As trocas mútuas são o objetivo do Centro em dois sentidos — nós defendemos uma sociedade baseada na cooperação pacífica e voluntária e buscamos estimular o entendimento através do diálogo contínuo. A série Mutual Exchange dará oportunidades para essa troca de ideias sobre questões que importam para os nossos leitores.
Um ensaio de abertura, deliberadamente provocador, será seguido por respostas de dentro e fora do C4SS. Contribuições e comentários dos leitores são muito bem vindos. A seguinte conversa começa com um artigo de Casey Given, “Qual o sentido de checar seus privilégios?“. Nathan Goodman, Kevin Carson, Casey Given e Cathy Reisenwitz prepararam uma série de artigos que desafiam, exploram e respondem aos temas apresentados no artigo original de Given. Ao longo da próxima semana, o C4SS publicará todas as suas respostas. A série final poderá ser acessada na categoria O sentido do privilégio.
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Em “Por que a teoria do privilégio é necessária“, Kevin Carson destaca três pontos de discordância com meu artigo inicial. Primeiro, ele afirma que a análise de privilégios não tem a ver com “sentimentos de culpa”. Segundo, que a análise de privilégios pode “estimular a solidariedade” entre vários grupos socioeconômicos. Terceiro, que o foco em reformas políticas apenas torna outras formas de opressão “mais eficientes”. Esclarecerei minhas divergências a respeito de todos os três pontos.
Quanto à questão da culpa, Kevin pode não considerar que a análise de privilégios serve para envergonhar os indivíduos de classes socioeconômicas supostamente privilegiadas. No entanto, muitas pessoas razoáveis consideram que é esse seu objetivo, especialmente estudantes que passam por cursos de sensibilidade em universidades. A Foundation for Individual Rights in Education documentou essa tendência acadêmica durante as duas últimas décadas, criticando os bizarros exercícios de que os estudantes são obrigados a participar para perceberem seus privilégios. Um caso notório da Universidade do Delaware envolvia um exercício em que os alunos deviam colocar marshmallows em suas bocas se tiverem desvantagens sociais e conversar uns com os outros, simbolizando os supostos privilégios que homens heterossexuais brancos possuem, já que eram os únicos na turma sem a boca cheia.
Intencional ou não, essa forçação goela abaixo do conceito de privilégio (às vezes literalmente, como no caso de Delaware) tem um histórico bem documentado de resistência às suas tentativas de indução de culpa. O Midwest Critical Whiteness Collective, por exemplo, relata a reação de um aluno à leitura do artigo de Peggy McIntosh “White Privilege: Unpacking the Invisible Knapsack” (em português, “Privilégio braco: Abrindo a mochila invisível”):
“Minha reação basicamente foi: se você é um homem branco, você deve sentir vergonha de si mesmo. Mesmo se o que ocorreu cem anos atrás não tenha sido perpetrado por você e se você tiver se esforçado para ser tolerante com todos, você deve se sentir envergonhado.”
Essa percepção de culpa é comum em discussões sobre o privilégio. Como observa Jennifer Ng da Universidade do Kansas, “[alunos] brancos frequentemente negam seu envolvimento com a sociedade racista ao afirmar que nunca foram donos de escravos”. E por que deveriam confessar essa perpetuação do racismo através de seus privilégios se eles próprios nunca agiram como racistas? Ng continua: “Duvido que os estudantes fossem se sentir mais confortáveis quando fosse pedido que eles se identificassem pessoalmente ou se associassem teoricamente às ações ou emoções dos colonizadores ou dos nazistas”.
Ou seja, não deve ser surpreendente que a prática comum da análise dos privilégios de destacar heterossexuais, brancos e homens por privilégios que eles não escolheram parece mais um exercício de culpabilização e inevitavelmente é recebida com resistência — o que nos leva ao segundo ponto de Kevin. Com a bem documentada hostilidade à análise dos privilégios, parece impossível alegar que ela serve para “estimular a solidariedade” entre as várias classes socioeconômicas. Ao contrário, sua prática de alienar pessoas com base em raça, sexo e sexualidade tem servido apenas para dividir em vez de unir. O próprio fato de que estamos debatendo esse assunto em uma série Mutual Exchange é um testamento a seu potencial sectário.
É bastante surpreendente como a análise de privilégios marginaliza classes inteiras de pessoas ao atribuir valor social a qualidades literalmente superficiais como raça e sexo. Kevin cita uma ativista do movimento Occupy que afirmou no Twitter que “a sociedade criou uma hierarquia de gênero” que “deve ser desmontada” e “é impossível acabar adequadamente com ela sem compreendê-la”. Se essa hierarquia social deve ser discutida, vamos ser mais específicos.
Qual raça é mais oprimida, negros ou latinos? Uma mulher branca transgênero é mais privilegiada que um homem negro? Católicos e judeus têm o mesmo privilégio branco que os protestantes? Parece impossível que qualquer discussão dessa hierarquia de privilégios “estimule a solidariedade” em vez de reforçar estereótipos discriminatórios. É precisamente por isso que o Midwest Critical Whiteness Collective recomenda a mudança do foco da intersectionalidade do privilégio para a opressão, como eu defendi em meu artigo original. A luta contra a injustiça é uma causa que une; destacar privilégios apenas divide.
Além disso, a análise dos privilégios é uma causa sem um apelo à ação — o que nos traz, finalmente, ao último ponto de Kevin. Por mais que seja prazeroso para os libertários anarquistas darem tapinhas nas próprias costas por terem consciência de seus privilégios, o estado continuará a oprimir. Os anarco-capitalistas podem até imaginar um mundo ideal em que essa opressão não exista, mas o desafio para qualquer ativista é implementar sua visão na realidade. Em vez de desejar que os problemas do mundo não existam, os libertários devem ser ativos na luta contra as políticas opressivas que mantêm as minorias em posições vulneráveis, como as regulamentações empregatícias, sentenças judiciais mínimas, o combate às drogas, as restrições à imigração, a deportação, o monopólio da educação pública e o salário mínimo. Menos que isso, como analisar privilégios, não passa de meditações burguesas.
Traduzido para o português por Erick Vasconcelos.