As trocas mútuas são o objetivo do Centro em dois sentidos — nós defendemos uma sociedade baseada na cooperação pacífica e voluntária e buscamos estimular o entendimento através do diálogo contínuo. A série Mutual Exchange dará oportunidades para essa troca de ideias sobre questões que importam para os nossos leitores.
Um ensaio de abertura, deliberadamente provocador, será seguido por respostas de dentro e fora do C4SS. Contribuições e comentários dos leitores são muito bem vindos. A seguinte conversa começa com um artigo de Casey Given, “Qual o sentido de checar seus privilégios?“. Nathan Goodman, Kevin Carson, Casey Given e Cathy Reisenwitz prepararam uma série de artigos que desafiam, exploram e respondem aos temas apresentados no artigo original de Given. Ao longo da próxima semana, o C4SS publicará todas as suas respostas. A série final poderá ser acessada na categoria O sentido do privilégio.
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Casey Given oferece algumas críticas interessantes ao conceito de privilégio, influenciadas por trabalhos ativistas feministas e antirracistas, em vez de utilizar argumentos da direita. Embora eu concorde com alguns deles, penso que seu artigo ignora várias funções exercidas pelo conceito de privilégio, além de alguns conceitos dentro da teoria feminista que são úteis para contornar algumas críticas comuns levantadas por libertários.
Ele está correto em notar que a conversa se torna vaga quando direitos básicos ou expectativas razoáveis que temos em relação a vários humanos são citadas como “privilégios”. Porém, eu diria que essa catalogação ainda seria útil para entender como o sucesso de uma pessoa pode depender da opressão do direito de outras. Mas a confusão pode apresentar problemas e isso é importante de se perceber.
Contudo, um conceito pode ser utilizado de formas errôneas e mesmo assim servir a funções úteis. Uma função chave da concepção feminista ou antirracista do privilégio é sua conexão com a epistemologia perspectivista. Isso enfatiza como o privilégio se torna invisível às partes privilegiadas e simultaneamente esconde as condições de opressão delas. Em outras palavras, lida com o fato de que o conhecimento é distribuído de acordo com a opressão de classes. Em “The Knowledge Problem of Privilege” (“O problema do conhecimento do privilégio”, em português), eu argumento que a ideia de que devemos “checar nossos privilégios” representam uma “tentativa de fazer com que as pessoas reconheçam os limites de seu conhecimento”. A Enciclopédia de Filosofia de Stanford explica essa abordagem epistemológica, conhecida como teoria feminista perspectivista:
“As mulheres são oprimidas e, portanto, têm interesse em representar fenômenos sociais de formas que revelam em vez de mascarar essa verdade. Elas também experimentam diretamente sua opressão, ao contrário dos homens, cujos privilégios permitem que ignorem como suas ações afetam as mulheres enquanto classe. Uma epistemologia que baseia o privilégio epistêmico na opressão é capaz de identificar os multiplamente oprimidos e os multiplamente privilegiados epistemicamente. Dentro da teoria feminista, essa lógica levou ao desenvolvimento da epistemologia feminista negra. Collins (1990) baseia a epistemologia feminista negra nas experiências pessoais das mulheres negras com o racismo e o sexismo e nos estilos cognitivos associados com as mulheres negras. Ela usa essa epistemologia para fornecer auto-representações que permitem que as mulheres negras resistam às imagens humilhantemente racistas e sexistas das mulheres negras no mundo em geral e que tenham orgulho de suas identidades. O privilégio epistêmico dos oprimidos é às vezes exercido, como mostra W.E.B. DuBois, através de uma “consciência bifurcada”: a capacidade de ver os fatos através da perspectiva do dominante e do oprimido, avaliando comparativamente ambas (Harding, 1991; Smith, 1974; Collins, 1990). Mulheres negras são “estranhas internas”, porque têm experiência social próxima o suficiente para conhecerem a ordem social de que fazem parte, mas estão em distância crítica adequada para exercer suas críticas.”
