De Charles Boyd. Artigo original: The Myth of the Libertarian Constitution, 30 de dezembro 2020. Traduzido para o português por Gabriel Serpa.
A Constituição americana, como fora elaborada por seus criadores na Filadélfia, há muito é descrita como sendo uma garantia às liberdades individuais ante a repressão governamental. Muitos dos críticos de Donald Trump o acusam de tentar enfraquecer as bases constitucionais fundadoras do país; enquanto que indivíduos e grupos contrários a ele — de Joe Biden ao movimento Black Lives Matter — são pintados como defensores destas mesmas bases constitucionais, dedicados a restaurá-las. Mas seria essa análise precisa? Com efeito, o propósito precípuo da Constituição americana era o de expandir o poder federal. A Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos (United States Bill of Rights) foi, essencialmente, um complemento à Constituição com importantes garantias, ao mesmo tempo em que, no entanto, falhou em suprimir as tendências mais autoritárias da Carta Magna americana de 1787.
Para que possamos compreender os propósitos originais da Constituição, é preciso entender o contexto histórico em que ela se insere. Os Artigos da Confederação, que precederam a Carta americana, não impediam os governos estaduais de violarem liberdades individuais, mas haviam deixado o governo central bastante enfraquecido, já que o proibiam, dentre outras coisas, de cobrar impostos sem o aval dos estados membros. A Constituição americana foi criada, pois, para reverter isso. Como disse uma vez William O. Douglas: tirar o governo das costas do cidadão nunca foi uma de suas prioridades. Na verdade, a Carta Magna expandiu a atuação do governo federal na garantia das práticas escravagistas nos EUA. O Artigo 4o, Seção 2, Cláusula 3 determinava o retorno, aos senhores, de cativos que fugissem de estados escravocratas para aqueles em que a escravidão já houvera sido abolida. James Madison costumava gabar-se de que: a Cláusula de Escravos Fugitivos foi expressamente adicionada à Constituição para habilitar donos de escravos a reivindicá-los de volta. Esta é uma garantia melhor do que as que hoje existem.
Ao se defrontarem com tal documento que claramente aumentava o poder federal, muitos americanos exigiram que fosse incluída uma Declaração de Direitos à Constituição — afinal, até mesmo a Inglaterra tinha a sua. Então, como troca pelo endosso dos estados membros à Carta Magna, foi prometida a Bill of Rights. Apesar das inúmeras proteções às liberdades civis que foram incluídas à Declaração, muitas outras chamaram a atenção por sua ausência. A escravidão ainda recebia apoio federal. Seria até enganoso afirmar que o governo apenas a tolerasse: ele a promovia, usava de sua força policial para perseguir cativos e agia de maneira a impedir que os estados do Norte oferecessem socorro ou abrigo aos escravos; não houve o reconhecimento do direito à propriedade sobre o próprio corpo, o que permitiu aos presidentes americanos — a começar por George Washington — sancionarem leis de Conscrição; governos estaduais podiam restringir o sufrágio com base na etnia, no sexo, ou na classe social de seus cidadãos. Isso tudo fez da ideia de um governo pelo consentimento dos governados uma grande piada de mau gosto. Em vez de estabelecer que a propriedade só pudesse ser tomada pelo Estado em casos de extrema necessidade nacional, a Cláusula de Tomadas, presente na Quinta Emenda, estabeleceu que a propriedade poderia ser tomada em nome do interesse público, desde que fosse conferida uma justa compensação. Na prática, os temos interesse público e justa compensação se mostraram tão vagos que permitiram ao governo assumir o papel de Xerife de Nottingham enquanto se apresentava ao povo como um Robin Hood. Muitos americanos ainda demonstram ter esperanças de que tais políticas abrigadas pela Quinta Emenda sejam usadas em nome do bem comum, na construção de hospitais, escolas e locais de socorro aos desabrigados. Na realidade, elas permitem que oficiais do governo tomem propriedades das classes trabalhadoras e redistribuam-nas para si e para grupos de interesse mais abastados. Ainda pior: permitem que eles o façam sem ter de provarem a necessidade dessa redistribuição às avessas, ou ainda sem ter de indenizarem quantias suficientes que cubram os prejuízos das partes perdedoras. Donald Trump é apenas um exemplo, dentre os mais inglórios, de pessoas ricas que exploram a vagueza da Cláusula de Tomadas para expropriarem para si as posses dos mais pobres.
O direito à autonomia corporal — isto é, de deixar o governo fora das quatro paredes — também não foi reconhecido, deixando que leis contrárias à homossexualidade vigorassem intactas por muito tempo. Falando em termos mais amplos, nenhuma lei proibia, expressamente, o governo de restringir direitos civis ou de discriminar quaisquer grupos, com base na etnia, no sexo, ou em qualquer outro traço individual imutável. A linguagem utilizada — O Congresso não deverá legislar… — indicava que a Declaração dos Direitos apenas estabelecia restrições ao governo federal, mas não aos estaduais. Essa interpretação era muito comum antes da aprovação da Décima Quarta Emenda — cerca de oitenta anos mais tarde apenas —, e muitos direitistas, ainda hoje, se apegam a essa hermenêutica.
Não é nenhuma surpresa que sete novas emendas seriam necessárias para que fossem extintas, de uma vez por todas, a escravidão, as recusas de direitos iguais para mulheres e minorias étnicas, e as restrições ao sufrágio. Tampouco surpreende que as mais importantes decisões, proferidas pela Suprema Corte, a respeito da igualdade de direitos — como por exemplo Brown vs. Conselho de Educação, Loving vs. Virginia, Lawrence vs. Texas e Obergefell vs. Hodges — tiveram como base a Décima Quarta Emenda, em vez da Declaração de Direitos dos Estados Unidos. E alguns dos casos mais importantes relativos à Declaração — Conselho de Educação de West Virginia vs. Barnette, Texas vs. Johnson, Tinker vs. Des Moines e Cidade de Indianapolis vs. Edmond — teriam sido muito mais árduos se não fosse pela Décima Quarta Emenda impedir que governos estaduais violassem aBill of Rights dos EUA.
Talvez eu seja acusado de anacronismo por analisar a Constituição original segundo nossos padrões atuais. Mas podemos encontrar exemplos de códigos legais setecentistas e oitocentistas que se mostravam muito mais libertários em algumas dessas questões: o estado de Vermont aprovou sua legislação abolicionista em 1777, conferindo aos negros o direito de votar; o Haiti aboliu a escravidão em 1804, após seu período revolucionário; a França legalizou a homossexualidade em 1791, e o Haiti jamais tentou proibi-la depois da sua Independência. Além desses exemplos, muitas sociedades nativas americanas eram mais libertárias do que a Constituição americana original no que diz respeito aos direitos das mulheres, à escravidão, à homossexualidade e aos papéis de gênero. Não é uma surpresa que abolicionistas como William Nell, Wendell Phillips e William Lloyd Garrison se referissem à Carta Magna como sendo uma barreira à liberdade individual. E tampouco nos surpreende que Roy Moore — alguém que advoga um governo que combine as características de Richmond de 1860 com as de Riad de 2020 — queira revertê-la à sua concepção original.