extinção desta agência. Trump critica o #MeToo e todos aqueles ativistas que tentam denunciar e responsabilizar os abusadores. Enquanto ele deseja a Ghislaine Maxwell tudo de melhor e demonstra apoio a seguidores desinformados do QAnon, os ativistas que de fato lidam com casos de abusos estão sendo acossados e ameaçados pelos mesmos simpatizantes do QAnon que alegam querer acabar com os abusos.

O QAnon não passa de mais uma tentativa de manter cativo o apoio popular ao estado, em um momento em que seus piores aspectos vêm sendo expostos ao grande público. Enquanto as pessoas acreditarem que Trump está ajudando a resolver estes problemas, haverá apoio ao estado em vez de derrubá-lo; e é por este motivo que Trump ofereceu seu apoio a uma pegadinha de 4chan que saiu completamente do controle. Se estes crédulos atentassem para a realidade, estariam aderindo ao #MeToo; e este movimento, alinhado ao pensamento de esquerda, estaria mais apto a perceber que são as próprias estruturas de poder que permitem que abusos em larga escala ocorram. Este entendimento acarretaria não apenas no combate aos indivíduos envolvidos em abusos, mas às estruturas de poder em si, colocando em risco todo o funcionamento do estado. A única forma de acabar com estes abusos é derrubando o estado e as hierarquias capitalistas, criando um sistema de relações horizontais baseado no consentimento e na responsabilidade individual. A única maneira de acabar com os abusos e verdadeiramente salvar as crianças é a anarquia.

Anarchy and Democracy
Fighting Fascism
Markets Not Capitalism
The Anatomy of Escape
Organization Theory