Em um texto para o blog da rede Students for Liberty (“Between Radicalism and Revolution: The Cautionary Tale of Students for a Democratic Society“, 6 de maio), Clark Ruper usa o exemplo dos Students for a Democratic Society (SDS) como alerta contra o sectarismo e a fragmentação dentro do movimento libertário. O movimento libertário, afirma ele, deve estar unido em favor de uma agenda comum que tenha apelo para o maior número possível de pessoas — que aborde questões “mais importantes” como a luta contra o corporativismo e o intervencionismo militar e a proteção das liberdades civis. Ruper parece focar principalmente nos anarquistas, revolucionários, defensores da justiça social e libertários de esquerda como potenciais fontes de divisões. Ele também deixa claro que seu post foi motivado, em grande parte, pelos debates recentes a respeito das abordagens libertárias “thick” ou “não-brutalistas” defendidas, entre outros, por Roderick Long, Charles Johnson, Gary Chartier, Sheldon Richman e Jeffrey Tucker:
“Alguns afirmam que o libertarianismo ‘real’ ou uma versão melhorada das ideias libertárias deve também incluir o anarquismo, o progressismo, estudos críticos de raça ou várias outras perspectivas. (…)
“Para nós, atualmente, parece que o libertarianismo não é o suficiente; o que precisamos é do anarquismo de esquerda, do libertarianismo thick, do não-brutalismo ou várias outras perspectivas.”
Em resposta, Jeff Ricketson, no Centro por uma Sociedade Sem Estado (“Radicalism as Revolution: A Call for a Fractal Libertarianism“, C4SS, 18 de maio) desafiou a defesa de Ruper de um movimento monolítico e considerou a fractalidade como ponto positivo:
“O que devemos defender é um libertarianismo unido sob a bandeira da liberdade, com discussões apaixonadas e amigáveis sobre as questões internas e uma nidificação fractal em pequenos grupos mais especializados.”
O fractalismo e a especialização, afirma ele, são bons porque aumentam a agilidade, a resistência a adaptabilidade do movimento como um todo face a mudanças.
E isso é muito verdadeiro. É difícil para os ativistas libertários que trabalham em comunidades específicas relacionarem seus valores básicos às necessidades particulares e às situações cotidianas das pessoas com quem trabalham se tiverem que pedir autorização dos cabeças do Quartel-General Central do Partido.
Eu e outros associados ao C4SS já fomos alvos de críticas similares às de Ruper por darmos atenção considerada excessiva a preocupações com a justiça social. Afirmam que perdemos o nosso foco em questões “reais”, no “principal” — como o estado corporativo, a economia, classes, guerras e liberdades civis. Em vez de enfatizarmos esses pontos, nos distraímos pelo “politicamente correto” e pela “política identitária”. Ou seja, deveríamos nos prender a um programa libertário comum de amplo apelo, limitar nosso foco a essas “questões importantes” e evitar dizer qualquer coisa que possa alienar os conservadores culturais brancos que concordam conosco em questões econômicas.
É claro que isso é irônico, dado que toda essa polêmica sobre as pautas “polêmicas” que podem alienar os mais conservadores vem de um movimento “pan-secessionista” que está de braços abertos a neonazistas e nacional-anarquistas, cujo líder defendeu a expulsão de ativistas LGBT do movimento anarquista. Aparentemente, a alienação desses grupos conservadores que chafurdam em seu próprio vitimismo é inaceitável, mas não dar apoio a pautas interessantes aos gays e transgêneros que são genuinamente vitimizados todos os dias por injustiças estruturais não é algo tão ruim.
De qualquer forma, as defesas de um movimento amplo, unido em torno de uma só plataforma de amplo apelo, são fundamentalmente equivocadas. É essencialmente o mesmo argumento usado pelo establishment esquerdista — parte do qual se intitula orgulhosamente como “verticalista” — contra o horizontalismo do movimento Occupy. É a crítica padrão dos centristas-gerencialistas dentro da comunidade progressistas e social-democrata: “Aponte líderes e adote uma plataforma!”
