Jandira Magdalena dos Santos desapareceu após realizar um aborto clandestino no último dia 26 de agosto. Seu último contato com o ex-marido, Leandro Brito Reis, deixa claro que ela pressentiu o perigo que estava correndo: na última mensagem enviada do celular, ela escreveu: “Amor mandaram desligar o telefone, tô em pânico, ore por mim!”. Duas horas depois de receber esta mensagem, Leandro enviou mensagem de celular para saber de notícias, mas não houve resposta.
A tragédia de Jandira vem juntar-se à tragédia de milhares de mulheres brasileiras, que realizam abortos em condições inseguras ou perigosas porque o estado brasileiro proíbe o aborto.
Estima-se que sejam feitos 1 milhão de abortos por ano no Brasil. Na América Latina, 95% dos abortos são inseguros, o que, segundo o ginecologista e obstetra representante do Grupo de Estudos do Aborto (GEA) Jefferson Drezett, é a interrupção da gravidez praticada por um indivíduo sem prática, habilidade e conhecimentos necessários ou em ambiente sem condições de higiene.
O Conselho Federal de medicina já reconhece que o aborto de risco é a quinta causa mais comum de mortalidade materna. Muitas dessas mulheres ou morreram ou ficam com sequelas irreversíveis em seus corpos.
Algumas dessas mulheres foram estupradas, mas, mesmo a legislação permitindo o aborto neste caso, até a aprovação da lei de 2013 que obriga o atendimento em hospitais públicos, era muito difícil realizá-lo pelo SUS, que atende mulheres pobres. Sem essa lei, milhares de mulheres estavam desprotegidas, privadas de um direito básico em face da violência sexual sofrida, especialmente as mais pobres. A bancada conservadora e religiosa no Congresso pretende revogar esta lei. Fica a pergunta: é justo que esse poder de privar mulheres de direitos civis esteja nas mãos do Congresso?
Concordo com o jurista norte-americano Ronald Dworkin, em seu livro O Domínio da Vida, que afirma que as pessoas desejam proibir o aborto, porque entendem que há um valor sagrado na vida que deve ser preservado. Mas esse valor sagrado da vida é avaliado por pessoas diferentes de formas diferentes. É perfeitamente possível que a decisão pelo aborto seja tomada levando-se em conta se realmente é valorizar a vida prosseguir com uma gravidez indesejada e sem condições de suporte à futura criança. Não é o estado quem deve tomar essa decisão; quem deve pesar esta decisão moral é a pessoa que mais sofrerá as consequências dela em seu corpo e em sua mente: a mãe.
A história de Marta (nome fictício) é paradigmática. Mulher, 37 anos, pobre, com instrução apenas até o 1º grau, mãe solteira de 3 filhos pequenos, que vinha de um histórico de abandono por parte dos pais das crianças (inclusive o da gravidez que interrompeu) e estava desempregada quando, em 2010, em um ato de desespero, comprou um remédio abortivo por 250 reais, tirados de sua única fonte de sobrevivência, a pensão da filha, o qual (por ter sido aplicado incorretamente) ocasionou sangramento e fortes dores. Marta foi levada ao banco dos réus pelo crime de aborto, denunciada pela médica que a atendeu, e aceitou assinar uma confissão para obter a suspensão condicional do processo.
A bancada conservadora e religiosa do Congresso é que sabe qual deveria ter sido a decisão desta mulher nas difíceis circunstâncias em que se encontrava?
Alguns dirão que é a tradição histórica da sociedade que deve prevalecer. A mesma tradição que, conforme denunciou a anarquista individualista Maria Lacerda de Moura, consagrou a “miserável moral de coronéis, de covardes e cretinos” que condenava as mulheres desviantes às “portas da prostituição barata das calçadas, com todo o seu cortejo de misérias, de sífilis, de bordeis, de humilhações, do hospital e da vala comum”?
Jandira desapareceu. Talvez nunca saibamos o que exatamente ocorreu. Mas nós sabemos como evitar que mais Jandiras desapareçam e morram em nome de uma falsa moralidade: acabando com o poder do estado sobre os corpos das mulheres. Se necessário, por meio de ação direta: a ONG holandesa Women on Waves Foundation (Fundação Mulheres sobre as Ondas) pretende oferecer a opção do aborto a mulheres que moram em países onde a prática é ilegal, em uma embarcação em águas internacionais, onde as leis de criminalização do aborto não vigem.
Precisamos de menos espaços de poder para oprimir as mulheres e mais autonomia feminina para controlar seus corpos e tomar importantes decisões morais por si mesmas, como aquelas relativas à gravidez. Caso contrário, as mulheres brasileiras não estarão seguras contra a opressão social e a agressão estatal.