Lysander Spooner termina seu panfleto Vícios não são crimes, de 1875, da seguinte maneira:
“[A] pobreza de grande parte da humanidade, em todo o mundo, é o grande problema mundial. Que essa extrema e quase universal pobreza exista em todo o mundo, e que tenha existido durante todas as gerações passadas, prova que ela se origina em causas as quais a natureza humana comum daqueles que sofrem com ela não foi até hoje capaz de superar. Mas os que sofrem estão, ao menos, começando a ver essas causas e decidindo-se por eliminá-las, custe o que custar. E aqueles que imaginam que não têm nada a fazer além de atribuir a pobreza das pessoas a seus vícios, e repreendê-las por isso, então despertarão para o dia em que toda essa conversa estará no passado. E a questão então não mais será quais são os vícios dos homens, mas quais são seus direitos?”
Spooner combatia o ímpeto puritano de culpar os pobres por sua situação de exclusão. Não eram os vícios individuais que causavam a pobreza generalizada e sistêmica, para ele; se a pobreza era tão geral, ela tinha que ter causas que transcendiam o individual.
A tendência a individualizar os problemas sociais pode soar como uma das pseudoexplicações sociais típicas do século 19, mas é uma ideia que não morreu. Como já escrevi anteriormente, o pensamento de que os indivíduos são responsáveis pela própria situação de desemprego por falta de qualificação é moeda corrente no governo, em empresas e sindicatos.
O discurso da qualificação para o “mercado de trabalho” toma a estrutura existente de produção e de emprego como dados e, se os trabalhadores não conseguem se inserir nessa estrutura, o problema é a falta de iniciativa individual. Esse discurso, naturalmente, nunca aparece de maneira destilada, mas é o substrato de muitas das defesas de cursos de capacitação e na lembrança permanente de que há “vagas de trabalho abertas”, mas não há pessoas qualificadas o suficiente para preenchê-las.
Paralelamente, a ideia que se desenvolve é a de que o mercado de trabalho está cada vez mais competitivo e os trabalhadores devem se adaptar a ele. Essa “educação para a competitividade” ocorre em todos os pontos de geração de discurso. Faculdades e cursos técnicos se beneficiam dessa técnica para mostrar que suas aulas preparam o aluno para um ambiente em que os empregos são escassos e o trabalhador é substituível, a não ser que tome atitudes drásticas para contrabalançar sua inaptidão econômica.
É claro que essa ideia tem fundamento na economia real.
A superespecialização do trabalho é um dos efeitos colaterais da concentração corporativa. Os subsídios às grandes empresas e o favorecimento de alguns agentes através da regulamentação do mercado (muito comum nos últimos 10 anos no Brasil) estendem a cadeia de produção e favorecem a aplicação de capital na produção. Esse aumento da cadeia de produção faz com que as firmas se tornem maiores e menos especializadas. Para preencher postos de trabalho específicos dentro da cadeia de produção, porém, os trabalhadores devem se tornar mais especializados.
Portanto, os trabalhadores são obrigados a se diferenciar cada vez mais porque os empregos de baixa especialização são artificialmente desvalorizados pelos subsídios corporativos, que substitui o trabalho por capital. E as grandes empresas externalizam os custos de treinamento e “profissionalização”, terceirizando essas funções para o governo e para os sindicatos.
Essa dinâmica combinada com o aparato regulatório (salário mínimo, pisos e tetos profissionais, regulamentações trabalhistas que confiscam a poupança dos empregados, regulamentações urbanas, proibição ao comércio de rua, regulamentações de manufaturas caseiras, monopólios de transporte público, etc) sistematicamente age para concentrar o mercado, favorecer certos modos produtivos estabelecidos e criminalizar a pobreza, além de tornar a autossuficiência cada vez menos atraente.
Daí, claro, do lado do trabalho a “competitividade” tem viés sempre ascendente na economia corporativa, enquanto a competitividade do lado das empresas (as estabelecidas, lógico) estacionou em um nível confortável.
Os discursos de qualificação profissional e competitividade no mercado de trabalho são racionalizações da economia corporativa. São a individualização dos problemas trabalhistas e a culpabilização do trabalhador pela sua situação desfavorável na mesa de negociação.
Não é por vícios e inadequação individuais que as pessoas acabam sem empregos. E a tentativa de moldar o debate nesses termos só desvia o assunto da real questão, como lembrava Spooner: não devemos nos perguntar quais são as insuficiências das pessoas, mas, sim, quais são seus direitos?