O Occupy chegou bem perto de fazer exatamente isso. Os membros da organização anticonsumista Adbusters e os New Yorkers Against Budget Cuts (Nova-iorquinos Contra Cortes no Orçamento) que chegaram mais cedo nas reuniões planejavam um acordo para chegar a uma só pauta de exigências, apontar porta-vozes e tudo o mais. Se tivessem feito isso, o Occupy seria outro movimento passageiro que sairia das notícias em alguns dias. Mas David Graeber e alguns outros horizontalistas — Wobblies e veteranos do movimento de Seattle — se juntaram para formar um movimento de oposição que rapidamente se estabeleceu como cultura dominante dentro do Occupy.
Ao invés de adotar uma liderança e uma pauta oficiais, Graeber e os horizontalistas escolheram seguir o modelo descentralizado em redes do movimento M15 da Espanha. Ao invés de uma só pauta ou uma pequena plataforma resumida em alguns pontos-chave, os organizadores do Occupy decidiram enfatizar a mensagem do “Somos o 99%” — uma ampla oposição a coisas como o poder das corporações e bancos sobre o estado, o neoliberalismo, o imperialismo etc. — e deixaram os vários subgrupos, as comunidades e indivíduos que formavam o movimento estabelecerem seus próprios objetivos, atentos às necessidades e preocupações particulares relacionadas ao tema mais amplo.
Em outras palavras, o movimento Occupy não tinha uma plataforma — ele mesmo era uma plataforma. Era uma caixa de ferramentas, uma marca e uma biblioteca de imagens e slogans prontos para serem usados e adaptados a necessidades e pautas específicas de grupos que compartilhassem a oposição geral ao neoliberalismo e ao poder do capital financeiro.
Tanto Ruper quanto os críticos de centro-esquerda do Occupy recorrem ao modelo organizacional ultrapassado do meio do século 20. Nesse modelo, celebrado por Joseph Schumpeter e John Kenneth Galbraith, a produção industrial requeria grandes organizações hierárquicas com uso intensivo de capital, grandes economias de escala e extensas divisões de trabalhos. Seriam organizações governadas por regulamentos trabalhistas weberianos-tayloristas, descrições de “funções” e de quais são as “práticas adequadas”. O ativismo político, assim, requereria grandes organizações hierárquicas e capitalizadas como a GM, a GE e vários outros dinossauros industriais.
Mas adivinhe só: todos esses dinossauros estão obsoletos e fadados a desaparecer. Seu modelo organizacional e todos que o seguem também. As mudanças tecnológicas mudaram a base material da maioria das instituições hierárquicas e fez com que os requisitos de capitalização para a duplicação de suas funções implodisse. Ferramentas baratas de micromanufatura, tecnologias caseiras mais eficientes que editoras e estúdios musicais e comunicações em rede a custo virtualmente zero permitem que indivíduos e pequenos grupos horizontalizados façam coisas que antes requeriam poderosas instituições sediadas em enormes prédios de vidro e aço, cheios de milhares de robôs em cubículos, gerenciadas por vários homens engravatados em mesas de mogno no último andar.
O paradigma econômico e organizacional do mundo de hoje são as redes horizontais e estigmérgicas. É o modelo organizacional da Wikipedia, dos movimentos de compartilhamento, do Anonymous e até da Al-Qaeda. Nesse modelo, tudo é feito pelos indivíduos ou por pequenos grupos de afinidade unidos em torno de diferentes pautas. Tudo é feito pelo indivíduo ou grupo mais interessado, motivado e qualificado para a tarefa, sem a espera de permissão. E em vez de “desviar” da missão comum, as contribuições dos indivíduos e grupos de afinidade são sinérgicas e se reforçam mutuamente. Em redes de compartilhamento de arquivos, quando alguém quebra os esquemas de gestão de direitos digitais de uma música ou filme, os arquivos se tornam imediatamente propriedade comum de toda a rede. Quando um novo dispositivo explosivo improvisado é desenvolvido por uma célula da Al Qaeda no Iraque, ele pode ser imediatamente adotado por outra célula que o achar útil — ou ignorado se não for. Uma rede estigmérgica é a máxima expressão do conhecimento distribuído hayekiano.
