É fácil notar a ironia moral nos argumentos daqueles que apoiam o governo argentino de Cristina Kirchner na disputa atual com um grupo dos chamados fundos “abutres”, liderados pela Elliot Associates. Qualquer pessoa que esteja familiarizada com a corrupção de Cristina, de seu falecido marido — o ex-presidente Nestor Kirchner — e de seus apadrinhados nos últimos 15 anos pode ignorar os argumentos de que os interesses do povo argentino motivam o governo de Kirchner a resistir às tentativas dos fundos abutres de terem quitados os títulos por que o país pediu moratória em 2002 (a maior moratória que o mundo já havia visto até então — superada só pela do banco Lehman Brothers em 2008).
Embora o passado recente da administração Kirchner seja absurdo, o que é ainda mais impressionante é o histórico anterior dos Kirchner. Em meados dos anos 1970, Cristina e seu marido estabeleceram uma firma de advocacia em Rio Gallegos, na província patagônia de Santa Cruz. A firma prosperou na época, especialmente após uma aguda desvalorização do peso em 1980, causada pelas desastrosas políticas econômicas da junta militar que governava o país. Quando os reajustes atrelados à inflação dos financiamentos habitacionais chegaram a níveis estratosféricos, forçando os endividados desesperados a venderem suas casas a preços de liquidação, os Kirchner extraíram gordos lucros, forçando despejos em benefício de vários bancos e instituições financeiras.
Os métodos que utilizaram para esse propósito poderiam ser facilmente descritos como “abutres”. O advogado Rafael Flores — um companheiro peronista que se tornaria um dos maiores críticos dos Kirchner durante os anos 1990 — assumiu o caso de Ana Victoria de Asaet, que possuía um financiamento habitacional e processou os Kirchner por manterem suas notas promissórias em vez de se desfazerem delas após o pagamento. Quando Flores encontrou Cristina Kirchner fora do tribunal e perguntou por que ela e seu marido faziam aquilo, a resposta foi emblemática: “Queremos entrar na política e, para isso, precisamos de muito dinheiro”. Tony Montana diria o mesmo.
Infelizmente, os oponentes locais de Cristina Kirchner, que incluem a maior parte dos liberais locais, pateticamente se posicionaram ao lado dos fundos abutres, em um dos exercícios mais revoltantes de falsa retórica de livre mercado que o país já viu desde o governo Menem.
Seus argumentos equivalem a pouco mais que repetições grosseiras dos releases de Paul Singer, da Elliot Associates, e de outros da comunidade de fundos multimercado. Como afirmou Jim Armitage em artigo recente para o jornal The Independent:
“Os abutres alegam que, se não fosse pela ameaça de persistentes e implacáveis batalhas judiciais, ditadores, cleptocratas e líderes populistas não teriam nada que pudesse impedi-los de pegar enormes empréstimos, desperdiçar (ou roubar) o dinheiro e então desaparecerem logo em seguida.”
A falácia nesse pensamento está na confusão entre a classe política de um país com seus cidadãos. Quando os fundos abutres são bem sucedidos na coleta do valor total de seus títulos, quem paga são os pagadores de impostos, a população em geral do país. Os políticos que contraíram os empréstimos em nome do povo, garantindo enormes ganhos para si próprios, não contribuem mais para o pagamento dessas dívidas do que uma pessoa comum que trabalha para se sustentar. Como alguém pode pensar que pode disciplinar a classe política, fazendo com que adote algum tipo de frugalidade fiscal? Como qualquer pessoa poderia defender alguma noção minimamente substantiva de liberdade humana ao defender a socialização dos prejuízos dos credores que fazem empréstimos para governos corruptos e irresponsáveis, efetivamente sujeitando o povo comum aos caprichos de operadores financeiros rentistas?
Os comentaristas de “livre mercado”, pró-Elliot estão tão afoitos para criticar o governo Kirchner a qualquer custo que acabam defendendo a interpretação bizarramente heterodoxa do juiz Griesa sobre a cláusula pari passu de títulos soberanos. Como apontou recentemente o blogueiro Felix Salmon, a cláusula não passa de “uma estipulação financeira qualquer que não significa absolutamente nada em um contexto soberano”.
A interpretação comum da cláusula pari passu pelos agentes do mercado em transações financeiras é que ela evita que o devedor incorra em obrigações a outros credores ranqueados preferencialmente em relação ao instrumento legal de dívida que contenha a cláusula. Fora da estrutura dos procedimentos comuns de falência corporativa, a noção de que uma cláusula pari passu implica que dívidas de igual ranqueamento devem ser pagas igualmente é uma absoluta falácia.
Ninguém que possua o mínimo de bom senso e honestidade intelectual deve retratar os operadores financeiros especializados na extração de rendimentos pela manipulação legal inescrupulosa como se fossem agentes do livre mercado que buscam o respeito por contratos legais — especialmente aqueles que se consideram liberais e libertários.
Traduzido para o português por Erick Vasconcelos.