Essa abordagem ao reconhecimento dos relacionamentos de poder, opressão e conhecimento não é único à teoria feminista. Em “Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts” (em português, “Dominação e as artes de resistência: Transcrições ocultas”), James C. Scott argumenta que a perspectiva dos oprimidos raramente é compreendida por seus opressores. O poder dos governantes sobre os cidadãos ou dos chefes sobre empregados impede que os governados digam a verdade àqueles acima na hierarquia, relegando as perspectivas dos oprimidos ao que Scott chama de “transcrições ocultas”. Essas assimetrias de informação podem ser discutidas sem frases de efeito como “cheque seus privilégios” e, já que muitos têm reações negativas a essa expressão, prefiro evitá-la. Porém, as preocupações sobre posições sociais e os conhecimentos situacionais que a frase pretende levantar são reais e válidos, então devemos dialogar seriamente com aqueles que expressam preocupações em termos de privilégio.
Com frequência, quando eu chamo a atenção para as questões epistemológicas que a discussão do privilégio pretende suscitar, os libertários alegam que se trata de um conceito coletivista ou que envolve premissas injustificadas a respeito dos indivíduos. Isso pode ser verdade se essencializarmos os grupos e presumirmos uma “experiência feminina”, “experiência gay” ou “experiência negra” universal. É por isso que os conceitos de interseccionalidade e anti-essencialismo discutidos por acadêmicas feministas como Trina Grillo são tão importantes para chegarmos a uma teoria realista da opressão social. A interseccionalidade pretende reconhecer holisticamente as pessoas e a opressão que elas experimentam. Por exemplo, durante o estudo das mulheres negras, não é suficiente reconhecer a misoginia e o racismo e simplesmente adicionar seus efeitos. O sexismo, o racismo, a homofobia, a pobreza e outros fatores se interseccionam para dar origem a formas únicas e potentes umas das outras. Ambientes institucionais também cumprem um papel. Isso significa que enquanto a lei observa diferentes formas de discriminação e opressão em isolamento, feministas interseccionais favorecem o exame de indivíduos e da opressão e privilégios que experimentam de maneira holística. Isso dá origem a um feminismo mais nuançado e individualista, que promove a solidariedade entre aqueles que resistem à opressão. O anti-essencialismo também promove uma abordagem mais matizada à conceitualização da opressão. A essencialização de uma “experiência feminina” ou de uma “experiência negra” básica ignora as diferentes formas pelas quais a opressão é sentida entre os membros desses grupos. Esse essencialismo significa, com frequência, tomar a experiência de alguns membros privilegiados desses grupos como o padrão. Por exemplo, uma “experiência feminina” padrão pode descrever especificamente aquilo que é sentido por mulheres brancas heterossexuais e cisgênero, que passam por situações de misoginia mas não são vítimas da homofobia, transfobia e do racismo por que outras mulheres passam. Isso, é claro, ignora também que todas essas formas de opressão moldam a maneira pela qual algumas mulheres são sujeitadas à misoginia. Além disso, não leva em consideração como as mulheres brancas heterossexuais têm suas normas de gênero moldadas por sua raça, orientação sexual e pelo privilégio cis. Assim, esse essencialismo normaliza uma experiência de privilégio e apaga as nuances da opressão. O anti-essencialismo, como a interseccionalidade, permite que nós observemos os indivíduos de maneira holística, particularmente como eles próprios experimentam a opressão. Como afirma Trina Grillo, “as críticas anti-essencialistas e interseccionais pedem apenas que definamos as experiências complexas da maneira mais próxima possível a toda a sua complexidade e que não ignoremos as vozes marginais”.
Casey Given nos estimula a entrar em ação para desafiar as instituições e regras que possibilitam e exacerbam a opressão. Contudo, para que possamos agir dessa forma com sucesso, é importante fazer análises precisas sobre a opressão contra a qual pretendemos lutar. As ferramentas da teoria feminista e da teoria crítica de raças, como a epistemologia perspectivista, a interseccionalidade e o anti-essencialismo são úteis para analisar, entender e, finalmente, acabar com a opressão. E todas essas ferramentas já foram usadas na análise do privilégio, tornando-a interessante para um estudo mais aprofundado.
Traduzido para o português por Erick Vasconcelos.