Nós não precisamos mais nos reunir em grandes instituições para alcançar nossos objetivos ou tentar fazer com que todos concordem em certos pontos antes de dar qualquer passo. Os ativistas fazem isso por conta própria. O que precisam é simples: suporte e solidariedade. Eles podem definir por si mesmos o que é importante para as comunidades de que são parte e com que trabalham, podem decidir como as pautas libertárias se relacionam especificamente a si mesmos. Enquanto isso, os outros podem fazer o mesmo e direcionar seus esforços a suas preocupações locais, desejando sorte aos companheiros em outros submovimentos e oferecendo solidariedade e suporte quando possível e necessário.
O que isso significa é que é totalmente desnecessário — não que jamais tenha sido preciso — suprimir as defesas da justiça racial e de gênero em prol do suporte à pauta comum da classe econômica “até a chegada da revolução” ou “pelo bem do partido”. De fato, é contraprodutivo. A unidade e subordinação forçada defendida por Ruper é, paradoxalmente, garantia de fomento de discórdia e divisão.
Por experiência própria, ao conversar com amigos, acho que está bastante claro que essa tendência a subordinar questões “divisivas” (como raça e gênero) às “importantes” (política e economia) é o motivo principal por que o libertarianismo e o anarquismo são percebidos por mulheres, grupos LGBT e negros como província de “machos brancos”.
Já percebi o mesmo problema em grupos social-democratas que se intitulam “progressistas pragmáticos” (chamados de “Obots” em tom de desprezo, por seu apoio incondicional a Barack Obama) e usam a hashtag #UniteBlue no Twitter. Não importa a questão — seja o uso de Drones por Obama para matar civis inocentes, a invasão de privacidade da NSA, o corporativismo da elaboração da Parceria Transpacífica — suas respostas padrão são “Então você preferiria que Romney fosse eleito?” ou “Como isso afetará as chances de Hillary Clinton em 2016?”. Esse tipo de oportunismo cínico às custas das necessidades de seres humanos reais é vergonhoso — não importa o lado.
Se essa união forçada em torno de questões “reais” estimula a divisão e o ressentimento, então a melhor forma de estimular a união é levar em conta ativamente os interesses e as necessidades específicas de diferentes segmentos da população. A prática da interseccionalidade — isto é, perceber como diferentes formas de opressão, como opressões de classe, raça e gênero se reforçam mutuamente e afetam de forma diferente subgrupos particulares dentro dos meios ativistas — não foi desenvolvida para estabelecer uma competição de quem é mais oprimido. Ela foi desenvolvida precisamente para evitar o fracionamento dos movimentos por justiça racial por conta de questões de classe e gênero, o feminismo por conta de questões de classe e raça, etc, atentando para as necessidades especiais dos menos favorecidos dentro de cada movimento.
Se você quer saber o que acontece a um movimento que foca nas questões “importantes” (econômicas) sem levar em conta problemas interseccionais, observe os sindicatos de parceiros rurais dos anos 1930 que se separaram em movimentos de negros e brancos — e finalmente derrotados — graças a ações promovidas por grandes agriculturalistas para explorar as divisões raciais entre os membros. Ou você poderia observar as reuniões de vários grandes grupos de ativismo, tomar nota de quantos componentes são homens brancos e então se perguntar por que esse movimento tão amplo não tem nenhum apelo para mulheres e negros.
Traduzido do inglês para o português por Erick Vasconcelos.