The following article is translated into Portuguese from the English original, written by Carlos Clemente.
Ao se desdobrar, na Argentina, o melodrama político do momento entre o governo e o grupo Clarín, não fico surpreso com ver os partidários de cada lado sucumbirem a seus mais baixos instintos tribais, espremendo os fatos históricos para deles extraírem até a última gota de evidência disponível que favoreça seus argumentos, fingindo ao mesmo tempo nada enxergar do oceano de fatos reveladores de o lado que favorecem não ser exatamente o mocinho do filme.
Apoiadores do Clarín repetem, à saciedade, que o governo faz vista grossa em relação a grupos de mídia amigos, que detêm maior número de licenças do que as permitidas pela nova lei; que favorece esses grupos, gastando a maior parte de seu orçamento publicitário com eles; que financiou diretamente a criação de várias empresas de mídia; e que a lei possibilita aos veículos de mídia estatais atingirem 100% da população, enquanto à mídia privada atingir apenas 35% dela.
Em suma, longe de ter como objetivo “incrementar a pluralidade de vozes,” o governo simplesmente quer aumentar seu controle sobre o que essas vozes dizem.
Os partidários do governo enfatizam que o Clarín goza de posição quase monopolista em muitos mercados de mídia; que a lei substitui outra implementada durante a ditadura militar do período da Guerra Suja; e que o Clarín obteve numerosos favores da junta militar em troca de autocensurar-se e não noticiar as atrocidades cometidas pelo regime militar. Em resumo, longe de “defender a liberdade de expressão,” o Clarín simplesmente quer manter suas posições dominantes de mercado e sua capacidade de manipular os políticos como bem entender.
Contudo, o que a ambos os lados custa bastante admitir é que o Clarín e o governo foram aliados bastante próximos até 2008, quando o Clarín optou por perfilhar a oligarquia fundiária em acerbo conflito a propósito de aumento dos impostos de exportações agrícolas. Foi Néstor Kirchner quem aprovou a fusão entre a Multicanal (empresa do grupo Clarín que oferecia serviços de televisão a cabo e Internet banda larga) e a Cablevisión (sua principal competidora) em 2007, núcleo do conflito atual.
O que me surpreende, isto sim, um pouco mais é a ingenuidade de vozes extremamente lúcidas como a de Graciela Mochkofsky, que documentou meticulosamente a amizade do Clarín com Kirchner (e basicamente com qualquer outro governo argentino que o tenha privilegiado) em livro publicado recentemente, mas ao mesmo tempo é a favor da nova lei de mídia por esta pretensamente conferir ao estado capacidade para impedir a concentração de poder nos mercados de mídia.
O que Mochkovsky não enxerga é a perversa estrutura de incentivos do estado como instituição, a qual estimula os políticos a concentrarem poder deliberadamente em poucas mãos de empresários bem-relacionados a expensas do público. Independentemente da letra da lei, apesar de a decisão final a respeito de quem entrará em um mercado específico caber a órgão governamental, o poder do dinheiro encontrará algum modo de comprar a complacência política de modo a tal lei ser contornada. Isso é obviamente muito mais provável no caso dos mercados de mídia, já que os políticos que outorgam favores nesses mercados podem esperar obter aliados de especial importância estratégica no jogo de manipular a mais preciosa moeda nos sistemas políticos eleitorais: a opinião pública.
O sistema de licenças no cerne da nova lei de mídia é fundamentalmente benéficopara grupos de mídia já estabelecidos. Sejam quais forem as propriedades das quais o grupo Clarín tiver que se desvencilhar, provavelmente sairá em melhor situação do que num mercado verdadeiramente livre — onde o estado não tivesse a prerrogativa de ditar as condições sob as quais alguém possa participar. Isso é particularmente verdadeiro numa época em que uma infinidade de empreendimentos de Internet ameaça a posição dominante da mídia tradicional em crescente variedade de nichos.
Se o governo argentino realmente quisesse, drasticamente, “fortalecer a pluralidade de vozes,” poderia facilmente estabelecer regras para que surgisse forte competição em todos os nichos do panorama midiático. Poderia, por exemplo, estabelecer as bases de um regime de propriedade privada baseado em uso e ocupação do espectro eletromagnético, ou um regime de propriedade comum, ou mesmo uma combinação de ambos.
Isso permitiria que os agentes menores, como as rádios comunitárias, pudessem competir em relativa igualdade de condições. Em vez disso, a lei claramente vicia o jogo em favor das corporações e de outras grandes organizações. Tal como explica um comunicado da Rede Nacional de Mídia Alternativa, apesar de a lei reservar 33% do espectro eletromagnético para o “setor sem fins lucrativos”:
“… equipara nossa mídia a fundações e associações com maiores poder econômico e vinculações políticas (Asociasón del Fútbol Argentino – AFA, Fundação Ford, Bolsa de Comercio, Fundación Construir da Unión Obrera de la Construcción de la República Argentina – UOCRA, entre outras)… a falta de reconhecimento de nosso setor nos involucra em mecanismos para candidatar-nos a frequências com licitações carregadas de exigências que não refletem a realidade de nossa mídia (custos elevados, burocracia administrativa e contábil, projetos de investimento, declarações patrimoniais, certificados de inexistência de dívidas previdenciárias, fiscais e de gestoras de direitos, homologação de equipamentos de transmissão). Ademais, a lei requer que empreguemos locutores e operadores profissionais com relação de dependência.”
Conceber o estado como inimigo das corporações simplesmente por causa de uma disputa entre um governo específico e um ex-aliado específico é exemplo perfeito da árvore que tolda a visão do bosque. Se dermos um passo para trás e nos esforçarmos um pouco para ver o esquema maior das coisas, será fácil perceber que a relação entre o estado e o poder corporativo é sempre simbiótica até a medula.
Artigo original afixado por Carlos Clemente em 20 de dezembro de 2012.
Traduzido do inglês por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.