Na madrugada do dia 4 para o dia 5 de novembro, Belém foi dormir aterrorizada.
Após a execução do cabo Figueiredo, da Ronda Ostensiva Tática Metropolitana (Rotam) da Polícia Militar do Estado do Pará, às 19h30 do dia 4, uma retaliação seguiu-se, com 9 mortes confirmadas no total segundo a divulgação oficial, 6 das quais com indícios incontroversos de execução, ocorrendo concomitantemente à operação da Rotam para prender os responsáveis pela execução do cabo da PM. Apesar da contagem oficial, muitas pessoas acreditam que o número de mortos tenha sido maior, dada a noite de perseguição.
Boatos, áudios e vídeos se espalhavam enquanto as execuções aconteciam por meio do WhatsApp e do Facebook, mostrando o que se passava na periferia da capital paraense, nos bairros Guamá, Terra Firme, Jurunas e Canudos, especialmente.
Neles, houve um toque de recolher extraoficial, dada a expectativa de que haveria retaliações contra suspeitos e que o objetivo desse grupo de extermínio (presumivelmente composto por policiais militares) era o de “não fazer prisioneiros”. O grupo clandestino atuaria acobertado sob o pretexto da operação oficial da Rotam e seu objetivo era o de executar os suspeitos.
É importante que se esclareça que as mortes não decorreram de tiroteios ou de resistência à prisão. Foram execuções. O próprio governo do estado reconhece, em nota oficial, que foram homicídios, embora não conclua que houve participação de policiais militares. O secretário de Segurança Pública do Pará, Luiz Fernandes, reconhece também que as investigações trabalham com a hipótese da atuação de grupos de extermínio.
Porém, a sequência de acontecimentos não pode ser entendida a menos que se compreenda seu contexto: a dinâmica do combate às drogas local.
Em Belém, 66% da população mora em construções irregulares, favelas ou afins, que, primeiro, aglomeraram-se nas proximidades do centro (como ocorre em bairros como Guamá e Jurunas, e mesmo da Terra Firme, palco dos homicídios) e, mais recentemente, em bairros mais distantes. São áreas de grande adensamento, com pouco espaçamento entre as residências, mas que possibilitaram à cidade absorver um grande contingente de migrantes do interior do estado e do Maranhão, estado vizinho, inclusive para residência próximo ao centro onde estão grande parte dos empregos.
Entretanto, como em outras regiões brasileiras, são áreas marcadas pelo acesso precário a serviços públicos básicos, como saneamento básico, e pela débil proteção do direito à propriedade (embora não sejam comuns desapropriações ou remoções em Belém). Além disso, como resultado da proibição do comércio de drogas, acabam sob o domínio de criminosos do tráfico de drogas.
Há algum tempo, sabe-se que os chefes do tráfico de drogas financiam milícias. Segundo reportagem do início do ano, sobre a atuação de milícias nos bairros do Guamá e da Terra Firme, esses grupos são formados por criminosos e policiais (geralmente já fora dos quadros funcionais da corporação), para proteção de traficantes contra outros traficantes e a polícia, mas também para extorquir a população. Como relata um morador da Terra Firme à reportagem:
“Eles pedem dinheiro para as pessoas e matam quem estiver no seu caminho. É própria criminalidade matando a criminalidade, mas há também pessoas de bem que são vítimas. Quando eles estão incomodados com alguma pessoa, criam uma circunstância para que o crime aconteça”
Já o grupo que atua no Guamá, formado principalmente por policiais reformados, estaria envolvido no assassinato de jovens, de “quem anda pela rua fora de hora, quem rouba e usa drogas”, como afirma um morador. Por medo, a lei do silêncio prevalece.
A reportagem também mostra que a polícia costuma trabalhar com a hipótese de pistoleiros contratados para acertos de contas ou para executar quem está em dívida, negando a existência de milícias e de grupos de extermínio que é sustentada pela população que mora nesses bairros. Os eventos da última terça parecem ter mudado isso, já que o secretário de Segurança Pública reconheceu a possibilidade do envolvimento de um grupo de extermínio.
O temor generalizado da população após a morte do cabo da PM na terça ilustra o quão real é para os moradores desses bairros o medo da ação das milícias e de policiais dentro destas ou acobertando estas, tanto como dos traficantes de drogas. Medo que, pela primeira vez, atingiu muitos dos moradores de áreas nobres em Belém, que não vivem o cotidiano de apreensão vivenciado pelos habitantes da periferia. Como nunca, aquela madrugada em Belém fez moradores de bairros em condições tão diferentes compartilharem do mesmo medo, da polícia, do tráfico e das milícias.
Portanto, as execuções de terça para quarta não foram um simples caso isolado de retaliação, mas sim uma realidade perene vivida por moradores da periferia de Belém, muitos dos quais conhecem alguém que foi executado ou tiveram um parente assassinado, alguns que foram expulsos de suas casas pelos traficantes, outros que evitam sair de casa a certas horas da noite (não só na última terça!) por medo do que poderá acontecer consigo e com os seus.
A essa população, que sofre de tantos lados, desde os traficantes até a abordagem de policias, é negada a mais básica e elementar forma de reduzir a criminalidade violenta no Brasil e seu financiamento: o fim da guerra às drogas. Não existe nenhum motivo para que cidades brasileiras encontrem-se no topo do ranking de cidades com maior número de homicídios do mundo que não seja essa política fracassada de proibição das drogas. Muitas cidades são mais perigosas que Belém, que está em 343º no ranking de cidades com maior número de homicídios no Brasil (a capital do Pará tem 45,6 homicídios por 100.000 habitantes), mas as causas são similares entre essas cidades. A maioria desses homicídios em Belém e nas outras cidades estão relacionados ao tráfico de drogas.
Uma das bandeiras libertárias mais importantes é o fim dessa política que cerceia os direitos civis, coloca atrás das grades pessoas pacíficas e mata mais que o vício pelo usuário, ao conferir uma fonte rápida de financiamento aos criminosos que passam a controlar este mercado.
Vende-se às pessoas que moram nesses bairros (bem como aos moradores de outros bairros mais privilegiados de Belém) a ideia de que apenas mais repressão será capaz de resolver o problema da segurança pública. Ao usuário de drogas cabe o papel de bode expiatório e frequentemente se sugere que a execução sumária de criminosos pela polícia é bem-vinda.
Mas negar o direito ao devido processo legal e legitimar ainda mais a licença para matar que os policiais já possuem, através do auto de resistência, apenas intensifica as violações de direitos humanos que diárias no Brasil. Perde-se de vista a conexão de policiais com traficantes e milícias. São os mais pobres que ficam à mercê do estado policial e a fé ingênua na polícia como guardiã da ordem só piora sua condição.
Assim, o caso de Belém escancara a monstruosidade que é a guerra às drogas brasileira e as consequências destas nas dinâmicas urbanas das periferias, marcadas pela onipresença da violência.
A principal causa de todas essas mortes não é a falta de mais repressão policial ou de mais execuções em relação às que já existem tanto da parte dos traficantes quanto de policiais, mas sim o próprio estado em sua sanha criminalizante, o que enriquece criminosos e aumenta a vulnerabilidade das comunidades que perdem a capacidade de organizar sua própria segurança.