Liberalismo fora de contexto é pretexto

No Brasil, costuma-se dizer que “texto fora de contexto é pretexto”. O jogo de palavras traduz uma verdade valiosa: se alguém interpreta o texto fora do contexto, pode ser para usá-lo como pretexto para alguma coisa. Ou seja, interpretar algo sem o contexto acaba servindo a interesses ou motivos bem diferentes do que o original se pretendia.

Isso deve servir de alerta para o nascente e crescente movimento libertário brasileiro. O exame de fenômenos políticos e sociais deve ser feito em seus adequados contextos de análise.

Infelizmente, tenho visto muitas instâncias de “liberalismo descontextualizado”. Esse tipo de liberalismo resulta da aplicação de princípios liberais à determinada questão política, mas de forma isolada, sem examinar com atenção o contexto. Isso vicia a análise de modo assustador.

Um exemplo é o caso da reintegração da Oi, sobre a qual falei em texto anterior. Alguns liberais elogiaram a reintegração pela decisão judicial ter sido cumprida rapidamente. Isso pode ser uma aplicação tecnicamente correta do princípio de que a propriedade deve ser protegida contra sua tomada por outros. Mas não falta algo a esta técnica? Isso mesmo: contexto.

Milhares de pessoas foram desapropriadas por conta das obras da Copa do Mundo, e indígenas e ribeirinhos estão sendo desapropriados por conta da construção de Belo Monte. A mesma eficiência com que o Estado, por meio de sua polícia, efetuou a reintegração de posse da Oi é que o permite desalojar pessoas mais pobres. A reintegração da Oi, em contexto, revela um modelo de Estado que combina proteção à propriedade da terra das corporações e dos ricos com uma persistente desproteção da posse das pessoas mais pobres e uma ânsia em controlar o acesso destas à terra.

Um segundo exemplo é a tendência, em alguns círculos, de criticar o bolsa-família e seus recebedores. Escutem Kevin Carson: não devemos sentir raiva das pessoas que recebem assistência social, pois os verdadeiros parasitas estão mais acima na pirâmide social.

Pense comigo: o Estado, por meio de várias intervenções e leis no passado e no presente, tirou inúmeras oportunidades das pessoas mais pobres no Brasil e concedeu privilégios (sutis ou escancarados) a determinados grupos bem-conectados politicamente que muito os beneficiam. Você acha mesmo que ganhar o valor do bolsa-família é maior do que aquilo que foi tirado dos pobres em termos de oportunidades? Mesmo recebendo bolsa-família, essas pessoas ainda estão sendo prejudicadas pela política governamental. Mais vale criticar o BNDES e a insistência do governo brasileiro em financiar o surgimento de multinacionais brasileiras.

Um último exemplo: separatismo paulista. Existe, historicamente, um movimento de secessão no estado de São Paulo. Libertários defendem secessão, mas a secessão almejada por estes grupos separatistas não é libertária, uma vez que não reconheceriam o direito dos subconjuntos de São Paulo (como suas cidades) à separação.

Além disso, algumas pessoas desses grupos alegam que São Paulo deve se separar, porque “sustenta o resto do país” ao gerar riqueza cuja tributação vai para outros estados mais pobres. É impossível associar isso com libertarianismo, mesmo que superficialmente pareça possível. A Amazônia e o Nordeste brasileiros foram prejudicados pelas medidas protecionistas em favor da indústria paulista. Essas regiões mais pobres tiveram que comprar produtos mais caros para financiar o suposto “bem comum do desenvolvimento nacional” que, em suma, significa o bem da indústria paulista protegida da livre concorrência internacional. Atualmente, por exemplo, faria sentido que os estados amazônicos estivessem em livre comércio com os países do Pacto Andino, mas isso não é possível, porque, para Brasília, o Mercosul é sagrado.

Se há algo de formidável na tradição libertária de esquerda dos Estados Unidos é sua capacidade de tornar o libertarianismo uma poderosa ferramenta de análise contextual para crítica política. Albert Jay Nock, por exemplo, denunciava o uso de “termos impostores”, como laissez faire e individualismo, para encobrir o fato de que, desde o início do moderno sistema fabril, houve intervenção sistemática em favor de industriais. No Brasil, em cursos de Direito, um “termo impostor” conveniente é o de “estado liberal do século 19”, quando, na verdade, liberais clássicos foram oposição mesmo no século 19.

Portanto, a conclusão que podemos chegar é que, superficialmente e fora de contexto, a aplicação de princípios liberais parece coincidir com interesses de elites, mas sua aplicação de forma contextualizada e responsável coincide com os interesses de todas as pessoas, inclusive e especialmente das mais pobres. O liberalismo contextualizado tende a ser alguma forma de libertarianismo bleeding heart, que promove liberdade individual e justiça social ao mesmo tempo. Não iremos concordar sempre, porque a variedade filosófica no libertarianismo é impressionante e positiva, mas seremos mais coerentes com a alma do liberalismo clássico.

O Brasil precisa de um liberalismo contextualizado, que, consequentemente, será inclusivo, libertador e humanitário. Já o liberalismo sem contexto é pretexto para servir à “resistência daqueles interesses egoístas e cegos que se colocam além da necessária transformação da organização política e econômica que cessaram de ser adaptadas às condições da existência presentes das sociedades”, de que Molinari nos alertava desde o século retrasado.

Anarchy and Democracy
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Markets Not Capitalism
The Anatomy of Escape
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